TEMOS NECESSIDADE CONTÍNUA DE COMER
A hora da fome: porque precisamos comer. O organismo humano tem necessidade contínua de energia. Pode ficar até dois meses em abstinência porque, além de certo estágio, passa a se alimentar de si mesmo.
Em seguida, começa uma forma suave de canibalismo interno: o organismo consome suas próprias proteínas, obtidas à custa de “desmontar” tecidos e órgãos, para suprir a inadiável necessidade de energia. Trata-se de um recurso extremo, empregado apenas quando as perdas já ocorridas ameaçam parar a máquina viva. Afinal, após meros dez dias sem comer, um indivíduo emagrece na proporção de até 10% do total de seu peso, ou cerca de 7 quilos num homem de 70 quilos. Os batimentos cardíacos caem em taxa ainda maior — de 74 para 61 por minuto — e a própria temperatura do corpo pode oscilar de alguns décimos de grau.
Esses números aparecem num livro clássico, adotado há décadas em muitas escolas de Medicina — Fisiologia Humana, do cientista argentino Bernardo A. Houssay (1887-1971), ganhador do Prêmio Nobel de 1947. Ele lembra fatos curiosos — como o de que o organismo “desaprende” a gerar energia pela via costumeira do aparelho digestivo, e se receber comida, adoece. Há um aumento da quantidade de açúcar no sangue, apresentando pressão alta e sintomas semelhantes aos do diabete — como o de verter o açúcar glicose junto com a urina. Conta também que a fome intensa dos primeiros dias logo desaparece e é substituída por uma gradual debilitação física e mental.
Depois de no máximo quinze dias de jejum, as proteínas dos músculos passam a ser queimadas para gerar energia; a musculatura perde o relevo e se atrofia. E isso não vale apenas para os músculos estriados, ou voluntários (os responsáveis pelos movimentos externos do corpo): também podem ficar comprometidos alguns músculos involuntários, como os existentes nas paredes do estômago, veias e outras vísceras. Entre os somalis, muitos já não têm as contrações do aparelho digestivo e há exemplos de vasos dilatados, o que provoca problemas cardíacos. Em animais com dois meses de jejum, verifica-se degeneração das fibras do coração. O pulmão e o cérebro são outros órgãos prejudicados.
É espantoso, portanto, que muitos homens passem trinta ou cinqüenta dias ingerindo apenas água. Houssay conta que a Medicina registra inúmeros casos assim, e cita pelo menos um grevista — o irlandês Mac Swiney — que resistiu até os 74 dias sem comer. De maneira geral, porém, se considera que a morte é inevitável após sessenta dias, mais freqüentemente em quieto coma e às vezes em convulsões. A ciência ainda não descobriu a gênese da fome, ou seja, exatamente o que faz o organismo buscar e ingerir alimentos. Os pesquisadores afirmam que essa sensação está prioritariamente ligada à glicemia, a quantidade de glicose dissolvida no sangue.
Até meados dos anos 80, acreditava-se que a fome crescia à medida que a glicemia caía. “Mas não é assim”, diz o fisiologista César Timo-Iaria, do Laboratório de Neurologia Experimental da Faculdade de Medicina da USP. A fome, diz ele, é um sintoma de que o fígado está trabalhando demais para manter a concentração normal de glicose na corrente sangüínea. Não é difícil entender isso, já que esse órgão é o responsável pelo patrimônio de glicose — o principal combustível usado pelas células — disponível no sangue. Normalmente, há cerca de 1 grama de glicose para cada litro de sangue, o que dá perto de 5 gramas dissolvidos nesse líquido contido em todo o sistema cardiovascular, de acordo com o livro de Houssay. Ele diz que o corpo dispõe de mais 15 gramas de glicose dissolvida nos líquidos entre as células, os chamados líquidos intersticiais.
Parece pouco, mas 1 grama de açúcar, depois de queimado com 0,75 litro de oxigênio, gera nada menos que 3 750 calorias, e aquelas quantidades se referem apenas à glicose pronta para chegar às células. O mais importante é que o fígado armazena perto de 200 gramas daquele combustível, numa forma compactada, denominada glicogênio. Assim, ele controla o suprimento de glicose no corpo, transformando glicogênio em glicose sempre que necessário. Para isso, conta com células chamadas glicorreceptoras, que funcionam como sensores e indicam a todo momento a concentração de glicose na circulação.
Segundo Timo-Iaria, foram encontrados glicorreceptores em três partes do organismo: “Os mais potentes estão no hipotálamo, mas também estão presentes no fígado e na região denominada núcleo do trato solitário, localizados na parte mais caudal do encéfalo, sob a nuca”. Tudo isso funciona mais ou menos como o sistema hidráulico de um edifício, compara o cientista. Em cima do prédio há uma caixa, dotada de bóia que indica o nível de água, e no subsolo, um imenso reservatório. Quando a caixa se esvazia além de um ponto crítico, repõem-se as perdas por meio de uma bomba que capta água do reservatório. A bóia, com isso, volta a mostrar que o nível de água está normal. “Os glicorreceptores correspondem à bóia. A bomba de água e o reservatório correspondem ao fígado”.
