PENA DE MORTE: A HORA DE AFROUXAR MITOS E CORDAS
O primeiro brasileiro executado no exterior escolheu ser fuzilado em pé, vendado. Com 12 homens da artilharia indonésia à sua frente, apenas 3 deles com armas carregadas, foi morto com um tiro no peito após 12 anos de prisão por tráfico de drogas. Flagrado com 13,4 kg de cocaína, viu-se às cegas no encontro com a morte, no dia em que mais quatro réus dariam seu último respiro. Marco Archer Cardoso Moreira, 53, levou dez minutos para morrer. Depois, teve seu corpo cremado de maneira rudimentar e o nome associado a um dos tipos de punição mais impactantes do mundo. Cento e dois dias depois, Rodrigo Gularte, outro brasileiro, teve o mesmo destino diante do pelotão de fuzilamento. Rodrigo tentou entrar na Indonésia com 6 kg de cocaína em 2004 e encarou o corredor da morte indonésio por mais de uma década.
Antes das duas execuções, a pena de morte era pouco discutida em território nacional, sendo normalmente relacionada às cadeiras elétricas norte-americanas ou às execuções brutais na Arábia Saudita. Agora, com dois brasileiros na lista de vítimas da punição capital, ainda que fora do país, o tema volta à tona e levanta questões relevantes. Executar um réu ajuda a reduzir a criminalidade? Matar um criminoso é agir com justiça?
"Em todos os lugares onde a pena de morte é aplicada, ela é usada de maneira desproporcional contra minorias étnicas e religiosas, pobres e grupos marginalizados"
(Mauricio Santoro, cientista político)
Em 2007, pesquisadores da Universidade de Houston tentaram responder à primeira pergunta, e, para isso, decidiram checar a relação entre os números de criminosos mortos pelo Estado e os níveis de criminalidade. A conclusão imediata do grupo foi de que cada execução poderia prevenir até 18 homicídios no Texas. O estudo deu o que falar. Críticos puseram em xeque a metodologia dessa e de outras pesquisas com resultados semelhantes feitas na década anterior. O argumento mais frequente contra os estudos que tentam provar a eficácia da pena de morte é de que nenhuma delas apresenta conclusões em contextos globais, além de não tentarem responder à segunda questão do parágrafo anterior, ainda mais séria e complexa.
“Em todos os lugares onde a pena de morte é aplicada, inclusive em democracias como os EUA e a Indonésia, ela é usada de maneira desproporcional contra minorias étnicas e religiosas, pobres e grupos marginalizados, com poucos recursos econômicos e sem boas conexões políticas”, afirma o cientista político Mauricio Santoro, que foi assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil – organização que considera a prática um “assassinato cometido a sangue frio pelo Estado”. Uma cultura de brutalidade e violência acaba instaurada pelo governo, que toma para si o direito de eliminar seus próprios cidadãos.
Só em 2014, pelo menos 607 pessoas morreram mundo afora, mas estima-se que o número real seja bem superior, já que não há dados acessíveis sobre a China, onde a pena de morte é legalizada e amplamente posta em prática. O outro lado da estatística – o número de crimes impedidos – é praticamente impossível de medir. Mas é fácil encontrar um problema conceitual na pena de morte como forma de combater a criminalidade.
“Não existem soluções mágicas para resolver problemas ligados aos crimes. Elas passam pela construção de relações de confiança entre Estado e sociedade, por policiais bem treinados e equipados, um sistema judiciário eficaz”, diz Mauricio Santoro. Enquanto isso, o modelo do punitivismo – matar um criminoso para dar o exemplo – recebe mais investimento e mais aprovação pública. “O medo não pode ser base segura para uma sociedade democrática”, diz Pedro Lagatta, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP que integra o Margens Clínicas, coletivo de psicanalistas que atendem vítimas de violência do Estado.
Anderson Castro e Silva já foi agente penitenciário e hoje é pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, além de integrante do Conselho Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ele acredita que a pena de morte tenha perdido seu contexto original. A função de “punição exemplar”, praticada contra os criminosos no Antigo Regime, na Europa pós-Idade Média, faz pouco sentido nos dias de hoje. Naquela época, as penas corporais eram realizadas em espaços públicos e, quanto mais cruel e dolorosa fosse a punição, mais marcada ficaria a lição na memória das pessoas. “Mas as estratégias punitivas passaram a transformar e reintegrar o infrator à sociedade, e então surgem a restrição de liberdade e a prisão”, diz Castro e Silva. Se o sistema evoluiu e fez surgir outras soluções, a execução sumária deveria ter saído de moda. Mas não saiu.
Atualmente, estima-se haver mais de 20 mil pessoas condenadas à pena de morte no mundo. Com 32 estados que continuam a sentenciar à morte, os EUA tinham, em 2012, 21,6% da população carcerária mundial, segundo o ICPS (Centro Internacional de Estudos Prisionais), do King’s College, de Londres. Um estudo da Universidade de Michigan indica que um em cada 25 condenados à morte nos EUA é inocente.
