VIAJANTES DO SÉCULO XIX IGNORARAM A FAMÍLIA ESCRAVA


É verdade que grande parte dos viajantes estrangeiros a nos visitar nos séculos passados não detectou a família escrava no Brasil. Mais precisamente, muitos deles atuaram no sentido de fixar a idéia de que ela inexistia ou representava casos isolados, numericamente desprezíveis. Esta tem sido, praticamente, a leitura dominante dos relatos dos aludidos visitantes efetuada pela historiografia brasileira. No entanto, a partir do conjunto de tais testemunhos é possível estabelecer uma postura alternativa, oposta â veiculada por nossa historiografia. A intenção deste texto é concretizar tal possibilidade, mostrando que a partir de obras de viajantes nos é dado evidenciar que alguns deles viram e caracterizaram a família escrava. Tomemos, inicialmente, alguns exemplos de autores que negaram a existência da instituição em apreço.
É isto que se infere da taxativa afirmação de Ribeyrolles (1941, v. 2, p. 67 e p. 33): "A religião os acolhe ao pé dos altares. Casa-os. Mas não lhes garante a família, a esposa, os filhos. (...) A fome ralo penetra na senzala. Nela não se morre de inanição,,, Mas não existem famílias: há ninhadas". Igualmente categórica é a ilação decorrente do diálogo reproduzido por Yvan (1853, p. 120):
"-- Ce que je fais de me: négresses? Mais je les emplois suivant le but de la nature; elles font des enfants.
"-- Est-ce que chacune d'elles est pourvue d'un mari? reprise."
"-- Donnez-vous dans un troupeau un bélier à chaque brebis et un bouc á chaque chèvre en légitime mariage? repartit le fazendeiro." (1) Já para Dabadie (1858, p. 434), ao escravo: "On lui enseigne l'amour de la famílle en le séparant de sa femme et de son enfant, qu'on vend l'un d'un coté, l'autre de l'autre". (2) A impossibilidade de existir família entre escravos também foi atestada por Saint-Hilaire (1941, p. 403-4): "Quando teve início no Brasil a campanha da abolição da escravatura, o governo ordenou aos proprietários de Campos que casassem seus escravos; alguns deles obedeceram a essa determinação, mas outros responderam que era inútil dar maridos às negras porquanto não seria possível criar seus filhos. Logo após os partos essas mulheres eram obrigadas a trabalhar nas plantações de cana, sob sol abrasador, e, quando, após afastadas de seus filhos durante parte do dia, era-lhes permitido voltar para junto deles elas levavam-lhes um aleitamento defeituoso."
Não obstante tais opiniões, elas não se definem como unânimes, pois alguns de nossos visitantes não só viram a família escrava, como deixaram impressões multo ilustrativas a respeito da vida conjugal dos cativos. Há obras nas quais a família escrava é apenas referenciada, sem se deter, o autor, no tema. Por vezes trata-se, tão-somente, de impressão ligeira que se pode colher no correr despreocupado do texto. Este é o caso de Graham (1956, p. 221-2) ao descrever sua visita a uma fazenda fluminense: "Foi então, quando ouvi sons de música (...) voz dos escravos, em noite de férias, enganando seus sofrimentos com cantigas estranhas tocadas em rudes instrumentos africanos. Tomando um de meus companheiros de bordo, fui logo às cabanas dos escravos casados, onde se realizava a função e encontrei os grupos a brincar, a cantar e a dançar à luz da lua." Embora superficial, é de se notar a alusão "às cabanas dos escravos casados", a qual será retomada por outros autores e lança luz sobre a distribuição do espaço físico reservado aos cativos.
Testemunho do mesmo jaez nos é propiciado pela leitura de Koster (1942, p. 527): "É na sua conduta com a família e os companheiros que grande parte da bondade humana é denunciada, e é natural que isso suceda. Os negros mostram muita dedicação à sua mulher, filhos, outros parentes que tenham a fortuna de possuir, e seus malungos, camaradas da travessia d'África". A aludida dedicação à família, além de evidenciar que a escravidão não destruiu os laços de solidariedade entre os escravos, parece-nos altamente relevante, pois pode estar a denotar que os próprios escravos procuravam constituir família para garantir um mínimo de segurança e privacidade num mundo sócio-econômico que lhes era absolutamente hostil. Neste sentido, a família poderia, inclusive, estar sendo utilizada pelos escravos como elemento no seio do qual se preservavam hábitos e costumes próprios; a forte homogamia pela origem e pela cor, encontrada em estudos recentes sobre os casais de escravos, corrobora tal hipótese.