Num organismo sem alimentos, o intestino não fornece ao fígado matéria-prima para produzir a glicose, mas a concentracão de açúcar no sangue não chega a cair devido ao contra-ataque acionado pelas células glico-receptoras. No edifício, seria a hora em que a bomba de água começa a funcionar. No corpo humano, o fígado entra em hiperatividade e passa a gastar suas reservas. Não é à toa que existe tão complicado sistema de controle e de alarme para garantir o suprimento de energia. É que ela é absolutamente essencial — a ponto de o corpo se autodestruir para evitar sua falta. Proteínas e vitaminas também são importantes, e sua carência, a longo prazo, cria distorções terríveis, como atrofia muscular, cegueira e outros males. Mesmo assim, o organismo corre o risco, apenas porque não pode parar sequer por um momento.
Basta pensar no coração, um músculo fortíssimo, que mantém sob pressão constante algo como 5 litros de sangue. Quando se reflete um pouco, percebe-se quanto movimento existe num organismo, mesmo quando todas as suas partes externas estão imóveis. O pulmão precisa bombear oxigênio e gás carbônico sem cessar; os intestinos e o estômago realizam contrações complexas; o suor é outra óbvia fonte de movimento, pois representa água quente bombeada para fora, através da pele, de modo a manter constante a temperatura. É claro que, se uma pessoa se alimenta mal, todas essas funções ficam potencialmente prejudicadas. Mas tudo se faz para que não cessem, porque isso seria o fim.
O fato de o organismo se agarrar à vida por longo tempo depois de ter sido privado de combustível só pode ser motivo de profunda admiração. Ainda mais quando se pensa que ele é formado por um condomínio de simples células microscópicas, organizadas em número inimaginável — o corpo humano contém 60 trilhões delas. Em conjunto, diz Naomi Hell, elas se tornam a mais formidável e perfeita máquina existente no planeta.
A trilha da energia
Em várias etapas, o corpo humano retira de tudo o que ingere as matérias-primas para a sua existência
Boca
É só pensar em comer e ela se enche de saliva, que dá início à digestão
Estômago
Transforma o alimento num líquido viscoso, fragmentando-o quimicamente para facilitar a absorção pelo intestino
Fígado
Armazena, sob a forma de glicogênio, toda a glicose não utilizada pelas células periféricas da circulação. Isso faz as pessoas não sentirem fome a toda hora.
Célula
Captura a glicose em circulação e, por meio de uma reação com o oxigênio, a transforma em energia.
Cérebro
Agrega os mais potentes sensores que medem continuamente a concentração de glicose no sangue, pois é o órgão que mais a utiliza.
Suco gástrico
Composto de ácidos que quebram as longas cadeias de átomos que compõem os alimentos em pequenas moléculas
Intestinos
Onde se completa a digestão: proteínas são fragmentadas em aminoácidos, carboidratos em glicose e frutose, e a gordura torna-se hidrossolúvel. Tudo isso cai na corrente sangüínea.
Energia na medida certa
Tudo que o corpo humano ingere — seja um pedaço de lasanha, um sanduíche, doces, sorvetes, pipoca ou refrigerantes — é tratado por ele, indistintamente, como alimento. Um organismo plenamente desenvolvido utiliza esse alimento como matéria-prima para regenerar boa parte de suas células e para gerar a energia que o conserva vivo. Em repouso absoluto, ele tem a potência de uma lâmpada: consome 100 watts de energia, o correspondente a 2 100 quilocalorias por dia. Cerca de 20% dessa energia é utilizada pela musculatura esquelética, 5% pelo coração, 19% pelo cérebro, 10% pelos rins e 27% pelo fígado e pelo baço.
Dependendo do tipo de atividade que exerce, o organismo gasta mais ou menos energia, diz a nutricionista paulista Flora Spolidoro. Ela deve saber, pois criou a dieta mais adequada para o aventureiro Amyr Klink realizar suas proezas pelos oceanos. “O corpo de um atleta precisa de muito mais energia que o de uma recepcionista. Um operário de construção tem muito mais chance de ser magro que um executivo.”
Quando Klink atravessou o Atlântico a remo, a partir da África até a América do Sul, seu consumo de energia era grande durante as oito horas diárias que re-mava. Mas nas outras 16 horas, ele ficava muito mais parado que qualquer cidadão, pois tinha os movimentos limitados pelo pequeno barco, diz a nutricionista. “A dieta teve que ser balanceada de forma que o gasto energético fosse reposto sem excessos.” Flora conta que o essencial era a cota de calorias, e acabou fixada de acordo com o há-bito de Klink: 2 900 por dia, embora 4 000 fosse o número teórico. De resto, ele comeu de tudo, do macarrão ao bife grelhado e leite.
Por Flávio Dieguez e Marcelo Affini. Publicado na revista 'Super Interessante'. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa
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