CEARÁ- A CIVILIZAÇÃO DO BOI


Responsável pelo primeiro ciclo econômico do estado do Ceará,o gado foi fundamental no processo de colonização de nossas terras.

Diferentemente de outros estados, onde a população se deslocava do litoral para o interior, foi a partir do sertão que começou o povoamento do Ceará. E um animal em particular – o boi – marcou os passos dessa caminhada, deixando mais do que rastros e estrumes pela terra seca e empoeirada do semiárido cearense. No início oficial da nossa história, está registrado que as terras daqui não despertaram a atenção dos colonizadores (ou melhor, exploradores) nos primeiros cem anos após a partilha das capitanias hereditárias.

Dizia-se que a terra era inútil, sem ouro nem pedras preciosas. Apenas sal e pouca madeira sem muito valor comercial. Está escrito também que o português Antônio Cardoso de Barros, incumbido, em 1535, de administrar as centenas de léguas do Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão (o Siará Grande), não pisou por estas bandas uma única vez. Coube ao açoriano Pero Coelho de Sousa, em 1603, liderar a primeira expedição a este lado do Atlântico. Mas as secas brabas e índios cabras-machos, inconformados com a escravidão, expulsaram o europeu e sua turba de volta ao frio do velho continente. Contudo, os teimosos e ávidos exploradores não deram trégua e logo regressaram sob o comando do português Martin Soares Moreno, considerado o fundador do Ceará, em busca de fortuna, fartura e de nossas índias – por que não? –, como romanticamente retratou o escritor José de Alencar na trilogia indianista Iracema, O Guarani e Ubirajara.

Sempre no encalço dos branquelos, índios e piratas inimigos dos portugueses dificultaram a exploração da terra até 1637, quando a região foi oficialmente invadida pelos holandeses, que então passaram a ser o alvo dos bravos tupiniquins, que lhes impuseram fragorosas derrotas. No entanto, sob o poderio das armas de fogo, os holandeses atacaram em maior número em 1649, numa expedição chefiada por Matias Beck, instalando-se, após vitórias, nas proximidades do riacho Pajeú, onde construíram o Forte Schoonenborch, tomado pelos portugueses em 1694, e renomeado de Forte de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. À sua volta, formou-se a segunda vila do Ceará, chamada de Vila do Forte ou Fortaleza. A primeira foi a de Aquiraz.

“Bicho que mija pra trás”

Mas, voltando às primeiras linhas deste texto, pode-se afirmar que foi com a ajuda do boi que o Ceará (e, na verdade, a região Nordeste) passou a ser povoado em todos os seus recantos. O fenômeno pode ser explicado a partir desta frase: "Bicho que mija pra trás é que bota homem pra frente". Foi assim que o historiador Leonardo Mota eternizou o adágio popular herdado dos que fizeram do gado sua primeira fonte de riqueza em toda a região. No livro O Processo Histórico de Industrialização do Ceará (2001), o historiador Geraldo Nobre diz que o estabelecimento do primeiro curral nordestino (e brasileiro) se deve a Garcia d’Ávila, filho de Tomé de Sousa, o primeiro governador geral do Brasil, que chegou ao país em 1549, estabelecendo-se em Salvador, Bahia. A Garcia d’Ávila também é creditado o feito de ter trazido, para o país, o coco e o gado nelore.

Foi então, a partir da Bahia, que a criação de gado teve início. A atividade logo chegou em Sergipe e Pernambuco, sempre seguindo o curso do rio São Francisco. Em poucos anos, esses estados (outrora capitanias) passaram a engordar, matar e exportar milhares de cabeças de gado. Contudo, o historiador cearense Capistrano de Abreu relata que essa expansão (ou seria melhor dizer invasão) de terras não ocorreu de forma pacífica, principalmente às margens do São Francisco, onde estavam fincadas várias tribos pertencentes ao tronco cariri, que lutaram muito por suas terras.

Geraldo Nobre amplia esse fato explicando que "a hostilidade dos índios ainda bravios e a invasão holandesa, até o início da segunda metade do século seguinte ao da introdução do gado, e, em seguida, as lutas contra os quilombos, haviam desorganizado os rebanhos, criando sérios problemas para os fazendeiros, que procuraram novas regiões de criar, sendo atendidos nos sertões do Piauí, Rio Grande do Norte e, principalmente, do Ceará". Eis o início das boiadas sertão adentro.

O empresário e escritor Cândido Couto Filho, no livro Ciclos Econômicos do Ceará, conta que as boiadas provenientes da Bahia e Pernambuco chegavam ao Ceará pelos rios Jaguaribe e Acaraú, e vinham essencialmente para a engorda (ou fugindo de ataques de inimigos), aproveitando-se das abundantes pastagens e das características salinas do solo, ou seja, tinham o objetivo de retornar aos estados de origem. Mas, em função das longas viagens, muitos desistiam do regresso, seja porque encontravam abrigo e comércio para o seu rebanho por aqui mesmo, ou simplesmente pelo fato de não compensar a viagem de volta, haja vista que o gado mirraria novamente.