Há outros autores que, embora tivessem feito sérias restrições quanto às possibilidades de vida familiar entre escravos, deixaram relatos preciosos sobre sua existência.
Tomemos alguns casos. Segundo Debret (1972, tomo 1, p. 196): "Como um proprietário de escravos não pode, sem ir de encontro à natureza, impedir os negros de freqüentarem as negras tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para compartilharem sossegadamente o fruto dessa concessão, feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade. Administrador previdente, o fazendeiro brasileiro sabem como se vê, cuidar de sua fortuna, no presente, pela severidade e disciplina, e criar recursos, no futuro, por uma certa moralidade flexível."
Ora, para o próprio Debret (1972, tomo II, p. 174), havia casamentos entre escravos das "casas ricas", os quais se ocupavam dos afazeres domésticos: "É igualmente decente e de bom-tom nas casas ricas do Brasil fazer casarem as negras sem contrariar demasiado suas predileções na escolha de um marido; esse costume assenta na esperança de prendê-los melhor à casa", e mais adiante, na mesma página, arremata: "o crioulo orgulha-se de ter nascido de pais casados". Nestes trechos explicita-se, ademais, uma outra dimensão do casamento também referida por outros autores, qual seja à do controle social.
Tschudi (1953, p. 52-4), por seu turno, assevera: "No pátio em que se encontra a casa grande, existem em geral dois edifícios compridos: de construção primitiva, as chamadas senzalas ou habitações dos negros, onde os homens são alojados separadamente das mulheres (...) os negros casados vivem em recintos menores devidamente separados. É muito raro haver entre os negros casamentos celebrados na igreja, mas o fazendeiro permite que os pares, que se unem segundo oportunidade ou sorte, vivam juntos, sendo que o pronunciamento do fazendeiro basta para que eles se considerem como esposo e esposa, numa união que raras vezes há de perdurar a vida inteira. As pretas possuem, em geral, filhos de 2 ou 3 homens diferentes. 
Mesmo esta formalidade não se observa no mais das vezes, e os negros vivem em promiscuidade sexual, como o gado nos pampas (...) Os fazendeiros do distrito de Cantagalo (de outras localidades) desistiram de mandar casar seus escravos pelo religioso, em vista das experiências obtidas. Dizem que o casamento religioso tem por conseqüência graves desordens e inconvenientes maiores ainda, dada a leviandade e inconstância do negro em tudo que se refere às relações sexuais, e por não haver possibilidades de futura separação. Os laços livres existentes entre os dois sexos evitam assim futuros aborrecimentos que uma separação possa causar".
Para o autor citado evitava-se o casamento religioso dos cativos, o que não impedia que os cativos se considerassem "casados" em face da anuência de seu senhor. É de notar, ainda, que também aqui nos defrontamos com a afirmação de que os "negros casados" viviam em recintos próprios especialmente destinados a eles. Um quadro muito próximo a este encontramos em descrição efetuada com anterioridade de mais de um século. Assim, segundo Antonil (s/d, p. 160-1), haveria famílias escravas constituídas pelos próprios senhores: "Opõem-se alguns senhores aos casamentos dos escravos e escravas, e não somente não fazem caso dos seus amancebamentos, mas quase claramente os consentem, e lhes dão princípio, dizendo: tu fulano, a seu tempo, casarás com fulana e dai por diante os deixam conversar entre si como se já fossem recebidos por marido e mulher; e dizem que os não casam porque temem que, enfadando-se do casamento, se matem logo com peçonha ou com feitiços. Outros, depois de estarem casados os escravos, os apartam de tal sorte, por anos, que ficam como se fossem solteiros, o que não podem fazer em consciência" Ora, se "alguns senhores" opunham-se aos matrimônios de seus escravos, é de supor que uns tantos outros não o fizessem. Além disto, o simples fato de o próprio proprietário efetuar a união sugere a existência de uniões consensuais, o que definiria uma forma não cristã de família.
