DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS
Vinte e três milhões de brasileiros passam fome. E todos os dias jogamos fora no país comida suficiente para nutrir 19 milhões deles. Como fazer todo esse alimento chegar aos estômagos de toda essa gente?
Há 23 milhões de miseráveis no Brasil – pessoas com renda insuficiente para prover 75% das suas necessidades calóricas. Nesse mesmo país, 39 000 toneladas de comida em condições de ser aproveitada vão para o lixo todo santo dia em mercados, feiras, fábricas, restaurantes, quitandas, açougues, fazendas. O número leva em conta dados de vários setores – agricultura, indústria, varejo e serviços. São 39 000 toneladas de iogurtes perto do vencimento, tomates manchados, pães amanhecidos, carne esquecida no congelador e milhares de itens que, por algum motivo estético, acabam nas latas de lixo – e, nesse cálculo, a Super levou em conta apenas aquilo que poderia ser aproveitado facilmente, sem grandes mudanças no processo de produção ou de distribuição. É suficiente para dar café, almoço e jantar diariamente a 19 milhões de pessoas. Será que não há uma maneira de fazer com que toda essa comida vá parar nos pratos vazios do Brasil?
Há, sim. Mas, para tanto, duas coisas são necessárias. Primeiro: que as indústrias, os mercados e os restaurantes estejam dispostos a doar seu excedente aproveitável e os produtos prestes a estragarem (o desperdício doméstico fica de fora porque seria complicado e caro demais coletar doações de residências). Segundo: que haja instituições, do governo ou não, que busquem essas doações e façam com que a comida chegue a quem precisa antes de estragar. Pronto, está sanada a fome no Brasil. Parece simples, não? Pois não é. Para começar, raras empresas doam comida. Por incrível que pareça, elas preferem jogar o excedente no lixo. Não, não é por maldade: elas apenas querem evitar problemas legais, como arcar com a responsabilidade criminal no caso de a comida doada causar uma intoxicação ou a morte de alguém.
“As pessoas e as empresas têm receio de doar alimentos. Temem que sua solidariedade se transforme num pesadelo”, diz o senador cearense Lúcio Alcântara, autor de um projeto de lei de 1997 que busca livrar de responsabilidade civil e criminal por dano ou morte aquele que doa alimentos, desde que se constate sua boa fé. Inspirado numa lei semelhante, aprovada nos Estados Unidos em 1996, o projeto está solenemente parado há um ano na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Não se sabe quando será votado.
O projeto faz parte de um pacote de leis apelidado de Estatuto do Bom Samaritano, que, se aprovado, eliminará também outros obstáculos que têm evitado as doações. Por exemplo: isenta as indústrias do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) relativo à doação. Hoje, uma fábrica que doa latas de feijão tem que pagar IPI sobre elas como se as tivesse vendido. Além de remover obstáculos, o estatuto oferece incentivos a quem colaborar. Um deles é um desconto no Imposto de Renda para quem doar comida ou máquinas para industrializar alimento – o desconto já existe para empresas que fazem doações de dinheiro. Esses projetos estão igualmente parados no Congresso.
Sem a mudança de lei, é improvável que a situação se altere. Por motivos compreensíveis, não há muitos empresários dispostos a arriscar um processo criminal por homicídio ou um processo civil pedindo indenização por causa de uma possível intoxicação. É igualmente difícil encontrar gente que concorde em pagar imposto para fazer caridade. Mesmo assim, há no país exemplos de organizações que resolveram distribuir excedentes para quem precisa, mesmo sem o respaldo da lei.
Um dos projetos mais criativos e eficientes é o sopão do Ceasa. Os Ceasas – sigla de Central de Abastecimento S.A. – são empresas estaduais geridas por um misto de dinheiro do governo e da iniciativa privada. Essas empresas mantêm mercados e entrepostos para escoar a produção agropecuária. Quem já foi a um dos mercados do Ceasa à tarde sabe o quanto de comida sobra todos os dias nos estandes. Tradicionalmente, ia tudo para o lixo.
