MORTADELAS E 'MORTANDELAS'

Leopoldo Costa
O consumo de 'mortadela' no Brasil é de aprox. 220.000 toneladas por ano. Calcula-se que 75% deste total seja de pseudo-mortadelas (mortandelas). Todas as grandes marcas que  estão mais presentes na mídia (Sadia, Perdigão, Seara, Aurora, Pif Paf, Pena Branca, Rezende etc.),  são de fato 'Mortandelas', basta dar uma olhada na composição do produto, que obrigatoriamente são listados na embalagem por ordem de maior participação , para certificar desta afirmativa.  Tive a curiosidade de anotar uma delas e 'carne bovina', está em sexto lugar na listagem de composição. O Brasil é um dos poucos países do mundo que banalizaram a 'Mortadela', com a aquiescência das autoridades incumbidas de sua regulamentação. Conseguiram descaracterizar completamente um produto nobre da charcutaria italiana.
A mortadela já era conhecida no Império Romano. Plínio, o Velho (23/24-79) relata que Augusto, o primeiro imperador romano não ficava sem o embutido,(chamado' farcimen mirtatum', pois usava  murta ao invés de pimenta como tempero), que mandava buscar em Bolonha onde era fabricada com exclusividade  para ele com muito esmero. Era produzida com carne suína magra e toucinho da papada. Mais tarde foi incluída a carne bovina magra e  também a carne equina, excelente pela sua liga. O primeiro registro do produto na literatura é datado de 1376. O nome pode ter sido derivado de ‘mortaio’, o almofariz que era usado para socar a carne e os condimentos transformando tudo numa massa para ser embutida. A mortadela é o produto mais popular da charcutaria da Itália.

Em 1971 foi realizado o filme ‘ La Mortadella’ com Sophia Loren  como protagonista que relata as façanhas de uma jovem que queria entrar nos Estados Unidos com uma mortadela na bagagem. Foi uma propragandista do produto no mundo inteiro.

Chegou às Américas com os primeiros imigrantes italianos no final do século XIX e popularizou-se principalmente nos Estados Unidos, Argentina e Brasil.

A mortadela é um embutido emulsionado.
Emulsão é um composto de dois líquidos que não se misturam, normalmente gordura e água, com um dos líquidos disperso no outro em gotículas esféricas. A solução que compõe as gotículas é chamada de 'fase dispersa', enquanto que aquela que compõe o meio é chamada de 'fase contínua'.

A legislação federal brasileira sobre a fabricação de mortadela é bastante 'magnânima', o que permite a maioria dos fabricantes gananciosos, descaracterizar completamente o produto original, camuflando o sabor com muito tempero, principalmente alho. Não deveria ser autorizado a denominar-se mortadela.
Dentre as indústrias que ainda produzem a verdadeira mortadela podemos citar a Ceratti e a Marba, ambas de São Paulo.

O preço da mortadela tem relação direta com a qualidade, enquanto encontra-se no varejo pseudo-mortadelas até a R$2,67 o quilo (veja anúncio ao lado). Se o quilo da carne bovina desossada mais barato custa R$ 7,00 o quilo, e a legislação obriga o uso de no mínimo 30% na formulação, existe ou 'milagre divino' ou grande fraude ao consumidor que está comprando 'gato por lebre'. O produto deveria chamar 'Embutido Imitação de Mortadela' ou outra coisa, pois geralmente é adicionada mais de 20% de amido e fabricada com matéria prima  de qualidade inferior e procedência suspeita.  A cor clara, provocada pelo excesso de amido, é mascarada pela adição de hemoglobina, separada do sangue bovino durante o processo de sangria dos animais quando abatidos.
O que diriam os bolonheses ao degustar este produto, que tem o nome de 'mortadela'. Nem cogito a reação do imperador Augusto!

Os preços das verdadeiras mortadelas, como a Marba tradicional está acima de R$15,00 por quilo e os preços da mortadela Ceratti entre R$ 25,00 e R$35,00 o quilo (este último,  o preço da mortadela 'light', sem adição de toucinho).
Uma rede de lanchonetes instalada às margens de grandes rodovias, está oferecendo sanduíches de pão francês fresco com mortadela Ceratti, em torno de R$10,00 a unidade e vende bem para os que conhecem mortadela e gostam de sanduíche. No Mercado Municipal de São Paulo, também tem o legítimo sanduíche de mortadela. Em bares de periferia, recheado com fatias das pseudo-mortadelas, um sanduíche de 'mortandela' custa entre R$ 1,50 e R$ 2,00.