Na mesma direção das citações acima postas, conquanto invoque razão diversa para a não legitimação das uniões, apontam as observações de Burmeister (1952, p. 54), o qual, ao tratar das fazendas de café, mostrou-se enfático : "os casamentos legítimos entre os escravos não são tolerados pelos senhores, dado que não poderiam ser desfeitos mais tarde e assim prejudicariam a venda em separado". Não obstante, no mesmo autor encontramos elementos para melhor compreender o quotidiano dos escravos casados; diz Burmeister (1952, p. 135): "Em cada fazenda encontramos pavilhões compridos, com andar térreo apenas, separados em cubículos de 8 a 10 pés de largura, tendo cada um sua saída para o pátio. É lá que moram os escravos: os casados, juntos num cubículo, os solteiros, 2 ou 3 em cada peça, os homens separados das mulheres. Em geral, há pavilhões separados para os homens e para as mulheres. 
Os escravos não possuem casa nem cozinha própria, a não ser os que têm filhos. Estes recebem os mantimentos necessários. Mas, em geral, não se admitem os casamentos, e as relações sexuais entre os escravos são destituídas de seriedade". As famílias escravas não só existiam como, também, se lhes destinava alojamentos próprios, cabendo-lhes, inclusive, administrar os mantimentos que lhes eram entregues.
Ao autor mineiro de Campanha
-- aqui incluído em face da importância de sua obra --, Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1976, v. 1, p. 60), que estava a escrever no período 1864-66, também não escapou a presença das famílias escravas no meio rural: "Entre nós, infelizmente, os escravos vivem em uniões ilícitas, por via de regra, tanto os do serviço urbano como os do rural; entregues, por conseguinte, à lei da natureza ou á devassidão. Em algumas partes, é verdade confessar, sobretudo entre os lavradores, não é raro verem-se famílias de escravos, marido, mulher, filhos".
Biard (1945, p. 52-3), por sua vez, ao tratar da separação das famílias de escravos dá prova de sua existência e da sua possível estabilidade: "No Brasil, a melhor sorte que possa ter um escravo é a de possuir um bom senhor; esta felicidade, entretanto, é às vezes negativa porquanto há ameaça de perdê-lo, de uma maneira ou de outra, e de ir para as mãos de um outro dono menos compassivo, o que, por comparação, agrava o infortúnio. Há ainda as inevitáveis separações, o que adquire a mãe não se interessa pela filha. Os próprios esposos se vêem separados. Viveram por longos anos juntos e de repente são vendidos separadamente"
É possível, por fim, arrolar autores que se ocuparam mais detidamente com a vida familiar dos escravos. Neles veremos reafirmadas algumas conclusões centrais dos estudos recentes sobre o tema : associação entre grandes plantéis e maior incidência de matrimônios; distinção do comportamento sexual entre o meio rural e o urbano -- neste último predominariam pequenos escravistas, o que tornaria mais difícil o encontro de parceiros dentro do mesmo plantel, já que dificilmente se efetuavam consórcios entre escravos pertencentes a senhores distintos --; estabilidade no tempo da família escrava; as várias facetas da instituição: como forma de amenizar as condições do cativeiro, como meio de acumulação, como instrumento de controle social. Vejamo-los.
Ao tratar dos cativos do meio rural, assim se expressava Rugendas (1972, p. 142): "Em geral, os colonos facilitam os casamentos entre escravos, pois sabem, por experiência, que é a melhor maneira de prendê-los á fazenda e a mais forte garantia de sua boa conduta. Entretanto, não se pode negar que haja inúmeras exceções a essa regra e que, muitas vezes, os senhores, pelos seus exemplos, provocam eles próprios a devassidão de costumes dos escravos. Ocorre, ainda, que as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossível a severa observância da moral ou a perseverança conscienciosa na fidelidade conjugal".
