ESCHER, O GÊNIO DA ARTE MATEMÁTICA
Com a ajuda da geometria, nada é o que aparenta ser no trabalho surpreendente do artista holandês.
Você já deve ter visto pelo menos uma das gravuras do artista gráfico holandês M. C. Escher. Elas já foram reproduzidas não só em dezenas de livros de arte, mas também na forma de pôsteres, postais, jogos, CD-ROMs, camisetas e até gravatas. Caso não se lembre, então você não viu nenhuma. Olhar para as intrigantes imagens criadas por Escher é uma experiência inesquecível. Tudo o que nelas está representado nunca é exatamente o que parece ser. Há sempre uma surpresa visual à espera do espectador. Isso porque, para ele, o desenho era pura ilusão. A realidade pouco interessava. Antes, preferia o contrário: criar mundos impossíveis que apenas parecessem reais. Eis porque acabou se tornando uma espécie de mágico das artes gráficas.
Seus desenhos, porém, não nasciam de passes de mágica, nem somente de sua apurada técnica de gravador. Sua obra está apoiada em conceitos matemáticos, extraídos especialmente do campo da geometria. Essa era a fonte de seus efeitos surpreendentes. Foi com base nesses princípios que Escher subverteu a noção da perspectiva clássica para obter suas figuras impossíveis de existir no espaço "real". Aliás, desde o começo, fascinou-o essa condição essencial do desenho, que é a representação tridimensional dos objetos na inevitável bidimensionalidade do papel. Brincou com isso o mais que pôde. Também há matemática na divisão regular da superfície usada por Escher para criar suas famosas séries de metamorfoses, onde formas geométricas abstratas ganham vida e vão, aos poucos, se transformando em aves, peixes, répteis e até seres humanos.
Foi essa proximidade com a ciência que deixou os críticos de arte da época de cabelo em pé. Afinal, como classificar o trabalho de Escher? Era "artístico" o que ele fazia ou puramente "racional"? Na dúvida, preferiram silenciar sobre sua obra durante vários anos. Enquanto isso, o artista foi ganhando a admiração de matemáticos, físicos, cristalógrafos e eruditos em geral. Mas essa é outra faceta surpreendente de Escher. Embora seus trabalhos tivessem forte conteúdo matemático, ele era leigo no assunto. A bem da verdade, Escher sequer foi um bom aluno. Ele mesmo admitiu mais tarde que jamais ganhou, ao menos, um "regular" em matemática. Conta-se até que H.M.S. Coxeter, um dos papas da geometria moderna, entusiasmado com os desenhos do artista, convidou-o a participar de uma de suas aulas. Vexame total. Para decepção do catedrático, Escher não sabia do que ele estava falando, mesmo quando discorria sobre teorias que o artista aplicava intuitivamente em suas gravuras.
A vida e a obra de Escher sofreram uma reviravolta depois da visita que o artista fez ao palácio mourisco de Alhambra, em Granada, construído pelos árabes no século 13, durante a ocupação da Espanha. Esteve ali por duas vezes, a primeira, em 1926, a segunda, dez anos depois. Copiando obsessivamente os ornamentos decorativos das paredes do palácio, o holandês descobriu os segredos da divisão regular do plano. Escher podia não saber nada de matemática, mas os árabes, sim. Um conhecimento, aliás, milenar. Usando polígonos regulares e congruentes, como triângulos, quadrados e hexágonos, eles criaram mosaicos de rara beleza, preenchendo as superfícies sempre sem sobreposição e sem deixar espaços ou lacunas entre as figuras.
Isometria decorativa
Ao copiá-los, Escher acabou descobrindo os movimentos empregados para que o ornamento cubra-se a si mesmo: a translação, a rotação, a reflexão e a translação refletida, transformações que os matemáticos chamam hoje de isometrias, pois têm a propriedade de preservar a distância entre pontos. Alguns padrões permitem apenas um desses movimentos como simetria, outros, uma combinação de dois ou mais deles. Existem, ao todo, 17 grupos diferentes de combinações isométricas, que deixam um determinado ornamento invariante. Escher conseguiu chegar neles através do estudo sistemático e da experimentação. "Longe de ser um fato trivial ou intuitivo, esses grupos foram classificados, em 1891, pelo cristalógrafo russo I.S. Fedorov", esclarece o professor Sérgio Alves, do Departamento de Matemática do Instituto de Matemática e Estatística (IME), da Universidade de São Paulo, que, com freqüência, utiliza os desenhos do artista holandês em suas aulas de Geometria. "É notável que Escher, sem qualquer conhecimento prévio de matemática, tenha descoberto todas essas possibilidades. Quanto aos quatro movimentos, são os únicos possíveis de serem aplicados sobre um padrão plano de modo que o resultado obtido seja exatamente a figura original. Em termos matemáticos, são as únicas isometrias do plano. O estudo desses movimentos é chamado de Geometria das Transformações e suas leis governam a construção dos desenhos periódicos", explica.
Ciclos sem fim
A isometria da reflexão é brilhantemente utilizada por Escher na xilogravura Dia e Noite, de 1939, talvez o seu trabalho mais conhecido. Quando o espectador fixa o olhar nos pássaros brancos, consegue vê-los voando para a direita, em direção à noite que recobre uma pequena aldeia à beira de um rio. Mas se o olhar se detém sobre os pássaros negros, o que se vê são aves sobrevoando uma paisagem iluminada de sol, que é exatamente a imagem refletida da paisagem noturna. Aos poucos, Escher vai ousando mais, sobretudo quando inicia seus "ciclos", onde a divisão regular da superfície aparece misturada a formas tridimensionais, geralmente num circuito sem fim, onde uma fase se dilui na outra. A litogravura Répteis, de 1943, é um bom exemplo disso. Nela está reproduzido o próprio caderno de esboços de Escher, colocado em perspectiva sobre uma mesa.