A era da inocência
“As leis e os sistemas judiciários são estruturados para proteger e favorecer os poderosos. Um pouco mais num país, um pouco menos num outro, desde que o mundo é mundo”, diz o jornalista Carlos Marchi, autor do livro “A Fera de Macabu”, que trata da última execução oficial ocorrida no Brasil, em 1855. Manuel da Motta Coqueiro foi condenado como culpado pela chacina de colonos que trabalhavam em uma de suas fazendas. De acordo com Marchi, uma combinação de elementos foi decisiva na condenação do fazendeiro: inimigos poderosos, fortes evidências e uma imprensa sensacionalista. O problema é que ele era inocente.
A condenação de Coqueiro é simbólica por revelar o lado mais perverso da pena capital: a possibilidade do equívoco. “A irreversibilidade da pena de morte e a absoluta impossibilidade de reparar o erro após a execução a tornam uma pena que exige a verdade absoluta – e quem pode garantir que os julgamentos de uma Justiça precária a farão surgir?”, diz Marchi. Quando o imperador Pedro II – sujeito de formação humanista – soube da inocência do condenado, anos depois, perdoou seu crime e lutou pela extinção da pena de morte. Para Coqueiro, era tarde demais.
Apesar da execução de um homem branco e rico ter marcado a história, Carlos Marchi lembra que a existência da pena de morte no Brasil era profundamente ligada à escravidão. “Ela estava ali para assustar e conter os escravos nas reações pela violência que sofriam de senhores e capatazes.” Não por acaso, ela foi proibida oficialmente em 1889, um ano após a abolição da escravatura.
“O medo não pode ser base segura para uma sociedade democrática”
(Pedro Lagatta, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP)
Além da possibilidade do erro e da utilização da pena de morte como ferramenta de opressão, outro questão delicada assola o sistema judiciário: a condenação de pessoas com deficiências mentais e intelectuais. Em janeiro de 2014, Askari Abdullah Muhammed, foi executado na Flórida, mesmo após diagnósticos de esquizofrenia paranoide. Há também o caso de Ramiro Hernandez Llanas, morto no Texas depois que 6 testes de QI indicaram deficiência intelectual. De acordo com a Anistia Internacional, leis e normas internacionais afirmam que a pena de morte não deve ser imposta ou executada em pessoas com os tipos de deficiência descritos, sem exceção. Rodrigo Gularte, o segundo brasileiro morto na Indonésia, também tinha recebido um diagnóstico de esquizofrenia, o que poderia ter livrado o paranaense do fuzilamento.
Segundo o banco de dados da Universidade Cornell, nos EUA, no projeto A Pena de Morte Pelo Mundo, a legislação indonésia só permite o cancelamento da punição se ficar comprovado que o crime foi praticado quando o réu já estava doente – sem se importar se ele adquiriu o transtorno na penitenciária. Mas o Itamaraty afirma que a legislação deles garantiria a postergação da pena nesse cenário. O paciente deveria ser tratado em hospital psiquiátrico e, apenas quando recuperado, sofrer a execução. O que aconteceu de verdade, todos já sabemos.
Apesar de um cenário ainda desolador, as execuções têm declinado nos últimos anos, mundo afora. Hoje 140 países são abolicionistas e, em 2013, 22 nações tiveram execuções registradas, contra 37 em 1994. Ainda que, dois anos atrás, 57 países tenham condenado à pena capital, 32 deles registraram punições alternativas ou perdões de sentenças desse tipo. Uma campanha internacional em curso tem ajudado a mudar os números. Desde 2008, a Assembleia Geral da ONU tem aprovado resoluções que recomendam a moratória da pena de morte, ou seja, sua não aplicação. China, Irã, Iraque, Arábia Saudita e EUA são os países com maior número de execuções sendo o primeiro deles o mais brutal: 2,4 mil mortes em 2013 – muitas delas consideradas segredo de Estado. Mas não há escapatória, o mundo está de olho neles.
Aqui e agora
Depois da proibição dos tempos de Dom Pedro II, a pena de morte retorna na Constituição de 1988 por meio do artigo 5º, inciso XLVII. A lei estabelece que a execução capital entra em cena quando o país estiver em guerra declarada, ocasionada por agressão externa – para casos de traição, espionagem, abandono de posto, motim, e outros crimes de fundo militar. “Trata-se de um documento estupidamente duro, produzido pela Junta Militar dos ‘três patetas’ – general Aurélio de Lyra Tavares, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Márcio de Souza Melo – em 1969, pouco provável no mundo atual”, afirma o jornalista Carlos Marchi.
