CRIAÇÃO DE GADO NO BRASIL (ROBERTO SIMONSEN)


No período em que nos fixamos, exercia a criação de gado, na economia social, uma importância bem maior do que hoje. De fato, antes da era da máquina, o gado bovino, cavalar e muar, além de produto básico de alimentação, servia como agente motor e meio de transporte. Na Espanha, o gado lanígero, numa época em que estava mais desenvolvida na Europa a indústria lanígera que a do algodão, originou a “Mesta”, grande associação de criadores que comprovou, pelo seu poder e grandeza, a importância da criação animal.

D. Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martim Afonso de Sousa, providenciou, em 1534, para que se introduzisse gado bovino na capitania daquele donatário. Tomé de Sousa introduziu muito gado na Bahia. Usou mesmo, especialmente para tal serviço, de uma caravela, a Galga, que ia buscá-lo na ilha de São Vicente.

É provável que muitos donatários tivessem tido idêntica iniciativa. Na Capitania de São Vicente, a sua criação se desenvolvia lentamente, e, muitos anos mais tarde, o padre Nóbrega recomendava parcimônia em seu consumo, para que pudesse tomar maior incremento.

Foi a zona do açúcar, porém, que deu origem à primeira fase da grande criação de gado. Os antigos cronistas, Gândavo, Gabriel Soares, Fernão Cardim, Frei Salvador, e outros, são acordes em constatar a atenção que ia despertando a criação no centro-nordeste brasileiro. É que a indústria do açúcar era importante consumidora de gado. Os trapiches e engenhos, movidos por bois, faziam grande desgaste; as carretas para lenha e para o açúcar exigiam número considerável de cabeças, em porção, talvez, igual ao da escravatura ocupada.

A alimentação de carne era necessária para os que se dedicavam aos intensos trabalhos dos engenhos.

Junto aos engenhos havia currais cercados, em que se abrigavam as cabeças utilizadas no seu funcionamento.

A intensa procura que se estabeleceu, com o rápido crescimento da indústria, estimulava a criação. Já nas terras brasileiras ia-se verificando, porém, o conflito, existente no Velho Continente, entre os criadores e os lavradores, em defesa das plantações. Não havia o arame, o grande elemento pacificador e protetor da cultura dos campos. Daí uma das razões da retirada dos currais de criação para o sertão brasileiro, longe dos engenhos, dos canaviais e dos mandiocais e em terras mais pobres que não poderiam ser aproveitadas para as culturas exigidas pelo número crescente dos engenhos do litoral. Uma Carta Régia de 1701 proibia mesmo a criação a menos de 10 léguas da costa.

Os currais foram, então, penetrando e ocupando o interior. Começaram pelo sertão da Bahia. Era mais fácil aos criadores, do que aos senhores de engenho, estabelecerem um modus vivendi pacífico com os íncolas. O trabalho das fazendas de criar era incomparavelmente mais suave e mais adaptável ao temperamento dos íncolas do que o rude labor dos engenhos em que o autóctone perecia em pouco tempo. Daí, as alianças com diversas tribos selvagens, que permitiam a mais rápida expansão dos currais. Isso não impediu, no entanto, que se tornassem necessárias várias guerras de expulsão e de extermínio a muitas tribos, que se opuseram à expansão dos currais, ou que vieram a hostilizá-los.

Já no governo de Tomé de Sousa, iniciou Garcia de Ávila o estabelecimento de currais pelo interior da Bahia. Ele e os seus descendentes transformaram-se nos maiores criadores do sertão baiano, chegando a possuir “duzentas e cinqüenta léguas de testada na margem do rio São Francisco e deste ao Parnaíba setenta léguas”.

Em 1589, Cristóvão de Barros ocupou a costa até o São Francisco, expulsando os selvagens. Iniciaram-se também as distribuições de sesmarias no sentido ascendente do mesmo rio.

Os Ávilas e os seus associados prosseguem na invasão do sertão com os seus currais, passando o 'divortium acquarum', levando-os ao Maranhão, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Outros grandes criadores, os Guedes de Brito, ocuparam também largas faixas dos sertões baianos.

Subindo o São Francisco, atingem o interior mineiro. Passando para os vales do Tocantins e Araguaia, estende-se a criação para os sertões goianos de Amaro Leite.