Em 1992, o Ceasa mineiro resolveu fazer algo a respeito. Comprou máquinas para processar as sobras e passou a enlatar uma sopa, que é distribuída em regiões carentes do Estado. Como a sopa é desidratada e enlatada, demora um ano para estragar. Ou seja, de um dia para o outro, transformam-se produtos perecíveis, prestes a serem perdidos, em alimentos duráveis. O Ceasa incentiva os produtores rurais a doarem alimentos que seriam descartados por imperfeições no tamanho, na forma ou na superfície – comida segura, mas que não pode ser comercializada por não cumprir as especificações estéticas. Vai tudo para o sopão. Deu tão certo que os Ceasas de Pernambuco, Ceará, Distrito Federal, Paraná e de algumas cidades paulistas seguiram a experiência. Imagine se todos os 5 000 municípios brasileiros fizessem o mesmo com o que sobra nas suas feiras e em seus sacolões?
“As pessoas ficariam impressionadas se soubessem como é simples e barato implantar uma fábrica desse tipo”, diz Aldo Fernandes da Silva Júnior, do Ceasa de Minas Gerais. Uma porção da sopa custa à empresa cerca de 10 centavos. Montar uma fábrica com capacidade para 2 toneladas de sopa por dia, excluídos os gastos com o imóvel, sai por 80 000 reais. Não há dados nacionais sobre o número de pessoas beneficiadas pelo sopão industrializado, mas sabe-se que, só em Minas, quase 30 000 latas de 5 litros foram produzidas em 2000, o suficiente para encher 2,3 milhões de pratos fundos. É bom lembrar que, em 1997, o governo federal gastou 300 milhões de dólares com cestas básicas – e com isso entregou 1 000 toneladas de comida por dia. Se a mesma quantia fosse investida em construir fábricas de sopa, seria possível criar uma estrutura por todo o país para produzir diariamente 7 000 toneladas de alimentos por vários anos.
Além do Ceasa, há outras instituições transformando o que iria para o lixo em comida. Muitas são organizações não-governamentais (ONGs) que, com uma estrutura ínfima – não mais que duas ou três vans e meia dúzia de voluntários –, especializaram-se em coletar comida doada e levar tudo a instituições de caridade que preparam e distribuem o alimento.
O Banco de Alimentos de São Paulo é uma delas. Quando surgiu, em 1999, a instituição pretendia trabalhar com restaurantes. “Mas o receio deles em doar por causa dos riscos nos levou a procurar sobras da comercialização e da produção nas indústrias e redes de supermercados”, afirma Suzete Oliveira Raimundi, que coordena o projeto. O Banco de Alimentos criou, então, uma rede fixa de doadores. Seus nutricionistas treinam funcionários das empresas doadoras para fazer a triagem da comida e as vans passam lá regularmente para buscar as doações.
Acontece que iniciativas como essa estão longe de dar conta do problema. Estima-se que haja por volta de 30 instituições como o Banco de Alimentos no Brasil, umas governamentais, outras não – entre elas, o Prato Amigo, de Salvador, o Lixo que Não é Lixo, em Curitiba, e entidades mantidas pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) em várias cidades. Juntas, elas distribuem cerca de 150 toneladas de comida por dia pelo Brasil. Um número impressionante, sem dúvida, mas que não chega a 0,5% do volume de alimentos que poderia ser aproveitado.
E de onde vem tanto desperdício? O processo que começa na lavoura e termina na sua mesa deixa muita coisa no caminho. Nos Estados Unidos, um produto agrícola é manuseado 33 vezes antes de chegar ao consumidor. É natural que muitos frutos e legumes fiquem irremediavelmente amassados e machucados ao longo de toda essa cadeia. Enchentes e pragas provocam uma perda de algo como 10% do total ainda na fase do cultivo. Outro tanto se perde na colheita, geralmente feita por máquinas que esmagam parte da produção. Muitos vegetais e produtos animais não conseguem resistir à armazenagem, outros perecem no transporte.