Subitamente, um dos répteis ali esboçado, criado a partir de uma base hexagonal, sai do papel e dá início a um breve ciclo de vida tridimensional. Sobe por um livro de zoologia, passa por um esquadro até alcançar o alto de um dodecaedro. Ali, no ponto máximo de sua aventura, sopra fumaça pelas narinas em triunfo, antes de, resignado, retornar à bidimensionalidade do caderno de esboços.
Cada vez mais fascinado pelos paradoxos visuais, Escher acabou chegando na criação de mundos impossíveis. Sem dúvida, essa é uma das faces mais intrigantes de sua obra. Litogravuras como Belvedere, de 1958, e Queda de Água, de 1961, são bons exemplos dessa fase.
"Nesses trabalhos, o artista joga com as leis da perspectiva para produzir surpreendentes efeitos de ilusão de ótica", explica Sérgio Alves. Mas Escher tinha um propósito muito especial na hora de elaborar essas paisagens insólitas: fugir do óbvio. Ele sabia que uma situação impossível só causa impacto no espectador quando não é imediatamente perceptível. "Se você quer que algo impossível chame a atenção, primeiro você deve convencer a si mesmo e só então o seu público", dizia Escher. "O elemento impossível deve ficar tão disfarçado que um observador desatento nem o perceberá."
Eis porque há sempre um clima misterioso envolvendo suas imagens. Belvedere mostra uma construção de arquitetura absolutamente impossível no mundo real. Mas, num primeiro momento, o espectador não percebe nada de errado. Só a observação mais atenta das colunas do edifício, assim como a escada de mão, apoiada ao mesmo tempo no interior do prédio e numa parede externa, dá pistas da impossibilidade.
Truques óticos
O segredo de tal construção aparece na própria gravura, no pedaço de papel sobre o chão quadriculado, onde há o desenho de um cubo convencional", explica Sérgio Alves. "Dependendo do ponto de vista, o poliedro pode ser interpretado como um cubo transparente visto de cima ou visto de baixo. Em ambos os casos, os dois pares de retas, que no desenho se interceptam nos pontos assinalados por círculos, não podem ser realizados no espaço tridimensional." O homenzinho sentado no banco segura nas mãos um modelo deste cubo inviável. Foi com base nessa estrutura que Escher desenhou Belvedere.
Nesta mesma linha de ilusões óticas está a litogravura Queda de Água. "Num primeiro olhar, o observador vê a água que passa por uma calha de tijolos cair e movimentar uma roda, para depois continuar o seu curso", descreve Sérgio Alves. "Mas numa observação mais cuidadosa descobre-se que a água corre continuamente para baixo e, ao mesmo tempo, afastando-se do espectador. De repente, o ponto mais afastado e mais baixo torna-se idêntico ao ponto mais próximo e mais alto, o que mantém o curso de água numa espécie de moto contínuo."
Amor aos poliedros
Cada vez mais assediado pelos matemáticos, Escher acabou muitas vezes se inspirando em suas novas descobertas. O segredo de Queda de Água, por exemplo, está na figura do tribar, uma construção geometricamente impossível criada pelo matemático R. Penrose, em 1958. Escher utilizou três dessas figuras ligadas entre si como base da litogravura. O mesmo aconteceu com as xilogravuras onde aparece a Faixa de Moebius, forma desenvolvida pelo matemático alemão Augustus Möbius (1790-1868), usada na demonstração das propriedades básicas da Topologia. A sugestão de introduzi-la em sua obra partiu de um matemático inglês, em 1960. Até então, Escher nunca tinha ouvido falar nela. A grande curiosidade desta fita é o fato de possuir "um lado só", o que imediatamente fascinou o artista holandês. Produziu a partir dela duas xilogravuras, Laço de Moebius I, de 1961, e Laço de Moebius II, de 1963. Neste segundo trabalho, Escher acrescentou nove formigas que aparentemente circulam por lados diferentes do laço.
Mas seguindo-as com o dedo, descobre-se que estão caminhando o tempo todo do mesmo lado. Escher foi atraído também pelo formato dos sólidos geométricos, em especial dos poliedros. Seu interesse nasceu a partir da observação das formas dos cristais, possivelmente influenciado por seu irmão, que era geólogo e autor de um manual sobre mineralogia e cristalografia. Realizou diversos trabalhos explorando as possibilidades dos poliedros, entre eles, a conhecida xilogravura Estrelas, de 1948. Maravilhado por suas formas, chegou a declarar seu amor por eles, dizendo que no caos da sociedade moderna "representam de maneira ímpar o anelo de harmonia e ordem do homem". Mas ressalvou: "Ao mesmo tempo nos assusta sua perfeição e nos faz sentirmos desvalidos. Os poliedros regulares têm um caráter absolutamente não humano. Não são invenções da mente humana, já que existiam como cristais na crosta terrestre muito antes do homem entrar em cena".
Texto de Cláudio Fragata Lopes publicado em "Galileu" edição 88. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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