O PRIMEIRO MATADOURO PÚBLICO DA BAHIA


O abastecimento de carne verde em Salvador, não pode ser analisado ignorando a importância do Matadouro Público da Bahia, como o principal espaço regulador do abate e corte do gado, a ser distribuído entre os talhos e pontos de venda da capital. Referências sobre o Matadouro em Salvador, remontam ao século XVIII, e relacionam este espaço a mudanças urbanas e sanitárias, propostas e levadas a efeito pela municipalidade.

Ao final do percurso da Estrada das Boiadas, passando pelos pastos e pelo curral do Conselho, chegava-se ao Matadouro Público de Salvador, onde o gado encaminhado para o abate no dia anterior, após o acerto do preço de venda de sua carne com o respectivo criador ou agente deste, pernoitava no curral do Matadouro para ser abatido na manhã do dia seguinte.

As primeiras alusões à existência de um matadouro público em Salvador, situam-no no século XVIII, na área contígua ao Mosteiro de São Bento, denominada à época de Hortas de São Bento e situada onde atualmente fica a estação Barroquinha.

“Na Bahia colonial, a matança do gado se fazia nas imediações do Mosteiro de São Bento e o comércio de seus subprodutos espalhava-se por diversas ruas ali por perto, em açougues ou simples tabuleiros.Os currais, no ano de 1757, segundo descrição da Freguezia de São Pedro, localizavam-se na Praça da Piedade.”

Durante todo século XVIII, e até o início do século XIX, foi ali que existiu o Matadouro Público, ainda abastecido do gado que vinha pela Feira do Capoame. Em vários espaços próximos às Hortas de São Bento, existiram currais menores onde o gado esperava o abate,desde o dia anterior, para a madrugada do dia seguinte. Existem referências a currais na Praça da Piedade (século XVIII), nos Barris, Campos do Barbalho e Largo do Campo Grande,tratando-se de regiões próximas a São Bento; também na Península de Itapagipe, em Brotas eno Cabula, localidades mais afastadas do centro da cidade (século XIX).

A presença do Matadouro, através do trato com o gado, nas localidades próximas às Hortas de São Bento, acabou por incomodar a população e o poder público. A preocupação com a salubridade da população, alertou a Comissão de Higiene Pública, uma junta de médicos contratados pela Câmara Municipal de Salvador para fiscalizar as condições de higiene da cidade. A Comissão estabeleceu que não era apropriado às pessoas, viverem sob os riscos que a matança e os dejetos oriundos dela, ocasionavam á saúde da população soteropolitana oitocentista; convém lembrar que os dejetos, as vísceras e as carcaças das reses abatidas, eram jogados ali mesmo, aproveitando-se do córrego que ainda hoje passa pela localidade e que se convencionou chamar popularmente de “Rio das Tripas”, exatamente por receber esse material,que rapidamente entrava em decomposição, e provocava muitos incômodos, como o mau cheiro e doenças transmitidas por diversos agentes, como ratos e insetos.

“(...) Das hortas feitas no brejo limite da doação saía o rio que foi durante anos a vala da cidade, defesa natural da parte leste – a mais vulnerável – do sítio primitivo da cidade. Lá, à margem, tão logo houve gado disponível, fizeram-se os abates para consumo dos moradores. Das vísceras lançadas no curso d‟água, um topônimo – Rio das Tripas. Para entulhar o alagadiço, fez-se da orla do pântano o depósito de lixo da cidade(...)”.

Nas três primeiras décadas do século XIX, a situação pouco havia mudado, mas as autoridades públicas já apontavam sobre a necessidade de providenciar a drenagem (dessecação) e limpeza, da região onde existia o Matadouro, devido à sua proximidade do centro urbano. Iniciou-se então, em 1849, o projeto de alargamento, limpeza e cobertura do canal pluvial do Rio das Tripas, que se denominou “Rua da Vala”, sendo concluída a sua primeira etapa somente em 1862, chegando até às imediações dos campos do Barbalho.Construída ao longo de vários anos, e em várias etapas, a Rua da Vala, iniciava-se exatamentenas Hortas de São Bento e descia em direção ao Largo das Sete Portas, daí até o Largo dos Dois Leões e depois indo em direção ao Engenho Retiro e às chácaras do Cabula.

Ao mesmo tempo em que as obras da Rua da Vala estavam em andamento, as autoridades provinciais e municipais, sob pressão dos cidadãos soteropolitanos, gente comum, párocos das Freguesias centrais (chamados de juízes de paz, muitas vezes, representantes dos reclames da “arraia miúda”), e da imprensa (com destaque para os periódicos “O Alabama” e o “Jornal da Bahia”), que constantemente enviavam cartas à Câmara Municipal, reclamando das condições de salubridade, nas áreas próximas ao charco que havia se tornado as Hortas de São Bento;trabalhavam na transferência em definitivo do Matadouro Público.