A matéria-prima que resiste vai então para a indústria, onde as batatas viram chips; os tomates, molho; e as vacas, hambúrguer. No processo de industrialização, 15% da quantidade inicial se perde. Entre os produtos não industrializados, a perda é semelhante: mais de 10% dos produtos frescos – vegetais, leite, ovos, carnes –, embora cheguem à feira, acabam estragados no manuseio ou passam do ponto antes que alguém os compre. E, mesmo depois da compra, o problema continua. A cultura do desperdício, tão difundida no Brasil, leva as pessoas a comprar mais do que precisam. Resultado: 30% dos produtos que foram plantados vão para a geladeira de alguém e, de lá, pro lixo. A conta final: de cada 100 produtos que saem da roça, só 40 cumprirão seu destino original, o de alimentar pessoas. Os outros 60 vão virar um problema para as companhias de coleta de lixo .
Boa parte da perda é inevitável e irrecuperável como comida (embora toda ela possa ser aproveitada de alguma forma, como você pode ler na 'Alimentos frescos, por natureza, são perecíveis'. A perda faz parte do processo. Uma enorme quantidade de comida poderia ser poupada se adotássemos processos mais racionais – já ajudaríamos muito se não comprássemos mais do que vamos comer. Mas o mais importante é que um quinto de toda a comida que vai para o lixo poderia ser aproveitada facilmente em doações. É o alimento que sobra em indústrias, quitandas, supermercados, restaurantes, açougues e hotéis. É prático e econômico aproveitar sobras desses lugares por três motivos: muita comida, relativamente poucos lugares para a coleta e, o melhor, a maioria já tem estrutura para armazenar e transportar os alimentos. Como, então, fazer isso acontecer?
O primeiro passo é aprovar logo as mudanças da legislação. Além de instituir o Estatuto do Bom Samaritano, será necessário que o Congresso crie mecanismos de regulamentação para evitar que empresários mal intencionados aproveitem a nova lei para superfaturar suas doações e, assim, sonegar imposto, ou que ONGs igualmente mal intencionadas revendam o que ganham – esse aspecto não está contemplado nos projetos em tramitação.
Outra brecha no estatuto que está parado no Congresso é quanto ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), pago por mercados, feiras e outros varejistas sobre produtos vendidos – o projeto isenta as indústrias do IPI mas esquece os comerciantes, responsáveis por 28 000 das 39 000 toneladas que o país pode recuperar. Há ainda mais um aspecto que poderia ser acrescentado à lei: permitir a doação de tempo. Explica-se: uma indústria de alimentos muitas vezes fica com suas máquinas paradas ou volta de uma entrega com os caminhões vazios. Se houvesse um incentivo fiscal a essa empresa, ela poderia doar a uma ONG distribuidora de comida tempo de máquina ou de caminhão. Nos Estados Unidos, esse tipo de doação já está sendo regulamentado. Aliás, a experiência americana dá uma amostra do impacto que a mudança da lei teria aqui.
As doações em espécie na área de serviços aumentaram estratosfericamente depois da aprovação da Lei do Bom Samaritano por lá – eram de 1% do total de doações em 1996 e passaram para 9% em 1997.
O segundo passo para resolver o problema da fome é criar uma rede de distribuição eficiente que permita que as doações cheguem a tempo para quem precisa. Para sanar a fome do país, as ONGs precisariam de recursos bem maiores. Assim, poderiam industrializar o alimento, como faz o Ceasa, para aumentar sua validade. Também seria possível atender um número bem maior de doadores se houvesse mais veículos e funcionários nas ONGs.
A fome geralmente é vista como um desses problemas incuráveis do país, a sina incontornável de milhões de pessoas. Esse modo de pensar até é conveniente. Acreditando que o problema não tem solução, fica mais fácil ignorá-lo. Mas há solução, sim. Cabe ao Congresso, às empresas e às ONGs colocá-la em prática. E a você começar a fazer sua parte – doando seu tempo ou dinheiro às ONGs que já estão na luta , pressionando políticos a aprovarem leis relevantes e favorecendo produtos de empresas que estão colaborando com o esforço.