Via Goiás, penetrou o gado às regiões do Mato Grosso, onde foi de encontro às manadas que subiam da Vacaria e das possessões espanholas; assim também o gado que subia o São Francisco encontrar foi-se com o que pela Capitania de São Vicente tinha sido introduzido em Sabarabuçu e vale do rio das Velhas, em Minas Gerais.

São Vicente, Bahia e Pernambuco foram, portanto, os centros irradiadores da criação para a região central e nordeste do Brasil.

Nos campos de Curitiba, parece ter sido o gado originário de São Vicente. Os dos campos do sul do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, supõe-se terem sido introduzidos principalmente pelas missões
jesuíticas espanholas.

Criadores da zona do açúcar

As fundações de fazendas de criar de sesmarias abriram novas possibilidades aos sertões da costa, permitindo também o descongestionamento dos engenhos de açúcar do litoral. Para as novas sesmarias, descobertas pelos audaciosos sertanistas, afluíram os indivíduos que não dispunham de emprego estritamente produtivo, ou vadios, isto é, as populações livres dos mestiços de toda a casta. A esses, atraíam os grandes sesmeiros para fundar currais, pois o pastoreio, como observa Oliveira Viana, é a forma mais generalizada da exploração da terra no período colonial.

Não se processou, no entanto, sempre pacificamente, essa entrada dos vaqueiros. No último quartel do século XVII, houve um célebre levante de índios nos sertões da Bahia, alguns dos quais procedentes de antigas tribos conversas. Lutando com sérias dificuldades para vencê-los, resolveu o Governo da Bahia recorrer aos paulistas que exploravam, permanentemente, a indústria da guerra, como elemento básico no ofício de caça ao bugre, principal atividade da gente de Piratininga.

Daí os socorros chefiados por Domingos Barbosa Calheiro, Brás Rodrigues Arzão, Estêvão Ribeiro Baião Parente e outros.

Seguiram esses paulistas com suas expedições, por via marítima, embarcando em Santos. Com o transporte dos dois últimos e de sua gente, em 1671, despendeu a Câmara de São Salvador 10:000$000, equivalentes a cerca de 500 contos em moeda de hoje. Foram os paulistas bater os índios que se haviam rebelado e assassinado os vaqueiros de Aporá. Mais tarde, por terra, Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso de Almeida, Morais Navarro e outros foram empregados no combate aos paiacus, janduís e icós, nas ribeiras do Açu e Jaguaribe.

“Muitos dos paulistas empregados nas guerras do Norte não tornaram mais a São Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras adquiridas por suas armas: de bandeirantes, isto é, despovoadores, passaram a conquistadores, formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do descobrimento das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do S. Francisco havia mais de cem famílias paulistas, entregues à criação de gado.”

Esta informação é confirmada por Pedro Taques, que diz terem sido numerosas as famílias de São Paulo que, em contínuas migrações, procuravam essas zonas afastadas e aí se instalavam com suas fazendas de gado. Domingos Mafrense, também conhecido por Domingos Sertão, ficou no Piauí, onde fundou 39 fazendas de criar gado vacum, mais tarde doadas aos jesuítas. Domingos Jorge Velho, penetrando no sertão da Paraíba, na ribeira do Piancó, aí fundou fazendas com reses trazidas das margens do São Francisco. Em Goiás penetraram as primeiras reses tresmalhadas dos rebanhos do São Francisco e, em princípios do século XVIII, foram instaladas, também por paulistas, as primeiras fazendas de criar nos ótimos campos goianos.

O vaqueiro

“Adquirida a terra para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostumar o gado ao novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente; depois ficava tudo entregue ao vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregoriamente, abrir cacimbas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício vaqueiral, escreve um observador, deixa poucas noites de dormir nos campos, ou ao menos as madrugadas não o acham em casa, especialmente de inverno, sem atender às maiores chuvas e trovoadas, porque nesta ocasião costuma nascer a maior parte dos bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que estão próximas a ser mães, e trazê-las quase como à vista, para que parindo não escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram de varejeiras.

“Depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazendas por sua conta. Desde começos do século XVIII, as sesmarias tinham sido limitadas ao máximo de três léguas separadas por uma devoluta. A gente dos sertões da Bahia, Pernambuco, Ceará, informa o autor anônimo do admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, tem pelo exercício nas fazendas de gado tal inclinação que procura com empenhos ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda, são títulos honoríficos entre eles.