No entanto, outro tipo de pena de morte ocorre cotidianamente no Brasil, fora dos autos. Em novembro de 2014, a Corte Interamericana de Direitos Humanos exigiu que o país adotasse medidas que preservassem a vida de presos na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão. Em 2013, 60 pessoas foram mortas dentro da instituição, que deveria zelar pela integridade física dos detentos. “Os presos são ‘suicidados’ das mais diferentes formas no Brasil: do enforcamento ao coquetel de drogas”, afirma Anderson Castro e Silva. Para ele, “ser condenado à prisão comporta a possibilidade de o réu ter sido condenado à pena de morte. Será a habilidade individual de negociação e adaptação que garantirá, ou não, a vida do detento. O Estado não entra na prisão”.
Para o psicólogo Pedro Lagatta, as prisões brasileiras representam tanto uma morte física quanto social. “Aos presos são negados os direitos mais básicos para a sobrevivência: não há, mesmo que se argumente o contrário, garantia dos direitos à saúde, a sua segurança, à segurança alimentar, convivência familiar, à educação, trabalho, ao voto”, revela. Quando a pena de morte está em debate, Lagatta acredita que Indonésia e Brasil não são tão diferentes. “Seria um ingenuidade muito grande afirmar que não existe pena de morte no Brasil. Ela existe e provavelmente é mais perversa do é no país asiático: lá, essa pena cruel – que deve ser combatida – está ao menos em parte sujeita aos controles legais. Aqui, ela é aplicada de forma completamente arbitrária e sem controle.” E não há intervenção diplomática que salve essas vítimas.
A restrição da liberdade deveria substituir globalmente a pena de morte, exercendo sua função de preparar o indivíduo para retornar à sociedade e dando instrumentos para reintegrá-lo de fato a ela. Na prática, os dois métodos falharam. É chegada a hora de encontrar outras soluções definitivas.
O passado que condena
A pena de morte foi instaurada, séculos atrás, para ser lenta, dolorosa, torturante. Crucificação e até esmagamento por elefante fizeram parte do desfile de cruezas cometido em inúmeras sociedades. Aqui, uma breve linha do tempo para você acompanhar as transformações da pena capital.
“Olho por olho”
O Código de Hamurabi é o primeiro conjunto de leis escritas de que se tem notícia, datado de XVIII a.C, da região mesopotâmica. A pena de morte era aplicada a 30 tipos de crime, punindo severamente. O código era baseado no “olho por olho, dente por dente”, com penas que eles julgassem proporcionais à ilegalidade cometida.
Escrito em sangue
O código draconiano de Atenas – primeiro da capital grega, feito em 621 a.C. – sentenciava todo criminoso à morte. Para Drácon, nenhum crime seria perdoável. Seu sucessor, Sólon, promoveu uma reforma jurídica, e a punição capital permaneceu para assassinos.
A ferro e fogo
A Lei das XII Tábuas foi o primeiro conjunto legal de Roma, aprovado em 452 a.C., que também punia com execução. Crianças que nascessem disformes podiam ser assassinadas pelo próprio pai, sendo em geral afogadas; e a pena capital era dada até a quem proferisse falso testemunho.
Um estranho no ninho
Um dos primeiros a abolir a pena de morte, o imperador inglês Guilherme, o Conquistador, substituiu a execução sumária em 1066 pela tortura, castração e perda dos olhos. Seu filho, Henrique I, no entanto, retomou a condenação e até expandiu a lista de crimes passíveis de morte.
Entre a cruz e a espada
Durante a Idade Média, a Igreja Católica regia e dirigia a vida das pessoas, julgando quem ameaçasse suas doutrinas. Todos os suspeitos eram perseguidos, e os condenados poderiam ser mortos na fogueira, queimados em praça pública, como um espetáculo. Muitos cientistas foram considerados hereges e, portanto, executados.
Um iluminista no caminho
Considerado o pai do movimento pela abolição de tortura e pena de morte, o italiano Cesare Beccaria (1738-1794) evocou ideais do Iluminismo e inclusive do filósofo Montesquieu para afirmar que a pena capital seria tirânica. Seu pensamento se espalhou pela Europa e chegou até Thomas Jefferson, que ecoou a luta do pensador na América.
Cabeças ao chão
A guilhotina foi sugerida como método “mais humano” de decapitação pelo médico francês Joseph-Ignace Guillotin, baseada em um instrumento visto na Alemanha. O modelo foi bastante usado durante a Revolução Francesa, em especial no período de Terror (1792-1794), cujo líder era Robespierre, e o alvo, os inimigos do movimento revolucionário.
Na veia, em volts
A cadeira elétrica ainda é usada em execuções nos EUA, país que inventou o método pelo qual 2.000 volts percorrem o corpo do réu. Além dela, enforcamento, câmaras de gás, injeção letal e fuzilamento. Dos 50 estados, 32 ainda sentenciam à morte. Na China, país que mais executa, se mata por fuzilamento e injeção letal. As legislações estaduais diferem entre si, mas podem levar à morte: homicídio qualificado, atos terroristas, crimes de guerra, tráfico de drogas, genocídio, espionagem.
Texto de Bruna Wagner publicado em "Super Interessante", Brasil. maio de 2015. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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