Menos que a metade!
Só 39% da produção agrícola vira comida no prato de alguém. O resto fica pelo caminho
15% perda na indústria
8% perda no transporte e no armazenamento
20% perda no plantio e na colheita
1% perda no varejo
17% perda com o consumidor
39% chega a ser consumido
Lixo não existe
A frase acima pode soar absurda. Mas é isso mesmo que pensa o economista Sabetai Calderoni, d Universidade de São Paulo, maior especialista brasileiro em lixo e conselheiro da ONU no assunto. Segundo ele, o conceito que a sociedade tem do lixo “é produto de uma visão equivocada dos materiais”. Sabetai, autor do livro 'Os Bilhões Perdidos no Lixo', afirma que, embora nem tudo o que se joga fora possa ser aproveitado como comida, todo o lixo pode ser aproveitado de alguma forma.
Um dos maiores potenciais desperdiçados é o não-aproveitamento do lixo orgânico, que geralmente vem de restos de alimentos. Esse lixo poderia se transformar em algo útil se passasse por um processo chamado compostagem. Nele, o lixo é submetido à ação de bactérias em alta temperatura e se transforma em dois subprodutos. Um é um adubo natural, o outro é o gás metano, que é usado na geração de energia termoelétrica.
A quantidade de gás metano produzido pela compostagem de todo o lixo orgânico brasileiro que não pode ser recuperado como comida seria suficiente para alimentar uma usina de 2 000 megawatts (a usina nuclear de Angra I tem capacidade de 657 megawatts). Uma usina termoelétrica como essa produziria, em um ano, 3,6 bilhões de reais em energia. E jogamos quase todo esse dinheiro no lixo. Só 0,9% do lixo brasileiro é destinado a usinas de compostagem.
E estamos falando apenas do lixo orgânico. O inorgânico também poderia gerar lucros. A reciclagem de vidro, plásticos e metais é perfeitamente viável em termos econômicos – e já é praticada, em quantidades cada vez maiores.
O país lucraria também ao poupar o dinheiro que é gasto para dar fim ao lixo. “Lixo é o único produto da economia com preço negativo”, diz Sabetai. Em outras palavras, o processamento de lixo é o único negócio no qual a aquisição da matéria-prima é remunerada – paga-se para livrar-se dela. E paga-se muito. As prefeituras brasileiras costumam gastar entre 5% e 12% de seus orçamentos com lixo.
Sem falar que o melhor aproveitamento do lixo valorizaria dois bens que não têm preço: a saúde da população e a natureza. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, 76% do lixo brasileiro acaba em lixões a céu aberto. Esses lixões são uma ameaça à saúde pública porque permitem a proliferação de vetores de doenças. Além disso, a decomposição do lixo nesses locais não só gera o metano que polui o ar como também o chorume, um líquido preto e fedido que envenena as águas superficiais e subterrâneas.
O outro motivo para incentivar essa indústria são os empregos que ela poderia gerar. O Brasil produz 280 mil toneladas de lixo por dia. Descontando as 39 mil toneladas de alimento viável que poderiam ser facilmente extraídas desse lixo e disponibilizadas às populações carentes, ainda seria possível gerar 120 000 empregos só no processamento do resto, nos cálculos de Sabetai. Pois é. Lixo não existe. O que existe é ignorância, falta de vontade e ineficiência.