Ainda para Rugendas (1972,p. 144): "É nas fazendas do clero ou dos conventos que os escravos são mais bem tratados (...) As mulheres casam-se com quatorze anos, os homens com dezessete a dezoito; em geral, incentivam-se esses casamentos. As jovens mulheres participam dos trabalhos do campo e aos recém-casados se dá um pedaço de terra para construir sua cabana e plantar, por conta própria1 em certos dias". Castelnau (1949, tomo 1, p. 118), visitando um engenho fluminense, sugere-nos a associação entre família escrava e grandes plantéis : "Essa propriedade possui cerca de duzentos escravos, um quinto dos quais mulheres. Destas, as que não são ainda casadas, moram numa divisão inteiramente separada. Cada casal recebe como dote um pedaço de terra, para cultivar como lhe convenha. Ficamos sabendo que, a despeito do bom tratamento dispensado aos escravos nesta fazenda, o número deles decrescia anualmente numa proporção de cinco por cento". Este autor, ademais, indica, como Rugendas, que aos escravos casados era destinado um lote de terra para cultivo por conta própria, certamente para prover a alimentação de suas famílias.
Para Koster (1942, p. 501), o casamento entre escravos estava orientado, também, pelo objetivo de acumulação de seus proprietários; este autor, além do mais. reafirma a idéia da estabilidade das famílias de cativos: "Os escravos no Brasil são regularmente casados de acordo com as fórmulas da Igreja Católica. Os proclamas são publicados como se fossem para pessoas livres. Tenho visto vários casais felizes (tão felizes quanto o podem ser os escravos) com grande número de filhos crescendo ao redor deles. Os senhores estimulam os casamentos entre seus escravos porque o número dos crioulos só pode aumentar por meio destas uniões legais. O escravo não pode casar sem o consentimento do seu amo nem o vigário publica os banhos sem essa autorização formal. É igualmente permitido que os escravos casem com pessoas livres." Ainda na mesma página ora citada, Koster reporta a já repisada união consensual de escravos e faz referência à "libertinagem" imperante nos núcleos urbanos:
"O senhor ou o feitor percebendo a predileção dos escravos um pelo outro, e se certificando, determina o casamento e esse procedimento irregular é legítimo. Nas cidades há mais libertinagem entre os negros que em todas as outras classes humanas". Spix e Martius (1938, p. 143-4) também nos deixaram ilustrativas impressões sobre a vida conjugal dos cativos: "Os trabalhos, nos engenhos de açúcar e nas plantações, são os mais fatigantes, porém, duram menos tempo. Além disso, o escravo, no campo, goza de certa liberdade e vive tranqüilamente com sua família, habitando, ordinariamente, uma senzala própria."
Certamente a vivência escrava não seria tão tranqüila como anotado pelos viajantes; de toda sorte, a relação entre "tranqüilidade" e vida conjugal aponta no sentido de que esta última podia representar um lenitivo nos quadros da escravidão. Os exemplos aqui reunidos, embora numericamente sejam poucos, parecem-nos bastantes para evidenciar que os estrangeiros que passaram pelo Brasil nos séculos XVIII e XIX observaram a existência da vida familiar entre os cativos. Dela nos deixaram, ademais, visões percucientes, perspectivas estas que estão a ser desenvolvidas e complementadas, com base em documentação demográfica e eclesiástica, pelos hodiernos estudos sobre o tema. Esperamos, pois, haver contribuído para resgatar a parcela dos viajantes estrangeiros que viu a família escrava no Brasil colonial e imperial. Confundi-los com os demais que não chegaram a percebe-la representa grave omissão e desconhecimento imperdoável de relevantes depoimentos.

NOTAS

1.- "-- O que eu faço de minhas negras? Mas eu as emprego segundo a sua própria natureza: elas procriam.
"-- Cada uma possuí um marido? perguntei.
"-- Costuma-se dar, num rebanho, um carneiro a cada ovelha e um bode a cada cabra em legítimo casamento? respondeu o fazendeiro".
2.- "Se lhe ensina o amor da família separando-o de sua mulher e de seu filho, que se vende um para um lado e o outro para outro". 

Autoria de Iraci del Nero da Costa.

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