“As boiadas procuravam os maiores centros de população, isto é, as capitais da Bahia e Pernambuco.”

Antonil, em 1711, confirma, em interessantes informações, a importância que assumira a criação de gado no Brasil central. Referindo-se ao sertão da Bahia, acentua:

“É porque as fazendas, e os currais de gado se situam aonde a largueza de campo, e agora sempre manente de rios, ou lagoas: por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de S. Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Peramirim, na do rio Jacuípe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vaza-Barris, na do rio de Sergipe; e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários, que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais: e só na borda d’aquém do rio de S. Francisco, cento e seis lagoas. E na outra borda da parte de Pernambuco, é certo que são muito mais. E não somente de todas estas partes e rios já nomeados vêm boiadas para a cidade e recôncavo da Bahia, e para as fábricas dos engenhos; mas também do rio Iguaçu, do rio Carainhaém, do rio Corrente, do rio Guaraíra, e do rio Piagui-grande, por ficarem mais perto, vindo caminho direito, à Bahia, do que indo por voltas a Pernambuco.

“E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade Olinda até o rio de S. Francisco, oitenta léguas: e continuando da barra do rio de S. Francisco até à barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para Oeste até o Piagui, Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do norte estende-se de Olinda até ao Ceará-Merim, oitenta léguas, e daí até o Açu, trinta e cinco léguas, e até ao Ceará Grande, oitenta léguas: e por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte, quase duzentas léguas que, por terem junto de si pastos competentes, estão povoados com gado (fora o rio Preto, o rio Guaraíra, o rio Iguaçu, o rio Corrente, o rio Guarignae, a lagoa Alegre, e o rio de S. Francisco, da banda do norte), são o rio de Cabaços, o rio de S. Miguel, as duas Alagoas com o rio do Porto do Calvo, o da Paraíba, o dos Bariris, o do Açu, o do Podi, o de Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajeú, o Jacaré, o Canindé, o de Parnaíba, o das Pedras, o dos Camarões e o Piagui. Os currais desta parte hão de passar de oitocentas léguas: e de todos estes vão boiadas para o Recife, e Olinda, e suas vilas, e para o fornecimento das fábricas dos engenhos desde o rio de S. Francisco até ao rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piagui até à barra de Iguaçu, e de Pernágua, e rio Preto; porque as boiadas destes rios vão quase todas para a Bahia, cujo melhor caminho é pelas Jacobinas, por onde passam, e descansam. Assim como aí também param, e descansam as que às vezes vêm de mais longe. Mas quando nos caminhos, se acham pastos, porque não faltarão às chuvas, em menos de três meses chegam as boiadas à Bahia, que vêm dos currais mais distantes. Porém se por causa da seca forem obrigados a parar com o gado nas Jacobinas: aí o vendem os que o levam, e lá descansa seis, sete e oito meses, até poder ir à cidade.”

Quanto às estatísticas, atribui: à Bahia, 500.000 cabeças; a Pernambuco, 800.000 cabeças e ao Rio de Janeiro, 60.000 cabeças.

Computando São Paulo e os campos de Curitiba, “onde vai crescendo e multiplicando cada vez mais o gado”, não é difícil avaliar em mais de 1.500.000 o número de cabeças existentes nessa época, na colônia lusitana, sem contar o gado bravo dos campos do Sacramento.

Conforme Antonil, os currais variavam de 200 a 1.000 cabeças; as fazendas, muitas com avultado número de currais, chegavam a ter até 20.000 cabeças de gado.

“As do sertão da Bahia, que pertenciam às duas grandes famílias - a da Torre e a do defunto mestre-de-campo, Antônio Guedes de Britto - eram ocupadas parte pelos donos, que arrendavam o resto, à razão aproximada de 10.000 anuais por légua.

“Para os engenhos, para os lavradores de cana, tabaco, mandioca, serrarias, lenha; para a alimentação era grande o consumo de gado. E o couro exportado em ‘cabelo’ e em meias-solas, só por si indica uma matança anual de mais de 55.000 cabeças.” Os transportes se faziam por boiadas de 100 a 300 cabeças de gado.

“Os que as trazem são brancos, mulatos, e pretos e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se, indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das reses tangendo-as, e tendo cuidado, que não saiam do caminho e se amontoem. As jornadas são de quatro, cinco, e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos, aonde hão de parar. Porém, aonde há falta d’água, seguem o caminho de quinze, e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem, aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra às reses o vão, por onde hão de passar.”