O Regulamento da Inspeção Industrial  e Sanitária de Produtos de Origem Animal - RIISPOA de 29 de março de 1952,  primeira consolidação das normas para a indústria de produtos de orígem animal, não contem regras especificas para a fabricação de mortadela. Apenas regras genéricas sobre todos os embutidos:
'Art. 412 - Entende-se por "embutido" todo produto elaborado com carne ou órgãos comestíveis curado ou não, condimentado, cozido ou não, defumado e dessecado ou não, tendo como envoltório tripa, bexiga ou outra membrana animal.
Parágrafo único - É permitido o emprego de películas artificiais no preparo de embutidos, desde que aprovadas pelo D.I.P.O.A.
Art. 413 - As tripas e membranas animais empregadas como envoltórios devem estar rigorosamente limpas e sofrer outra lavagem, imediatamente antes de seu uso.
Art. 414 - Os embutidos não podem conter mais de 5% (cinco por cento) de amido ou fécula, adicionados para dar melhor liga à massa.
Parágrafo único - As salsichas só poderão conter amido ou fécula na proporção máxima de 2% (dois por cento).'

Sob  forte pressão política da poderosa indústria de frangos e de suínos, principalmente da região sul, foi estabelecida nova normatização, através do REGULAMENTO TÉCNICO DE IDENTIDADE E QUALIDADE DE DIVERSOS EMBUTIDOS pela INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 4, DE 31 DE MARÇO DE 2000. Nela tem o seguinte texto  sobre mortadela:

1. Alcance
1.1. Objetivo: Fixar a identidade e as características mínimas de qualidade que deverá obedecer o produto cárneo industrializado denominado de Mortadela.
1.2. Âmbito de Aplicação: O presente regulamento refere-se ao produto Mortadela, destinado ao comércio nacional e/ ou internacional.

2. Descrição
2.1. Definição: Entende-se por Mortadela, o produto cárneo ndustrializado, obtido de uma emulsão das carnes de animais de açougue, acrescido ou não de toucinho, adicionado de ingredientes, embutido em envoltório natural ou artificial, em diferentes formas, e submetido ao  tratamento térmico adequado.

Mortadela Italiana
2.2. Classificação
De acordo com a composição da matéria-prima e das técnicas de fabricação:
Mortadela - Carnes de diferentes espécies de animais de açougue, carnes mecanicamente  separadas, até o limite máximo de 60%; miúdos comestíveis de diferentes espécies de animais de açougue (Estômago, Coração, Língua, Fígado, Rins, Miolos), pele e tendões no limite de 10% (máx) e gorduras.
Mortadela Tipo Bologna - Carnes Bovina e/ou suína e/ou ovina e carnes mecanicamente separadas até o limite máximo de 20%, miúdos comestíveis de bovino e/ou suíno e/ou ovino (Estômago, Coração, Língua, Fígado, Rins, Miolos), pele e tendões no limite de 10% (máx) e gorduras.
Mortadela Italiana - Porções musculares de carnes de diferentes espécies de animais de açougue e toucinho, não sendo permitida a adição de amido.
Mortadela Bologna -  Porções musculares de carnes bovina e/ou suína e toucinho, embutida na forma arredondada, não sendo permitida a adição de amido.
Mortadela de Carne de Ave - Carne de ave, carne mecanicamente separada, no máximo de 40%, até 5% de miúdos comestíveis de aves ( Fígado, Moela e Coração) e gordura.

2.3. Designação (Denominação de Venda)
Mortadela
Mortadela Tipo Bologna
Mortadela Italiana
Mortadela Bologna
Mortadela de Ave

Ingredientes Opcionais:
Água
Gordura animal e/ou vegetal
Proteína vegetal e/ou animal
Aditivos intencionais
Agentes de liga
Açucares
Aromas, especiarias e condimentos.
Vegetais (amêndoas, pistache, frutas, azeitonas, etc.)

Queijos
Permite-se a adição de proteínas não cárnicas de 4,0% (máx), como proteína agregada. Não será permitida a adição de proteínas não cárnicas nas mortadelas Bologna e  Italiana, exceto as proteínas lácteas.

A Instrução Normativa Nº 20 de 31 de julho de 2000 criou a possibilidade das indústrias produzirem também"Presunto de Peru' e 'Presunto de Aves' (sic), contrariando os grandes dicionaristas (Aurélio, Aulete, Houaiss etc. ) onde 'Presunto é preparado com carne do pernil do suíno, 'Presunto de Peru' e 'Presunto de Aves' é um produto que com este nome só existe nos Estados Unidos e no Brasil.