Tudo se transforma
Todo o lixo produzido pode virar alguma coisa útil. Sem exceção
37% - Reciclagem - Já são recicladas 35 000 toneladas de papel, vidro e metal todos os dias no Brasil, um número considerável
49% - Compostagem - A compostagem transforma lixo orgânico em energia elétrica e adubo. O Brasil não aproveita esse potencial
14% - Alimento humano - Nada menos que 39 000 toneladas de comida poderiam ser aproveitadas facilmente como alimento
Desperdício
Embora seja possível utilizar 100% do lixo, só 13% é efetivamente aproveitado, principalmente com a reciclagem de papel, de vidros e de metais
Por Rodrigo Velloso, publicado na revista 'Super Interessante' com o título de 'Comida é o que não falta', adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
Há 23 milhões de miseráveis no Brasil – pessoas com renda insuficiente para prover 75% das suas necessidades calóricas. Nesse mesmo país, 39 000 toneladas de comida em condições de ser aproveitada vão para o lixo todo santo dia em mercados, feiras, fábricas, restaurantes, quitandas, açougues, fazendas. O número leva em conta dados de vários setores – agricultura, indústria, varejo e serviços. São 39 000 toneladas de iogurtes perto do vencimento, tomates manchados, pães amanhecidos, carne esquecida no congelador e milhares de itens que, por algum motivo estético, acabam nas latas de lixo – e, nesse cálculo, a Super levou em conta apenas aquilo que poderia ser aproveitado facilmente, sem grandes mudanças no processo de produção ou de distribuição. É suficiente para dar café, almoço e jantar diariamente a 19 milhões de pessoas. Será que não há uma maneira de fazer com que toda essa comida vá parar nos pratos vazios do Brasil?
Há, sim. Mas, para tanto, duas coisas são necessárias. Primeiro: que as indústrias, os mercados e os restaurantes estejam dispostos a doar seu excedente aproveitável e os produtos prestes a estragarem (o desperdício doméstico fica de fora porque seria complicado e caro demais coletar doações de residências). Segundo: que haja instituições, do governo ou não, que busquem essas doações e façam com que a comida chegue a quem precisa antes de estragar. Pronto, está sanada a fome no Brasil. Parece simples, não? Pois não é. Para começar, raras empresas doam comida. Por incrível que pareça, elas preferem jogar o excedente no lixo. Não, não é por maldade: elas apenas querem evitar problemas legais, como arcar com a responsabilidade criminal no caso de a comida doada causar uma intoxicação ou a morte de alguém.
“As pessoas e as empresas têm receio de doar alimentos. Temem que sua solidariedade se transforme num pesadelo”, diz o senador cearense Lúcio Alcântara, autor de um projeto de lei de 1997 que busca livrar de responsabilidade civil e criminal por dano ou morte aquele que doa alimentos, desde que se constate sua boa fé. Inspirado numa lei semelhante, aprovada nos Estados Unidos em 1996, o projeto está solenemente parado há um ano na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Não se sabe quando será votado.
O projeto faz parte de um pacote de leis apelidado de Estatuto do Bom Samaritano, que, se aprovado, eliminará também outros obstáculos que têm evitado as doações. Por exemplo: isenta as indústrias do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) relativo à doação. Hoje, uma fábrica que doa latas de feijão tem que pagar IPI sobre elas como se as tivesse vendido. Além de remover obstáculos, o estatuto oferece incentivos a quem colaborar. Um deles é um desconto no Imposto de Renda para quem doar comida ou máquinas para industrializar alimento – o desconto já existe para empresas que fazem doações de dinheiro. Esses projetos estão igualmente parados no Congresso.
Sem a mudança de lei, é improvável que a situação se altere. Por motivos compreensíveis, não há muitos empresários dispostos a arriscar um processo criminal por homicídio ou um processo civil pedindo indenização por causa de uma possível intoxicação. É igualmente difícil encontrar gente que concorde em pagar imposto para fazer caridade. Mesmo assim, há no país exemplos de organizações que resolveram distribuir excedentes para quem precisa, mesmo sem o respaldo da lei.
Um dos projetos mais criativos e eficientes é o sopão do Ceasa. Os Ceasas – sigla de Central de Abastecimento S.A. – são empresas estaduais geridas por um misto de dinheiro do governo e da iniciativa privada. Essas empresas mantêm mercados e entrepostos para escoar a produção agropecuária. Quem já foi a um dos mercados do Ceasa à tarde sabe o quanto de comida sobra todos os dias nos estandes. Tradicionalmente, ia tudo para o lixo.