Época do couro no Norte

Com a expansão da criação passou-se a fazer uso intenso do couro.

“De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde as camas para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.”

As descobertas de salinas no Ceará e em Alagoas, a existência de barreiros salgados no vale de São Francisco e a maior proximidade de Portugal, grande produtor e exportador de sal, favoreceram a expansão criadora do Norte. A ilha de Joanes, atual Marajó, foi também povoada de gados no início do século XVIII. A expansão contínua dos currais nas terras que os sesmeiros isoladamente não podiam explorar, deram origem aos “sobrados”, assim chamadas as sobras das sesmarias também ocupadas pelos vaqueiros.

O sistema de vida e a necessidade de maior golpe de vista sobre a propriedade, conduziam os vaqueiros a construir suas habitações nos lugares altos, contrastando com as habitações nos vales, características dos agricultores do Sul.

O surto minerador

A ocupação de uma grande área do sertão brasileiro pelos criadores, formando a retaguarda econômica dos engenhos, ao mesmo tempo que constituía uma eficaz proteção contra as incursões dos selvagens nas zonas litorâneas do açúcar, exerceu ainda uma alta finalidade, quando se verificou a expansão mineradora do Brasil central. De fato, a mineração produziu uma rápida concentração de populações em zonas pouco férteis, provocando uma grande procura de alimentação e crises terríveis de fome que as crônicas relatam sob as mais sombrias cores.

Os mineradores de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais foram abastecidos pelos criadores do vale do São Francisco e sertões do Nordeste. A alta que se verificou nos preços do gado nos campos de mineração, foi de tal monta, que repercutiu em toda a zona criadora, provocando os protestos dos senhores de engenho, já grandemente prejudicados com a elevação, da mesma origem, registrada nos preços dos escravos.

E, se pelos “caminhos dos currais”, iam dos sertões da Bahia para as zonas de mineração socorros alimentares, pelas mesmas estradas poderia ser contrabandeado o ouro, fugindo ao pagamento dos quintos... Daí a Carta Régia de 7 de fevereiro de 1701, ordenando que as Capitanias da Bahia e Pernambuco não se comunicassem com as minas de São Paulo pelos sertões, para que dessas minas não se ^pudessem ir buscar mantimentos ou gados das mencionadas capitanias.

Tal determinação foi logo depois atenuada, consentindo-se que pelo caminho dos currais passasse apenas o gado em demanda dos campos de mineração.

De acordo com a mesma ordem de idéias, a Carta Régia de 7 de maio de 1703 mandou que se dessem de sesmaria as terras dos campos das minas até a serra dos Órgãos e mais próximas do Rio de Janeiro com a condição de cada donatário pôr um curral de gado dentro de três anos “no sítio que se lhe der, por se entender que com a fertilidade destas terras abundarão essas capitanias em gado e a Fazenda Real terá um grande lucro nos dízimos’’.

Um documento de 1703 ainda constata a continuação do fornecimento de gado do vale do São Francisco.

“Pelo dito rio ou pelo seu caminho, lhe entram os gados de que se sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que de nem uma parte lhe vão nem lhe podem ir os ditos gados, porque não os há nos sertões de S. Paulo nem nos do Rio de Janeiro.”

O gado do Sul

A emulação provocada pelo alto preço do gado bovino nas zonas de mineração e as dificuldades decorrentes do fornecimento exclusivo proveniente da faixa de criação ligada à economia do açúcar, quando as catas se distendiam por longínquas áreas, trouxeram como consequência a instalação de fazendas em Minas, Goiás e Mato Grosso e a procura do gado da região sulina que os paulistas, aliás, visitavam desde os princípios do século XVII. Portugal, com o hábil gesto político da ocupação da Colônia do Sacramento, firmou sua resolução de levar as suas lindes às águas do Prata, incorporando ao patrimônio lusitano uma grande região onde abundava o gado.

