O VELHO E O NOVO COMÉRCIO DE GADO EM MINAS GERAIS


O território mineiro ao longo do século XIX foi marcado pela expansão das atividades ligadas ao comércio de abastecimento, em especial aquele direcionado ao consumo da Corte e, posteriormente, à capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro.Dentre as atividades da economia mineira oitocentista a pecuária teria papel especial.Entretanto, mesmo tratando-se de uma atividade de destaque na Província, ainda no século XIX, sua estrutura permanecia intocada: o sistema de comercialização e criação pouco havia se transformado daquilo que fora no período colonial. Apesar de importante papel na abertura de fronteiras e integração do mercado interno, o gado continuava criado extensivamente, precisando percorrer longos percursos entre pastos, invernadas e mercados consumidores, construindo uma complexa rede comercial envolvendo negociantes, criadores, invernistas e marchantes.

Até meados do século XIX a comercialização de animais dividiria a pauta de exportações mineiras com ouro e diamantes, para assumir definitivamente a segunda posição a partir de meados da década de 1860, perdendo apenas para o café que entre 1818-1884 perfez 47,1% do total das exportações. Na média do período, a pecuária representou 25,2% do total das exportações mineiras, ou cerca de cinqüenta por cento se excluirmos os valores referentes ao comércio de café.

Assim, nas primeiras décadas do século XIX, o gado bovino era criado sem maiores recursos nas diversas regiões da Província de Minas Gerais, que eram abastecidas também pelas criações existentes no Brasil Central. Os criadores vendiam seu gado nas feiras livres para os invernistas, estes concentrados na região entre Alfenas e São João del Rei, enquanto a procedência do gado estava espalhada pelo território mineiro e áreas adjacentes: nas bacias do Rio Grande e São Francisco, no oeste e noroeste mineiro, nas regiões do Triangulo Mineiro, e nas Províncias do Mato Grosso, Goiás e oeste paulista. O gado transacionado era conduzido para zonas de invernada e engorda e, mais tarde, seguiria em direção ao Rio de Janeiro, local em que os marchantes se responsabilizavam pelo corte e distribuição da carne pelo mercado.

A cidade de São João del Rei, assim, em parte, recebia o gado das regiões Norte e Sudoeste da Província, fazendo o papel não apenas de uma região de invernadas, como também de um lugar que concentrava as transações mercantis, desempenhando a função de intermediário entre o mercado do Rio de Janeiro e as regiões de abastecimento. Entretanto, essa estrutura de comercialização de gado que legou às elites são-joanenses papel de articulador comercial e financeiro entre Rio de Janeiro e Minas Gerais até meados do século XIX, vai perder espaço quando marchantes associados ao arrematante e pecuarista sul Mineiro, Francisco José de Mello e Souza, organizam uma companhia para monopolizar o comércio de carne para o Rio de Janeiro. Os relatórios da Câmara Municipal de São João del Rei apontariam uma tendência a queda da atividade no final da década de 1850, quando Mello e Souza teria aberto 30 açougues na capital, redirecionando para o Sul de Minas a organização do comércio de carne da Província.

Articulando-se com o Sul de Minas, o Triângulo Mineiro e a região do Sudoeste de Minas, já em meados do século XIX, foram se tornando regiões ainda mais relevantes na participação dos negócios com o gado. Cidades como Uberaba, Passos e São Sebastião do Paraíso, no início dos oitocentos, não eram propriamente cidades de criação de gado, mas crescentemente concentrariam a chegada do gado da fronteira, tornando-se um ponto importante de invernada. Entre os fatores que permitiram a expansão desse tipo de atividade na região, e que assumiria significativo papel a partir de 1850, estava a excelente fertilidade dos pastos formados com “capim gordura”.  O sertão de Goiás, como era conhecida a região do Triângulo no século XVIII, evoluiria então, de mera atividade de subsistência para se tornar centro de engorda das tropas e, inclusive, de criação de gado.