Em 1992, o Ceasa mineiro resolveu fazer algo a respeito. Comprou máquinas para processar as sobras e passou a enlatar uma sopa, que é distribuída em regiões carentes do Estado. Como a sopa é desidratada e enlatada, demora um ano para estragar. Ou seja, de um dia para o outro, transformam-se produtos perecíveis, prestes a serem perdidos, em alimentos duráveis. O Ceasa incentiva os produtores rurais a doarem alimentos que seriam descartados por imperfeições no tamanho, na forma ou na superfície – comida segura, mas que não pode ser comercializada por não cumprir as especificações estéticas. Vai tudo para o sopão. Deu tão certo que os Ceasas de Pernambuco, Ceará, Distrito Federal, Paraná e de algumas cidades paulistas seguiram a experiência. Imagine se todos os 5 000 municípios brasileiros fizessem o mesmo com o que sobra nas suas feiras e em seus sacolões?
“As pessoas ficariam impressionadas se soubessem como é simples e barato implantar uma fábrica desse tipo”, diz Aldo Fernandes da Silva Júnior, do Ceasa de Minas Gerais. Uma porção da sopa custa à empresa cerca de 10 centavos. Montar uma fábrica com capacidade para 2 toneladas de sopa por dia, excluídos os gastos com o imóvel, sai por 80 000 reais. Não há dados nacionais sobre o número de pessoas beneficiadas pelo sopão industrializado, mas sabe-se que, só em Minas, quase 30 000 latas de 5 litros foram produzidas em 2000, o suficiente para encher 2,3 milhões de pratos fundos. É bom lembrar que, em 1997, o governo federal gastou 300 milhões de dólares com cestas básicas – e com isso entregou 1 000 toneladas de comida por dia. Se a mesma quantia fosse investida em construir fábricas de sopa, seria possível criar uma estrutura por todo o país para produzir diariamente 7 000 toneladas de alimentos por vários anos.
Além do Ceasa, há outras instituições transformando o que iria para o lixo em comida. Muitas são organizações não-governamentais (ONGs) que, com uma estrutura ínfima – não mais que duas ou três vans e meia dúzia de voluntários –, especializaram-se em coletar comida doada e levar tudo a instituições de caridade que preparam e distribuem o alimento.
O Banco de Alimentos de São Paulo é uma delas. Quando surgiu, em 1999, a instituição pretendia trabalhar com restaurantes. “Mas o receio deles em doar por causa dos riscos nos levou a procurar sobras da comercialização e da produção nas indústrias e redes de supermercados”, afirma Suzete Oliveira Raimundi, que coordena o projeto. O Banco de Alimentos criou, então, uma rede fixa de doadores. Seus nutricionistas treinam funcionários das empresas doadoras para fazer a triagem da comida e as vans passam lá regularmente para buscar as doações.
Acontece que iniciativas como essa estão longe de dar conta do problema. Estima-se que haja por volta de 30 instituições como o Banco de Alimentos no Brasil, umas governamentais, outras não – entre elas, o Prato Amigo, de Salvador, o Lixo que Não é Lixo, em Curitiba, e entidades mantidas pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) em várias cidades. Juntas, elas distribuem cerca de 150 toneladas de comida por dia pelo Brasil. Um número impressionante, sem dúvida, mas que não chega a 0,5% do volume de alimentos que poderia ser aproveitado.
E de onde vem tanto desperdício? O processo que começa na lavoura e termina na sua mesa deixa muita coisa no caminho. Nos Estados Unidos, um produto agrícola é manuseado 33 vezes antes de chegar ao consumidor. É natural que muitos frutos e legumes fiquem irremediavelmente amassados e machucados ao longo de toda essa cadeia. Enchentes e pragas provocam uma perda de algo como 10% do total ainda na fase do cultivo. Outro tanto se perde na colheita, geralmente feita por máquinas que esmagam parte da produção. Muitos vegetais e produtos animais não conseguem resistir à armazenagem, outros perecem no transporte.