São contraditórias as notícias sobre a introdução dos primeiros gados no Vale Platino. Southey assim reproduz o lendário conto das “Vacas de Gaeta”:

“Na governação de Yrala (1556) trouxe o capitão, Juan de Salazar, sete vacas e um touro da Andaluzia para o Brasil, levando-as daqui por terra, seguindo provavelmente a mesma direção tomada por Cabeça de Vaca para o Paraná defronte da foz do Mondaí. Ali construiu uma jangada para o gado, deixando um certo Gaeta que o transportasse por água para Assunção, enquanto ele seguia por terra. Uns poucos de meses gastou na viagem a jangada, cujo arrais recebeu em recompensa uma das vacas. Ainda hoje se diz proverbialmente entre os espanhóis - a vaca de Gaeta - querendo significar coisa de grande valor; mas, embora este ditado implique passar agora aquele pagamento por ter sido ridiculamente desproporcionado ao serviço, tinha provavelmente outro sentido na sua origem. Quando mais de sete vacas não havia no país, nada podia ser de tanto valor como uma delas.

Em 1580 se embarcou de Buenos Aires para a Espanha o primeiro carregamento de couros, e uns trinta anos depois se levaram das cercanias de Sta. Fé para o Peru nada menos de um milhão de cabeças de gado, dizem, tão rapidamente se multiplicara este nas imensas pampas dentre Tucumã e o Prata. (Azara diz que os fundadores de Buenos Aires para ali levaram em 1580 algum gado, parte do qual se tornou bravio, multiplicando-se grandemente no país para os lados do rio Negro.) Mas a segunda fundação de Buenos Aires foi em 1546, e no mesmo ano da terceira fundação se exportava o primeiro carregamento de couros. Lapso ainda mais singular se nota no mesmo capítulo do "Essai sur Histoire Naturelle des Quadrupedes de la Province du Paraguai", pelo referido Azara. Atribui ele a origem do gado bravo da margem do norte do Prata a algum que ele supõe terem deixado ficar os espanhóis do Paraguai, em 1552, ao serem expulsos da cidade de São João Batista, que haviam tentado fundar defronte de Buenos Aires. Esquece, porém, que esta tentativa de fundação à margem esquerda, talvez no sítio da Colônia, tivera lugar, segundo ele mesmo refere, quatro anos antes da introdução do primeiro gado da Europa. Muito antes deste tempo devia haver gado no Brasil, sendo muito mais provável que o bravio, a que alude Azara, proviesse da Capitania de São Vicente do que do Paraguai, de onde o Paraná e o Uruguai teriam oposto à migração insuperáveis obstáculos. Espontaneamente não se mete o gado à água, nem obrigam jamais a fazê-lo sem que ocorra alguma perda. Observa Dobrizhoffer que quando grandes manadas atravessam um rio, sempre se afogam mais touros do que vacas. Não tardou a haver quem por milhares e por dezenas de milhares contasse o seu gado num país onde as pastagens eram do tamanho de qualquer freguesia rural da Europa, excedendo à área de uma só estância muitas vezes a de um condado da Inglaterra. Não faltavam pessoas que possuíssem cem mil cabeças, nem Reduções que tivessem mais de meio milhão, número não desmesurado, onde mais de quarenta reses se cortavam diariamente para consumo dos moradores. Uma grande porção era furtada, outra, maior ainda, era presa dos índios hostis, tigres e cães bravos, perecendo miseravelmente um sem-número de bezerros vítimas das moscas que se pode chamar por excelência a praga do Paraguai. O gado bravo muito excedia em número, o semi-domesticado. Com igual rapidez se haviam multiplicado os cavalos. A grande propagação destes animais numa terra, onde antes da descoberta nenhum existia daquela espécie, veio alterar até as características físicas do país. Desapareceram as plantas bulbosas e as numerosas espécies de pitas ou caraguatás, que antes cobriam as planícies, vindo substituí-las um pasto fino e uma sorte de cardo rasteiro assaz forte para resistir ao pisar dos animais que fora o que destruíra a primitiva ervagem.”

Virgílio Correia Filho em uma de suas 'Monografias Cuiabanas', assim comenta o incidente:

“O nome do esperto boiadeiro gravou-se nos fastos da pecuária sul-americana, insculpido pela pena do primeiro cronista paraguaio, que lhe historia o feito relevante.”

Enquanto proliferava, ao redor de S. Vicente, o rebanho bovino, trazido em 1534, por ordem de D. Ana Pimentel, consorte do donatário, e procurador dele, os povoadores de Assunção nutriam-se apenas do que lhes fornecia a abundante lavoura indígena.

Mas frequentavam-se os dois povos, através dos sertões que lhes impediam o intercâmbio.

