MORAL DO CORPO NA EUROPA MEDIEVAL
O corpo era o objeto de uma moral e de uma prática que o historiador tem dificuldade em descobrir antes do final do século XIII, porque a arte, ao menos no que resta dela, não era então decididamente realista e porque os escritos sobre esse assunto mascaram quase tudo. O princípio era de que é preciso respeitar seu corpo, pois que ele é o templo do espírito e ressuscitará, cuidar dele, mas com prudência, amá-lo ternamente como, segundo são Paulo, os maridos devem ter afeição por sua mulher: guardando a distância, desconfiando, pois o corpo é tentador como o é a mulher, ele leva os outros ao desejo, leva a desejar os outros. O mais aparente nos textos que melhor nos informam — e são os discursos, excessivos, dos especialistas do rigor, portadores da ideologia eclesiástica — é uma forte tendência a temer seu corpo, e dele libertar-se, levando aos extremos do ascetismo até a abandoná-lo aos insetos.
No entanto, ao menos na classe dominante, discerne-se nitidamente o gosto pela limpeza. O lugar conferido aos banhos pelos palácios da Alta Idade Média se mantém, no séculos XI e XII, nos mosteiros clunisianos, assim como nos usos da boa sociedade leiga. Não se inicia uma refeição ostentatória, aquela que se oferece na sala diante de grande assistência, sem que sejam apresentados aos convivas os jarros para as abluções. A água corre abundantemente, na literatura de diversão, sobre o corpo do cavaleiro errante, sempre esfregado, friccionado, pensado, à noite, na pousada, pelas filhas do hoteleiro, sobre o corpo desnudo das fadas na fonte e nas tinas, para o banho quente, prelúdio obrigatório de todos os jogos amorosos descritos pelos fabliaux, aparecendo a lavagem de seu corpo e a dos outros como uma fundação específica das mulheres, senhoras da água, doméstica ou selvagem.
Contudo, tais cuidados, porque revelam os atrativos do corpo, são vistos com um olhar muito desconfiado pelos moralistas: o banho conduz às torpezas, e veem-se os pecados, de que os homens são ameaçados ao banhar-se em companhia das mulheres, serem cuidadosamente relacionados no penitencial de Bourchard de Worms. Tal desconfiança parece ultrapassar amplamente o campo do integrismo eclesiástico. Lambert d'Ardres, o historiador dos condes de Guines, evocando a jovem esposa de um ancestral de seu herói, nadando sob os olhares das pessoas da casa no tanque ao pé do castelo, tem o cuidado de dizê-la vestida de uma camisa, branca e pudica. Conservaram-se os vestígios da estrita regulamentação que velava pela moralidade nos 26 banhos públicos abertos em Paris no final do século XIII. Estabelecimentos suspeitos, dessa vez porque demasiadamente públicos: aconselhava-se lavar o corpo na parte mais íntima da casa. Tomavam-se ainda escrupulosas precauções, que eram evidentemente bastante restritivas, no seio do privado mais bem ordenado, o monástico: em Cluny, o costame, que determinava aos monges tomar um banho completo duas vezes por ano, nas festas da renovação, Natal e Páscoa, os convidava a não descobrir suas partes pudendas. Pudor: ele está por toda parte. No leito, os monges, parece, não eram os únicos a jamais se desnudar inteiramente. Surpreendidos adormecidos em sua cabana de folhagem, Tristão e Isolda foram desculpados, pois seu traje era aquele que era decente conservar no sono: ela de camisa, ele usando seus calções. Era mesmo corrente ficar nu para o amor? O tempo de que precisam, nos contos, os maridos das Melusinas para reconhecer a verdadeira natureza de sua esposa faz duvidar disso. Como o extremo recato de que dá mostras a literatura erótica dessa época. Ninguém então exibia seu corpo, exceto os maníacos.
Ao menos, o corpo era objeto de um minucioso trabalho de ajuste. O essencial desse tratamento resultava em sublinhar a diferença dos sexos. Com efeito, era fundamental a obrigação, e os moralistas lembravam-na incessantemente, de distinguir as "ordens", de respeitar a separação primordial entre o masculino e o feminino, portanto, de não mascarar em seu próprio corpo os traços específicos de um ou do outro: veemência contra os jovens dândis que afeminavam seu vestuário; repugnância diante das raras mulheres que ousavam vestir-se de homem. Entretanto, prescrevia-se não pôr por demais em evidência os atributos sexuais. Tal preocupação de medida, de discrição, aparece nitidamente quanto à cabeleira. Ela é dita necessária às mulheres, como um véu natural, sinal de sua inferioridade nativa, de sua sujeição. Elas são então chamadas a cuidar dela, ao passo que são vituperados os homens demasiado atentos à sua. Mas quando elas saem de seu privado, quando se mostram, devem refrear-se de exibir esse feixe tentador, investido, na época de que falo, de um temível poder erótico. As conveniências lhes impõem ordená-lo, reuni-lo em uma trança, e todas as mulheres que não eram prostitutas, que não eram mais meninas e que se arriscavam em público, todas as mulheres casadas fora de seu quarto, na sala, deviam ainda encerrar essa trança em uma touca.
No entanto, tudo leva a crer que nem todos os homens e as mulheres renunciavam a servir-se dos encantos de seu próprio corpo para aumentar seu poder pessoal. Disso dá testemunho o lugar que Henri de Mondeville concede em seu livro às receitas de embelezamento e que ele justifica por duas razões. A primeira é muito prática: o médico que conhece os artifícios capazes de realçar a sedução pode ganhar, afirma ele, muito dinheiro, pois a procura é bastante grande; o segundo argumento deixa entrever muita coisa sobre o papel que desempenhava o corpo nas relações sociais: parece evidente ao autor que se deve saber usar plenamente seus atrativos físicos a fim de progredir na vida, de triunfar na competição mundana em que se fortalece justamente o espírito de individualismo.
Mondeville escrevia no limiar do século XIV, enquanto terminava um longo período de progresso contínuo no decorrer do qual parece que o corpo, no refluxo da ideologia do desprezo pelo carnal e antes que pesasse sobre o cristianismo ocidental a capa da culpabilidade sexual, foi lentamente, irresistivelmente reabilitado. Vejo o testemunho disso na maneira pela qual se modificaram as figurações da nudez. As únicas formas, ou quase, que conservamos são as da arte sacra. Ora, veem-se os escultores e os pintores, que até então habitualmente punham o acento no perverso, quase só figurando corpos desnudos investidos pelo mal ou incitando a fazer mal, mostrá-los, passado 1230 — penso nos Ressuscitados do tímpano de Borges, no Adão do Jubeu da galeria entre a nave e o coro de Notre-Dame de Paris, no Eros de Auxerre —, jovens, radiantes, em plenitude, reconciliados. Qual foi, nessa inflexão, a parte do humanismo, do espírito da Renascença, arcaizante, da corrente de naturalismo que invadia a alta cultura? Mas essa própria corrente não levava a promover a pessoa? É incontestável, em todo caso, que a beleza física contou cada vez mais no decorrer desses séculos entre as armas de que dispunha a identidade pessoal para afirmar-se no seio do coletivo.
Em "História da Vida Privada vol. 2 Da Europa Feudal à Renascença", organização de Georges Duby e tradução de Maria Lúcia Machado, Companhia das Letras, São Paulo, 2009, excertos pags.543-546. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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