A matéria-prima que resiste vai então para a indústria, onde as batatas viram chips; os tomates, molho; e as vacas, hambúrguer. No processo de industrialização, 15% da quantidade inicial se perde. Entre os produtos não industrializados, a perda é semelhante: mais de 10% dos produtos frescos – vegetais, leite, ovos, carnes –, embora cheguem à feira, acabam estragados no manuseio ou passam do ponto antes que alguém os compre. E, mesmo depois da compra, o problema continua. A cultura do desperdício, tão difundida no Brasil, leva as pessoas a comprar mais do que precisam. Resultado: 30% dos produtos que foram plantados vão para a geladeira de alguém e, de lá, pro lixo. A conta final: de cada 100 produtos que saem da roça, só 40 cumprirão seu destino original, o de alimentar pessoas. Os outros 60 vão virar um problema para as companhias de coleta de lixo .
Boa parte da perda é inevitável e irrecuperável como comida (embora toda ela possa ser aproveitada de alguma forma, como você pode ler na 'Alimentos frescos, por natureza, são perecíveis'. A perda faz parte do processo. Uma enorme quantidade de comida poderia ser poupada se adotássemos processos mais racionais – já ajudaríamos muito se não comprássemos mais do que vamos comer. Mas o mais importante é que um quinto de toda a comida que vai para o lixo poderia ser aproveitada facilmente em doações. É o alimento que sobra em indústrias, quitandas, supermercados, restaurantes, açougues e hotéis. É prático e econômico aproveitar sobras desses lugares por três motivos: muita comida, relativamente poucos lugares para a coleta e, o melhor, a maioria já tem estrutura para armazenar e transportar os alimentos. Como, então, fazer isso acontecer?
O primeiro passo é aprovar logo as mudanças da legislação. Além de instituir o Estatuto do Bom Samaritano, será necessário que o Congresso crie mecanismos de regulamentação para evitar que empresários mal intencionados aproveitem a nova lei para superfaturar suas doações e, assim, sonegar imposto, ou que ONGs igualmente mal intencionadas revendam o que ganham – esse aspecto não está contemplado nos projetos em tramitação.
Outra brecha no estatuto que está parado no Congresso é quanto ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), pago por mercados, feiras e outros varejistas sobre produtos vendidos – o projeto isenta as indústrias do IPI mas esquece os comerciantes, responsáveis por 28 000 das 39 000 toneladas que o país pode recuperar. Há ainda mais um aspecto que poderia ser acrescentado à lei: permitir a doação de tempo. Explica-se: uma indústria de alimentos muitas vezes fica com suas máquinas paradas ou volta de uma entrega com os caminhões vazios. Se houvesse um incentivo fiscal a essa empresa, ela poderia doar a uma ONG distribuidora de comida tempo de máquina ou de caminhão. Nos Estados Unidos, esse tipo de doação já está sendo regulamentado. Aliás, a experiência americana dá uma amostra do impacto que a mudança da lei teria aqui.
As doações em espécie na área de serviços aumentaram estratosfericamente depois da aprovação da Lei do Bom Samaritano por lá – eram de 1% do total de doações em 1996 e passaram para 9% em 1997.
O segundo passo para resolver o problema da fome é criar uma rede de distribuição eficiente que permita que as doações cheguem a tempo para quem precisa. Para sanar a fome do país, as ONGs precisariam de recursos bem maiores. Assim, poderiam industrializar o alimento, como faz o Ceasa, para aumentar sua validade. Também seria possível atender um número bem maior de doadores se houvesse mais veículos e funcionários nas ONGs.
A fome geralmente é vista como um desses problemas incuráveis do país, a sina incontornável de milhões de pessoas. Esse modo de pensar até é conveniente. Acreditando que o problema não tem solução, fica mais fácil ignorá-lo. Mas há solução, sim. Cabe ao Congresso, às empresas e às ONGs colocá-la em prática. E a você começar a fazer sua parte – doando seu tempo ou dinheiro às ONGs que já estão na luta , pressionando políticos a aprovarem leis relevantes e favorecendo produtos de empresas que estão colaborando com o esforço.
Menos que a metade!