De uma feita, em S. Vicente, encontraram-se o capitão Salazar, que vinha da Espanha, e Melgarejo, proveniente de Guaíra, cujo embarque foi impedido pelas autoridades vicentinas.

Jornadeariam, juntos, com suas famílias, rumo de Assunção, obscuramente, como qualquer viajante da época, se não se tivessem associado aos filhos de Luís de Góis, povoador da vila de Martim Afonso, de nomes Cipriano e Vicente, que lhes deram relevância à expedição.

Empreendedores, conduziram a primeira boiada, bem modesta, em verdade, com que se deveria iniciar a pecuária no Uruguai.

Eram sete vacas e um touro, confiados ao vaqueiro Gaeta “que llegó con ellas à la Assunción con grande trabajo y dificultad solo por el interés de una vaca, que se le senalo por salario, de onde quedó en aquella tierra un proverbio que dice: son más caras que las vacas de Gaete”.

Ao comentar este passo Angelis confirma a primazia atribuída aos irmãos Góis, como implantadores da pecuária no Paraguai, embora descontando os exageros do deão Funes, que lhes ampliou a influência da iniciativa por toda a região platina.

Quanto à introdução do gado na margem oriental do rio Uruguai, estudos de Caviglia e outros atribuem-na a Hernanderías, que, em 1608, teria aí formado sua estância. Outros atribuem-na aos jesuítas, que fundaram suas missões no atual Rio Grande, em 1618. Como quer que seja, a existência de abundante gado na região do Sul e os preços elevados que alcançaram na Capitania de São Paulo justificavam o fomento de seu comércio e o seu transporte pela costa, até ao porto de Laguna e dali o seu embarque até os portos de Santos, Iguape, Parati e Rio de Janeiro.

Antes de existir na parte oriental do continente de São Pedro qualquer núcleo de povoação, que só se fundou em 1725, havia um frequente comércio de gado entre os habitantes primitivos das terras do Rio Grande e os moradores de Laguna. Esse comércio era autorizado e mesmo recomendado pelo governo da  Capitania de São Paulo  que estendia a sua jurisdição por todo o país até o Rio da Prata.

O ato do governo de São Paulo, de 17 de janeiro de 1725, demonstra que o comércio de animais com os índios constituía já uma séria preocupação para os homens de negócio da Colônia.

Encontramos, ainda em 1725, o bando de D. Rodrigo César de Meneses permitindo o transporte de gado vacum do sertão de Curitiba e dos campos de Vacaria para a zona de mineração.

Para atender ao incremento do comércio do Sul, urgia a abertura de um caminho por terra, unindo os campos do Rio Grande à grande zona consumidora. Foi o paulista Bartolomeu Pais de Abreu quem primeiro propôs ao governo, mediante determinadas mercês, ligar São Paulo ao Rio Grande. Não apoiado pelo governador Rodrigo César de Meneses, somente em 1727 tal cometimento pôde ser levado a efeito por Francisco de Sousa Faria, quando do governo de Antônio Caldeira da Silva Pimentel.

Outorgou-lhe este governador apoio e favores; e, com o auxílio de Cristóvão Pereira, subiu Faria pelo vale do Araranguá, rompendo, com grandes dificuldades, a serra do Mar, e encontrando, nos campos de Lajes e São Joaquim, pastos admiráveis, com grande porção de gado aí lançado pelos tapes, das aldeias jesuíticas. Em 1730, alcançou Faria os campos de Curitiba. Nessa região, explorada pelos paulistas que iam ali à cata de ouro, desde meados do século XVIII, Gabriel de Lara fundara, em 1614, a Vila de Curitiba.

Foi ainda Cristóvão Pereira quem retocou a estrada e levou por ela a primeira tropa que chegou a São Paulo em 1733.

Sul de Mato Grosso

Nos campos de Vacaria, no sul de Mato Grosso, a criação do gado bovino, originário das estâncias dos missionários paraguaios, tinha assumido um grande desenvolvimento. Dele também lançaram mão os paulistas.

Estabeleciam-se, assim, as correntes comerciais de gado pelo interior do Brasil, funcionando a zona de mineração como um providencial elo de interesses econômicos, unindo, pelo sertão, os homens do Norte, do Centro e do Sul.

Foi essa mineração que também provocou o rápido crescimento da população brasileira, que, em um século, decuplicaria.

