CARNES MATURADAS A SECO


Estragada, não. Melhorada. Pela aparência, é difícil imaginar que esse negrume esconda uma carne macia, de sabor intenso. Mas pode acreditar. A peça está deliciosa, resultado do processo de dry-age (diz-se drai-eidje), ou maturação a seco, que altera – e melhora – significativamente a carne.

Dry-age é o processo pelo qual a carne fresca descansa em temperatura controlada, de 0ºC a -2º C, por período indeterminado, e vai perdendo líquido, criando uma casca.

Por dentro é que a mágica acontece: as enzimas da carne quebram proteínas, o que tem duplo efeito: maciez e sabor intenso (da quebra das proteínas, têm-se aminoácidos responsáveis pelo umami, o quinto sabor, que excita o paladar e faz querer repetir o bocado).

Nos Estados Unidos, já faz alguns anos que dry-age virou moda. Steakhouses e restaurantes, de leste a oeste do país, exibem no cardápio a idade avançada dos cortes que servem.

Por aqui, a coisa está começando, com chefs fazendo testes e envelhecendo carnes na própria cozinha; na Unicamp, uma pesquisa em andamento tenta comparar cientificamente a carne fresca com a amadurecida a seco; e alguns fornecedores de restaurante estudam como dar escala ao processo, que envolve cuidados especiais.

Discussão matureba

Toda carne matura naturalmente após o abate – é o que torna possível mastigá-la, já que nas primeiras 24 horas o estágio de rigor mortis deixa as fibras tensas. O que a indústria percebeu, há algumas décadas, é que essa maturação natural poderia ser conduzida e controlada, basicamente de duas maneiras.

Na maturação a seco, a carne é posta em ambiente ventilado e com temperatura controlada. Na úmida, é embalada a vácuo pouco depois do abate. Sem contato com ar, retém líquido, o que gera menos perdas, sabor mais ácido, sanguíneo, e carne com mais suco. Praticamente toda carne vendida no Brasil passa pela chamada wet-age.

Há algum tempo, indústria, chefs e pesquisadores tentam entender de forma definitiva se há diferença relevante entre a maturação a seco e úmida. E qual o melhor processo.

“Não gosto do sabor da carne maturada a vácuo. Nem da textura, parece que vai esfarelar. O dry-age mantém a firmeza e a carne fica menos ácida”, diz Alberto Landgraf, chef do Epice, em São Paulo. Ele envelhece a seco todas as carnes que serve, mas não faz alarde disso. “Como a carne (maturada a seco) tem menos líquido, na hora de grelhar, facilita as reações de Maillard, que dá aquele aspecto marrom caramelizado.”

Outro que se empolga com a carne envelhecida a seco é o chef Julien Mercier. “Estou fazendo testes. Tenho peças que vou levar a 70, 80 dias. Mas com menos, uns 20 dias, já é muito perceptível diferença.” Ele conta ter se inspirado no livro de Magnus Nilson, que, no celebrado restaurante Fäviken, na Suécia, trabalha com carnes maturadas por longos períodos, às vezes um ano inteiro.

Entre os entusiastas alinha-se também Jefferson Rueda, do Attimo, chef e ex-açougueiro. “Quando provei nos Estados Unidos, fiquei maluco. É muito bom. Só que a carne tem que ter qualidade, senão não tem milagre.” No seu restaurante, no entanto, ele diz não ter espaço para fazer o processo e teme a confusão legal sobre a prática.

“É uma área nebulosa”, diz Marcelo Shimbo, da Prime Cater, que fornece carnes maturadas a vácuo para a rede Pobre Juan. “A lei não diz que não pode fazer. Mas não diz que pode.”

Nem todo mundo vê com bons olhos carnes envelhecidas a seco. “Nos EUA, o cara olha aquela coisa preta e se baba; o brasileiro não, ele quer a carne vermelha, suculenta”, diz Istvan Wessel, da Wessel Carnes. “Não faço nem para testes. Sem o vácuo, abre-se uma porta maior para a contaminação.”

De fato, a exposição da carne permite a proliferação microbiana, porém a temperatura – entre 0°C e -2°C – previne a contaminação. A própria casca que se forma impede a entrada de bactérias nocivas.

Secos e molhados

Quando a carne matura a seco, ela perde volume – porque perde líquidos. Ainda por cima, quando vai ser preparada, é preciso descartar a casca ressecada. A parte externa acaba funcionando como uma embalagem: ela protege a carne da contaminação por bactérias indesejadas. Com esses dois aspectos, no processo de dry-age perde-se cerca de 30% do volume original da carne. Esse é um dos motivos que faz ela chegar ao prato mais cara.



Carne maturada a seco não é carne-seca. Veja o que é o quê:

Dry-age | Maturação a seco, sob temperatura controlada (de preferência entre 0º C e -2ºC) em câmara com ventilação

Wet-age | Maturação úmida: a carne é embalada a vácuo e descansa por uma a três semanas em ambiente refrigerado

Carne-seca | É uma forma de conservação. A carne, salgada, é empilhada em mantas e depois seca ao sol.