Só 39% da produção agrícola vira comida no prato de alguém. O resto fica pelo caminho
15% perda na indústria
8% perda no transporte e no armazenamento
20% perda no plantio e na colheita
1% perda no varejo
17% perda com o consumidor
39% chega a ser consumido
Lixo não existe
A frase acima pode soar absurda. Mas é isso mesmo que pensa o economista Sabetai Calderoni, d Universidade de São Paulo, maior especialista brasileiro em lixo e conselheiro da ONU no assunto. Segundo ele, o conceito que a sociedade tem do lixo “é produto de uma visão equivocada dos materiais”. Sabetai, autor do livro 'Os Bilhões Perdidos no Lixo', afirma que, embora nem tudo o que se joga fora possa ser aproveitado como comida, todo o lixo pode ser aproveitado de alguma forma.
Um dos maiores potenciais desperdiçados é o não-aproveitamento do lixo orgânico, que geralmente vem de restos de alimentos. Esse lixo poderia se transformar em algo útil se passasse por um processo chamado compostagem. Nele, o lixo é submetido à ação de bactérias em alta temperatura e se transforma em dois subprodutos. Um é um adubo natural, o outro é o gás metano, que é usado na geração de energia termoelétrica.
A quantidade de gás metano produzido pela compostagem de todo o lixo orgânico brasileiro que não pode ser recuperado como comida seria suficiente para alimentar uma usina de 2 000 megawatts (a usina nuclear de Angra I tem capacidade de 657 megawatts). Uma usina termoelétrica como essa produziria, em um ano, 3,6 bilhões de reais em energia. E jogamos quase todo esse dinheiro no lixo. Só 0,9% do lixo brasileiro é destinado a usinas de compostagem.
E estamos falando apenas do lixo orgânico. O inorgânico também poderia gerar lucros. A reciclagem de vidro, plásticos e metais é perfeitamente viável em termos econômicos – e já é praticada, em quantidades cada vez maiores.
O país lucraria também ao poupar o dinheiro que é gasto para dar fim ao lixo. “Lixo é o único produto da economia com preço negativo”, diz Sabetai. Em outras palavras, o processamento de lixo é o único negócio no qual a aquisição da matéria-prima é remunerada – paga-se para livrar-se dela. E paga-se muito. As prefeituras brasileiras costumam gastar entre 5% e 12% de seus orçamentos com lixo.
Sem falar que o melhor aproveitamento do lixo valorizaria dois bens que não têm preço: a saúde da população e a natureza. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, 76% do lixo brasileiro acaba em lixões a céu aberto. Esses lixões são uma ameaça à saúde pública porque permitem a proliferação de vetores de doenças. Além disso, a decomposição do lixo nesses locais não só gera o metano que polui o ar como também o chorume, um líquido preto e fedido que envenena as águas superficiais e subterrâneas.
O outro motivo para incentivar essa indústria são os empregos que ela poderia gerar. O Brasil produz 280 mil toneladas de lixo por dia. Descontando as 39 mil toneladas de alimento viável que poderiam ser facilmente extraídas desse lixo e disponibilizadas às populações carentes, ainda seria possível gerar 120 000 empregos só no processamento do resto, nos cálculos de Sabetai. Pois é. Lixo não existe. O que existe é ignorância, falta de vontade e ineficiência.
Tudo se transforma
Todo o lixo produzido pode virar alguma coisa útil. Sem exceção
37% - Reciclagem - Já são recicladas 35 000 toneladas de papel, vidro e metal todos os dias no Brasil, um número considerável
49% - Compostagem - A compostagem transforma lixo orgânico em energia elétrica e adubo. O Brasil não aproveita esse potencial
14% - Alimento humano - Nada menos que 39 000 toneladas de comida poderiam ser aproveitadas facilmente como alimento
Desperdício
Embora seja possível utilizar 100% do lixo, só 13% é efetivamente aproveitado, principalmente com a reciclagem de papel, de vidros e de metais
Por Rodrigo Velloso, publicado na revista 'Super Interessante' com o título de 'Comida é o que não falta', adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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