Carne Mecanicamente Separada de Frango (CMS)

De acordo com as normas da Inspeção Federal, entende-se por carne mecanicamente separada (CMS) de frango, a carne residual produzida através de equipamentos próprios do tipo desossadores mecânicos, utilizando como matérias-primas partes de frango, principalmente as de baixo valor comercial, como o dorso e pescoço (alguns indevidamente acrescentam pés, cabeça e partes de aves machucadas). A separação mecânica basicamente envolve trituração da carne e ossos,  forçando a carne a passar por peneiras, separando-se assim dos ossos. Este processo altera a  composição da matéria-prima original, resultando em material com maiores teores de gordura e minerais. Isso se deve em grande parte à incorporação de lipídeos e pigmentos heme existentes na medula óssea e na camada de gordura subcutânea, e cálcio e fósforo provenientes das partículas ósseas.

A carne mecanicamente separada é uma matéria-prima cárnea de baixo custo, cuja textura pastosa, fina e uniforme, diferente da textura mais fibrosa da carne desossada manualmente, tem sido predominante e exageradamente  utilizada em produtos emulsionados. Devido a suas características, seu uso é limitado nos produtos que requerem granulometria maior ou com textura mais fibrosa como a da carne manualmente separada,  a menos que sejam utilizados juntamente com grandes quantidades da carne manualmente separada. É um produto bastante suscetível à contaminação, quando manuseado e armazenado indevidamente.

Apesar da 'magnanimidade' da legislação, o SIPAG do Rio Grande do Sul, realizou em dezembro de 2006, uma supervisão em 21 estabelecimentos com SIF e constatou o seguinte:
1. Foram analisados 122 produtos industrializados, sendo que apenas 10 não apresentaram nenhuma não conformidade. Um dado preocupante: 66.67% das indústrias estavam com todos os produtos não conformes com a legislação.
2. Referindo-se especificamente a mortadela, o conjunto das amostras analisadas, apresentou os seguintes desvios a mais:
a. Entre 14% e 22%  no uso de Carne Mecanicamente Desossada (CMS).
b. Entre 28% e 44% no uso de amido.
c. Entre 32% e 33% no uso de proteina texturizada de soja (PTS)
d. Entre 11% e 14% no uso de pele cozida suína.
e. Entre 84% e 89% no uso de nitrito ou nitrato.

É o último relatório que temos conhecimento. Se fizer hoje pode ser bem pior.

FÓRMULA DE MORTADELA DE QUALIDADE

Que deveria ser o padrão do Serviço de Normatização do Produto, para poder denominar-se MORTADELA. Quem não se adaptasse, poderia produzir  'embutido imitação de mortadela'  que obrigatoriamente deveria constar no rótulo ou embalagem do produto em letras grandes.

Matéria Prima:
Carne bovina sem osso (dianteiro completo)                50%
Carne suína sem osso (paleta)                                        35%
Toucinho suíno                                                                   15%

Ingredientes:
Gelo de água potável                                                    10%
Fécula de mandioca                                                        5%
Sal refinado                                                                     1%
Condimentos (aromas naturais e especiarias)           1%
Sal de cura  (INS 251 + INS 250)                                 0,3%
Alho natural moido                                                         0,3%
Antioxidante (INS 316 + INS 330)                                0,25%
Emulsificante (INS 452)                                                0,25%
Pimenta do reino moída                                               0,15%

 Fabricação:
As matérias-primas são retiradas da câmara fria e levadas para a sala de manipulação.
O dianteiro bovino e a paleta suína, são moídos no disco 6mm, o toucinho é picado no picador de toucinho.
O material cárneo cominuído é colocado no Cutter juntamente com os demais ingredientes, por aproximadamente 8 minutos, para obter uma massa refinada. A seguir, a massa é colocada na misturadeira juntamente com o toucinho picado. Continuamente, a massa segue para a embutideira em carrinhos de aço inox do tipo caçamba, onde será utilizado bexiga natural bovina. O produto embutido é colocado em carrinhos do tipo gaiola e levado à estufa .

Processo de cozimento:
2 horas a 60ºC com a chaminé aberta
2 horas a 75ºC com a chaminé fechada
Com a chaminé fechada, mantem-se a temperatura a 85ºC até atingir 74ºC internamente.
Terminado o processo de cozimento é realizado o banho com água fria para o abaixamento da temperatura. A seguir, quando o produto estiver seco, ele é passado pelo banho de verniz impermeabilizante (grau alimentício). O produto após devidamente embalado será levado á câmara de resfriamento, com temperatura entre 3ºC e 5ºC, onde aguardarão sua saída para o mercado consumidor.

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