Com a ocupação definitiva da Capitania de São Pedro e dos campos da Colônia do Sacramento, registrou-se ainda um fato que bem demonstra a relevância dos fatores econômicos. Devido ao clima, aos pastos, às facilidades de locomoção, o gado se desenvolveu nos campos do Sul, ainda mais facilmente do que no Norte. O preço da carne, na costa nordestina, sempre foi elevado.

Tal circunstância permitiu o desenvolvimento das indústrias de charque, nas regiões sulinas, para o suprimento, por via marítima, das populações litorâneas do Centro-Norte brasileiro. No Norte, já era conhecida a carne-de-sol, carne-seca ou carne-de-vento, particularmente nos sertões do Ceará. Passaram a consumir em grande escala a carne de charque, preparada com sal e de maior duração que aquela.

As leis econômicas foram, assim, delimitando, dentro das fronteiras brasileiras, as zonas de preponderância de gado e de melhor carne bovina. As dificuldades de transportes e o aumento de população promoveram, também, a fundação de fazendas de criar nas Capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, regiões que passaram, com o correr do tempo, a ser fornecedoras do gado em pé para o consumo dos grandes centros populosos, Rio de Janeiro e São Paulo.

No comércio bovino, como na hegemonia econômica do país, perdia o Norte a sua predominância inicial. O comércio do couro e os níveis de preço de gado refletiam, de seu turno, tal alteração.

Preços do gado bovino

No século XVI os primeiros bois valiam, na Bahia, 100$000, normalizando-se, depois, os preços para 10$000 a 12$000 por cabeça, ou sejam quase 2:000$000 em valor aquisitivo de hoje; e em Pernambuco o dobro, tal a procura que havia pelos engenhos (Warden).

Em 1618, nos Diálogos das Grandezas do Brasil se lê que no Norte uma vaca valia de 4$000 a 5$000; um boi de carro de 6$000 a 7$000 e um boi já feito de 12$000 a 13$000, valores que, multiplicados por 228, coeficiente de correção para o poder aquisitivo de hoje, representam: 4$000= 912$000; 5$000 = 1:140$000; 6$000= 1:368$000; 7$000 =  1:596$000; 12$000 = 2:736$000 e 13$0000 = 2:964$000

Esta informação confirma a de Warden, para fins do século XVI. No entanto, nas mesmas épocas, em inventários paulistas, verificamos que uma vaca valia 1$000 e um boi capado 2$000, isto é, a quinta ou sexta parte do valor do gado do Norte.

Em 1711, segundo Antonil, uma rês ordinária valia, na Bahia, de 4$000 a 5$000; e nas Jacobinas centro de feiras de gado, valia de 2$500 a 5$000, representando isto 200$000 de hoje, para a rês ordinária, 350$000 para os bois.

“Porém nos currais do rio de São Francisco os que têm maior conveniência de venderem o gado para as Minas, o vendem na porteira do curral pelo mesmo preço que se vende na cidade.” Era pequena a diferença quanto às boiadas de Pernambuco e do Rio de Janeiro.

No entanto, em 1700, na zona de mineração, chegou-se a pagar 100 oitavas por um boi, o que representa mais de 50 libras esterlinas, ou sejam cerca de 10 contos de réis em poder aquisitivo de hoje.

Em 1768 já valia o boi na Bahia de 3$200 a 4$000, segundo carta do Marquês de Lavradio, o que representa 160$000 em poder aquisitivo de hoje.

Em 1800, em Goiás, valia o gado 4$800 quando vendido para regiões do Sul e 1$500 quando vendido para regiões do Norte. Nessa mesma época, já era muito abundante o gado no Rio Grande do Sul, onde, nas estâncias, o preço da rês girava em torno do mil-réis (50$000 de hoje).

Em 1828, Luís d’Alincourt, no seu recenseamento econômico de Mato Grosso, registrava, para o custo de um boi gordo, de 4$800 a 6$000, e se comprado diretamente na fazenda, de 2$400 a 3$000. Uma vaca, de 2$400 a 3$000, mas, nas fazendas, 1$700. Um boi manso de carro, 7$200.

Texto de Roberto C. Simonsen em "História Econômica do Brasil(1500/1820)", 8ª edicão, Brasiliana, Série Grande Formato volume 10, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1978, excertos pp. 150-164. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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