Carne de sol | Outro método de conservação da carne. Nele, a carne é salgada e descansa em lugar ventilado (hoje em dia sem exposição ao sol)

Charque | Método de conservação de carne mais parecido com a carne-seca, é típico do sul do País. Leva ainda mais sal no preparo, que desidrata a carne por três dias. Depois desse período, ela é posta para secar exposta ao sol.

Será que pega?

Sylvio Lazzarini, do Varanda Grill, duvida que o dry-age vá pegar no Brasil. “As pessoas não vão querer pagar mais pelo dry-age. E o custo de fazê-lo é alto.” Um caso recente corrobora seu palpite: entre 2010 e 2011, a Dinho’s Place fez uma câmara de maturação a seco. “Os clientes não viam a diferença do dry e do wet-age”, conta Paulo Zegaib, chef da casa, que desistiu do método. Ainda assim, há na indústria quem aposte na tendência. Henrique Freitas, gerente do programa Swift Black, linha premium de carnes da gigante JBS, afirma: “Temos interesse, mas é preciso equalizar demanda e custo”. Shimbo, da Prime Cater, estuda fazer dry-age em escala comercial. “Visitei dez frigoríficos nos EUA. Aqui no Brasil não sei se será viável, se o consumidor vai querer pagar mais pela carne maturada a seco.”

Não tente em casa

Pode ser que você fique com vontade de envelhecer sua carne em casa. Afinal, a oferta de peças maturadas a seco é escassa. Mas, atenção aventureiros, nesse caso é melhor deixar a tarefa nas mãos dos profissionais. Fazer dry-age com segurança exige um controle de temperatura que a geladeira comum doméstica não oferece. O risco é ter carne podre em vez de envelhecida. “A maturação é a quebra das proteínas por enzimas. A putrefação é a quebra das proteínas por bactérias”, define o professor de Engenharia de Alimentos da Unicamp Sergio Pflanzer.

Jeffrey Steingarten, o crítico gastronômico da Vogue obsessivo com testes, relata sua tentativa de maturar a seco em casa. Não foi simples: teve que esvaziar a geladeira, botar um ventilador, conseguir um medidor de umidade. A novidade agora é que está em fase final de desenvolvimento, nos EUA, o The Steaklocker (foto acima), geladeirinha com pinta de adega feita para maturar carnes a seco. Mas, enquanto ele não chega ao mercado, leia o ensaio de Steingarten (está no livro Deve Ter Sido alguma Coisa que eu Comi). E, se a vontade não passar, vá comer carne maturada no Epice.

Na hora do garfo, a carne dry-aged fica melhor, sim

É possível perceber, no garfo, se a carne é dry ou wet-aged? Será que a superioridade da maturação a seco é apenas uma estratégia de marketing de chefs e frigoríficos para cobrar mais?

Essas foram as perguntas que nortearam a degustação às cegas no restaurante Pobre Juan, para a qual convidamos os chefs Alberto Landgraf (Epice) e Julien Mercier (Le Bilboquet) e o empresário Arri Coser (NB Steak, ex-Fogo de Chão).

Pusemos à prova duas peças de carne idênticas: do mesmo corte, de um mesmo lote de animais da raça britânica Hereford e maturadas pelo mesmo tempo (21 dias). Uma foi maturada a seco – em câmara a 0°C com ventilação forçada – e outra passou por maturação úmida – foi embalada a vácuo, dois dias após o abate.

Hora de provar. Primeiro quesito: aparência. A carne maturada a vácuo parecia carne fresca. A que descansou a seco parecia pedra preta, com veio de gordura amarelada e rígida – mas, tirada a casca, um vermelho rosado se revelou. E veio um leve odor que lembrava queijo.

Os bifes, sem sal, foram da brasa para a mesa. Assim, assados, era impossível dizer qual era qual no olho. Mas, na boca, Alberto Landgraf logo cravou: “Não há dúvida. Uma está muito mais ácida. É a wet-aged”. Além disso, uma peça soltava muito mais suco; era, claro, a da maturação úmida.

A prova definitiva dos resultados do dry-age veio na última hora. O fornecedor Marcelo Shimbo chegou trazendo “na manga” uma peça maturada a seco por 75 dias. Estava ainda mais macia, amanteigada, algo adocicada, menos “sanguinolenta”, mais complexa que as outras duas. Depois dos elogios à mais “idosa” das peças, Mercier ponderou: “Considerando que maturou três vezes mais que a de 21 dias, não dá para dizer que esteja três vezes mais macia e saborosa”. A maturação é crescente até duas, três semanas; depois, segue em ritmo lento.

Finda a prova, jaziam alguns restos nos pratos. “É excelente o resultado do dry-age. Mas será que o brasileiro vai querer?”, perguntou o empresário Arri Coser. “O povo está acostumado é com isso”, disse, apontando a carne suculenta que inundava o prato de caldo vermelho – a que passou por maturação úmida, embalada a vácuo.

Conclusão: o dry-age faz diferença, sim – na maciez, um pouco, e, principalmente, no sabor. Mas será que o público vai pagar mais por isso?

Texto de José Orenstein publicado no suplemento "Paladar" anexo ao "Estado de S. Paulo" de 26 de junho de 2014 com o título de "Por fora, parece uma tora. Por dentro, macio e intenso". Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.




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