O grande relevo histórico dessas travessias de centenas de quilômetros pela caatinga – que não se faziam em menos de 15 dias – é o de serem consideradas o mais significativo fato para a colonização do Ceará, pois, por onde passavam, muitos criadores iam se fixando, sobretudo, às margens dos rios, originando, assim, os primeiros povoados, vilas e, claro, os primeiros coronéis e jagunços, que defendiam as reses, terras e entes queridos com muita valentia e sangue frio, e não poucas vezes.

Cândido Couto mostra em seu livro que as famílias partiam com o gado de Acarape, transpunham o Jaguaribe e atravessavam Russas e Icó, subindo o rio Salgado até suas nascentes. "Esta estrada serviu de escoamento para o gado do sertão do Ceará até o médio São Francisco. Foi a mais notável via de colonização do Ceará colonial. Por ela, chegaram para ficar os primeiros povoadores, dentre eles os Feitosas e os Montes", afirma o escritor ao se reportar à gênese de duas das mais tradicionais famílias do Ceará. A primeira, dos Montes, era comandada pelo coronel Francisco do Monte Silva, procedente de Sergipe, e que fez história por aqui nas localidades de Icó e Sobral, principalmente. A segunda, dos irmãos Lourenço Alves Feitosa e Francisco Alves Feitosa, trouxe o gado de Alagoas até o Rio Jaguaribe e, também, Icó, "protagonizando inúmeros conflitos de terra com a família Monte", conta Cândido Couto.

Em função do declínio dos currais da Bahia e Pernambuco, o negócio do gado no Ceará prosperou de tal forma que, no início do século 18, já se apresentava como o maior da colônia, gerando um importante comércio de carnes pelo Porto dos Barcos de Santa Cruz (atual município de Aracati). O local atraía, na época do abate, dezenas de intermediários no fornecimento do produto às capitanias de Pernambuco e Bahia. Portanto, é um fato histórico que o negócio do gado foi o principal responsável pelo povoamento do interior cearense, criando vilas prósperas que mais tarde deram início às cidades de Icó, Aracati, Acaraú, Camocim, Sobral, Quixeramobim, Tauá, Crateús, Russas e Morada Nova.

Carne de sol do Ceará


Em 1780, relata Cândido Couto, existiam na capitania do Ceará quase mil fazendas de criação, com uma média de 750 cabeças de gado vacum cada uma. Somente na região do baixo Jaguaribe eram mais de 300 000 animais. Quais os motivos de tanta prosperidade? Por que o comércio do gado vingou de tal forma por aqui? Geraldo Nobre oferece uma explicação: "Apresentou esta capitania a vantagem de a área do criatório confundir-se praticamente com a do litoral, facilitando o comércio de carne, leite, couros, chifres etc., de maneira a intensificar-se rapidamente a atividade".

De fato, era muito bicho para pouca gente. O que no início (por volta de 1650) foi uma grande vantagem, logo se transformou em um desafio porque a maioria da população local tinha baixo poder aquisitivo. O problema, de início, foi solucionado com a comercialização do gado (vivo) nas feiras pernambucanas e baianas. Contudo, a ida das manadas para esses centros passou a não compensar mais em função das longas viagens que debilitavam os rebanhos, a ponto de não servirem para o abate (de tão magras após as viagens).

Foi a partir daí que surgiu a ideia, em Aracati (então Porto dos Barcos de Santa Cruz), de se abater o gado e exportar a carne salgada. Em toscos sobrados, passou a ser fabricado um tipo de carne seca, prensada, moderadamente salgada e desidratada ao sol e ao vento. Surgiam, assim, no Ceará, as fábricas de beneficiar carne, as chamadas oficinas ou feitorias, instaladas nos estuários dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú, estendendo-se depois ao Parnaíba, no Piauí, e ao Açu, Rio Grande do Norte. Outra saída foi beneficiar os subprodutos, como o couro. Nessa época, centenas de pequenos comércios surgiram, já a partir das secas de 1710-1711, para transformar a pele do animal em roupas, chapéus, sapatos, bolsas e tudo mais que a criativa mente do cearense pudesse imaginar. Essa indústria ganhou tal vulto que por aqui passaram a nos denominar de a "civilização do couro".

Com tudo isso, em poucos anos, o estado passou a ser o principal produtor e exportar dessas mercadorias (carne e objetos em couro) para as demais províncias e até para Portugal. Nesse contexto, a cidade que mais prosperou foi Aracati, tendo recebido, por volta de 1744, o título de capital brasileira da carne de sol e do couro salgado. É também dessa mesma cidade e ano que se tem o registro da primeira indústria cearense (um curtume artesanal que beneficiava peles de cabra, carneiro e boi em tanques de madeira, usando cinzas, pedra ume e casca de angico).

Atualmente, apesar das crises do setor pecuarista cearense, fato que teve início já partir do início dos anos 1800, em função, principalmente, das grandes secas, a indústria de beneficiamento do couro ainda se mostra pujante em nosso estado, sempre entre os cinco primeiros na pauta de exportação. Segundo números do Centro Internacional de Negócios (CIN) da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), as vendas de couro ficaram em terceiro lugar no mês de março deste ano, com quase US$ 41 milhões, cerca de 13% do total dos produtos vendidos ao exterior.

Texto de Gevan Oliveira publicado na "Revista da FIEC" ano 4, edição 38, de junho de 2010,uma publicação da Federação das Indústrias do Estado do Ceará. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.







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