Assim, em meados do século XIX, as boiadas seguiriam rumo ao Sul da Província, com trilhas pelos rios Verde, Grande e Preto, alcançando então o Rio de Janeiro. O gado que deslocado de Minas Gerais dificilmente seguia para ser comercializado em São Paulo – que tinha seu próprio abastecimento. Todavia, o deslocamento para a fronteira paulista também foi opção para que o gado seguisse em direção ao principal mercado consumidor de carne verde do país, a capital do Império, via Vale do Paraíba. Aproveitando-se das rotas do gado, como descreve o Almanach Sul-Mineiro, as cidades de Caldas e Alfenas também passaram a ser incorporadas como áreas de invernada e de criação na década de 1870. 25 Tais mudanças sedimentavam a crescente importância exercida pelo sul da Província tanto na organização política, como núcleo econômico, tornando-se autônoma da zona de influência da Comarca do Rio das Mortes.

Assim, ao longo do século XIX vai se consolidando a posição da fronteira sul como principal caminho das exportações provinciais. Entre 1839 e 1884, tal região respondeu por 29% das exportações totais da Província, e, se excluirmos o café que assumiria papel decisivo nas rendas de Minas Gerais a partir de 1850, por meio da produção da Zona da Mata, a fronteira representaria 67% do total das exportações. Destas restantes, 70% eram originárias das atividades relacionadas à pecuária. O Sul de Minas concentrava, desta forma, as típicas atividades ligadas ao comércio de abastecimento, concentrando o trânsito do fumo (91%), suínos (90%), bovinos (80%), queijos (67%) e toucinho, banha e carne de porco (54%).

A partir de fins do século XIX, o gado que partia da região do Triângulo Mineiro, depois da engorda nas invernadas Uberaba, ou cruzando pela invernada de Passos, passou a percorrer dois trajetos para atender seus mercados consumidores: ou era levado para Três Corações do Rio Verde, comercializado posteriormente para o mercado do Rio de Janeiro, ou então, corria em direção à cidade de Barretos, atendendo daquela cidade o mercado paulista. Conforme relata Antônio Grilo sobre Passos:
"Toda a pujança do município brotava das patas de bois invernados... Mas, não só. Esse tipo de pecuária estava profundamente atrelado ao comércio. O ciclo ‘produtivo’ começava pela compra de gado nos sertões e só se completava com a exportação das boiadas aos abatedouros da Corte, através do ‘marchand’ e dos ‘comércios’ de embarque, em Três Corações do Rio Verde."

Mas na transição para o século XX começaria a marcar, inclusive, um período em que o comércio de gado sofreria profundas transformações. Era, o que podemos chamar, da passagem da velha estrutura de comercialização para a nova, que seria influenciada pelas novas rotas de comércio, pelo transporte ferroviário e pela gradual substituição dos agentes vinculados a essa atividade. Em Passos essa mudança aparece com o abandono das velhas práticas de invernada, que nas palavras de Antônio Grilo teria feito a riqueza do município nas décadas anteriores, para o aparecimento da criação de gado de raça, com a introdução do zebu, e a pecuária leiteira.

E, para o Sul de Minas, a cidade de Três Corações do Rio Verde surgia no mapa da comercialização do gado mineiro com a inauguração da Estrada de Ferro Minas e Rio na cidade em 1884. A partir desse investimento inicial, outras ferrovias seriam criadas na região, de maneira que, entre 1890 e 1906, a malha ferroviária do Sul de Minas passaria de 246 Km para 923 Km, enquanto aquela referente a Zona da Mata, local em que se concentravam os principais investimentos de Minas no período, em decorrência da produção cafeeira, cresceria apenas 86 Km.30 Em suma, as estradas de ferro redefiniriam os trajetos pelo qual a gado seguiria seu caminho para o mercado consumidor: as pastagens e invernadas tradicionais dos caminhos para o Rio de Janeiro perdiam espaço para novas localidades próximas às estações ferroviárias. É nesse contexto que, aproveitando-se de condições favoráveis, o governo de Minas Gerais reafirmaria a prática do abastecimento como atividade central de sua economia, criando por intermédio da ação do estado, o chamado mercado pontual, isso é, a Feira de Gado de Três Corações.

Excerto do texto de Alexandre Macchione Saes e Elton Rodrigo Rosa, apresentado no Seminário Hermes & Clio na FEA\USP em dezembro de 2010, com o título de "Mercado Pontual: Atuação Estatal na Formação da Feira de Gado de Três Corações (1900-1920).Alexandre Macchione Saes era professor de Economia FEA-USP e Elton Rodrigo Rosa era discente do bacharelado interdisplinar de Ciência e Economia da Unifal. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. Texto integral disponível em www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/.

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