O terreno ideal para as instalações do novo matadouro seria o Engenho Retiro, nas imediações da Fazenda da Campina; porém, dificuldades de ordem judicial, envolvendo disputas por herança daquelas terras, impediram a efetiva compra das terras do Engenho Retiro pela Câmara Municipal, sob autorização da Presidência da Província em 1855115. A solução diante deste impasse, foi transferir o Matadouro Público para os Campos do Barbalho, naFreguesia de Santo Antônio Além do Carmo, encaminhando para seus currais a maior parte do gado que chegava dos “Pastos do Conselho”, dentro dos limites da municipalidade.
O Barbalho fazia parte da Estrada das Boiadas e, desde o século XVIII, quando era conhecido como “Currais de São José”, era utilizado como área de pastagens do gado, “entrado” para o abastecimento da cidade. Ocasionalmente também foi utilizado para o abate de gados, em um matadouro de menor importância. Em 1854, em resposta a pressões da Comissão deHigiene Pública, a Câmara Municipal publicou no Jornal da Bahia a seguinte nota

.... A junta de hygiene pede a esta câmara a remoção do matadouro, visto que o julga em logar prejudicialà salubridade, assim também a limpeza dos becos do Caes Dourado, e Corpo Santo, e as ladeiras da Barroquinha, e Caminho Novo do Taboão, bem como todos os mais becos e ruas, onde se achem montureiras. Entende o abaixo assignado que se deve responder a illustrada juncta quanto à 1 parte, que em breve será satisfeita a referida mudança, por isso nesse empenho se acha a actual câmara desde o momento de sua posse, e só por motivos de boa escolha, é que até não se deu principio, o que se espera muito cedo faze-l(...) Paço da câmara, 28 de novembro de 1853. Dr F. Horta.”

Com o adiantamento das obras da Rua da Vala, o Matadouro Público foi finalmente transferido para a o Barbalho, fora da zona urbana mais densamente povoada da capital e mais próximo dos Pastos do Conselho, onde o gado recém chegado do sertão pastava por algum tempo, até se recuperar do desgaste de viagens longas que exauriam aqueles animais. Essa mudança dinamizou o crescimento urbano de Salvador em direção àquela área, em um movimento muito parecido com o que aconteceu no centro de Salvador, enquanto o Matadouro estava instalado nas Hortas de São Bento, quando as ruas próximas dedicavam-se ao comércio dos retalhos de carne verde, em vários pontos de venda e pequenos açougues, e que até hoje possuem referências a isso, através dos nomes desses logradouros.

“Posteriormente, quando foram construídos os Currais do Conselho, onde hoje se encontra o bairro do Barbalho, todo um conjunto de nomes ligados ao comércio e abate de gado surgiu naquele local, e ainda ali permanece como endereços certos. Entre outros exemplos, contam a história desta atividade econômica os batismos das Ruas dos Ossos, dos Currais Velhos, da Matança, do Gado, do Açouguinho, o Largo da Quitandinha do Capim.”

Desta forma, processou-se o mesmo movimento na região do Barbalho, e o Matadouro Público ficou instalado nesta localidade durante parte do século XIX, até ser transferido para o Engenho Retiro em 1873. É este Matadouro localizado no Barbalho o objeto deste capítulo.

O local exato do prédio do Matadouro, segundo o mapa do engenheiro Adolpho Morales de Los Rios, era nos campos ao lado da Fortaleza do Barbalho, suas imediações até hoje detém topônimos ligados à atividade pecuária, como a Rua do Gado, dos Ossos, de São José de Baixo,dos Currais Velhos e dos Marchantes. O Barbalho foi uma escolha viável para a instalação do Matadouro Público, após o início das obras de canalização do Rio das Tripas e da construçãoda Rua da Vala, na Barroquinha, pois mesmo enquanto o antigo matadouro situava-se nas Hortas de São Bento, a área dos “Campos de São José”, já era utilizada para a pastagem e descanso das boiadas que terminavam seu trajeto, vindas do sertão.

O espaço físico do Matadouro Público da Bahia não é descrito em minúcias, apenas se pode idealizar sua configuração, a partir de informações constantes nas solicitações ao poder público municipal, para a recuperação de suas instalações. Sua localização era estratégica, pois ficava próximo à fonte de água do Queimado, que segundo Consuelo Novaes Sampaio, foi uma das mais importantes da cidade por ter água potável, desde o século XVIII. Esse recurso era indispensável para a atividade de matança, a partir de 1852.

Ao redor do prédio principal do Matadouro Público, havia uma grande área ocupada pelo curral do Matadouro, onde as reses que aguardavam o abate na madrugada do dia seguinte,pernoitavam. As instalações dos currais eram amplas, pois semanalmente em Salvador, matava-se uma média de 400 a 500 animais em épocas de abastecimento regular, segundo informações da Superintendência do Matadouro Público, em 1866. Além das instalações do curral,também existiam os tanques para captação dos eflúvios da matança, e uma grande área que servia como cemitério de reses, onde eram enterradas as carcaças e os animais sacrificados por motivo de doenças.

No prédio principal, o piso onde se fazia a matança dos animais era coberto por ladrilhos,na tentativa de melhorar a salubridade da região onde estava o Matadouro, impedindo que o sangue se depositasse e fosse absorvido pelo solo. O prédio em si era comprido e largo, com o telhado caindo em duas águas; a parede frontal do matadouro possuía um portão grande por onde grupos de cerca de 30 animais eram levados de cada vez até o imenso salão, onde seriam derrubados a golpes de machado na cabeça e estrebuchavam no piso antes de serem imolados;quanto ao piso, possuía leve inclinação das laterais em direção ao meio, de forma que o centro do chão da sala de matança formasse um pequeno escoadouro por onde o sangue e a água utilizada para a limpeza das carnes escorriam até os tanques de captação fora do prédio, algo parecido com os atuais esterquilínios. Anexo ao espaço da matança, ficava o gabinete da Superintendência, onde eram organizados os atendimentos aos criadores e funcionários,encaminhados os mapas de distribuição das carnes aos talhos, e decididos os preços das libras de carne para publicação nos jornais diários.

Excerto da dissertação de Rodrigo Freitas Lopes com o título de "Nos Currais do Matadouro Público: O Abastecimento de Carne Verde em Salvador no Século XIX (1830-1873)"  para mestrado em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia em 2009. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. Texto integral disponível em http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/.

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