ARTHUR, MITO REAL


ELE PODE NUNCA TER EXISTIDO, MAS SUAS LENDAS FIZERAM DELE UM DOS PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES DA HISTÓRIA.

Em matéria de mitologia medieval, rei é Arthur, os outros são cartas do baralho. De Monty Python a Shrek e, agora, Guy Ritchie, todo mundo que falou em reis medievais ao menos tirou uma casquinha.

Tudo isso por um rei que, provavelmente, nem sequer existiu. Arthur é um personagem mitológico, construído em diferentes obras literárias publicadas ao longo dos séculos IX a XIII, colaborando para criar uma identidade do povo britânico. “Nós historiadores simplesmente não temos nada a declarar sobre Arthur. Não existe nenhum indício palpável, nenhum documento confiável, confirmando sua existência”, afirma Norris Lacy, professor de estudos medievais da Pennsylvania State University. Há lendas de outros povos, mas nenhum personagem tem o impacto e o alcance de Arthur.

Nobres britânicos de diferentes épocas fizeram alianças alegando serem legítimos descendentes do monarca guerreiro - entre eles, Ricardo I (1157-1199), que carregava uma espada que dizia ser a própria Excalibur. Eduardo I, que governou entre 1272 e 1307, colocou ossos que teriam sido de Arthur, encontrados num monastério em Glastonbury, em uma cripta grandiosa, recoberta de mármore negro. Eduardo IV (1442- 1463) se vestia com túnicas e capas cheias de símbolos que supostamente eram usados pelos cavaleiros da Távola Redonda. Sua morte, em 1463, deixou desolados os súditos que juravam que ele era o próprio Arthur em pessoa. Henrique VII (1457-1509) marchou de Gales até a Inglaterra sob um estandarte do dragão vermelho de Arthur.

O “reencarnado" Eduardo IV não era um episódio isolado. Boatos de que o monarca nunca morreu e um dia iria voltar eram recorrentes, a ponto de o rei da Espanha Filipe II jurar, durante a cerimônia de casamento com Maria I da Inglaterra, em 1554, que abdicaria do trono no momento em que Arthur voltasse.

DAS PÁGINAS PARA A VIDA 

Vamos então às lendas em si. Arthur nasceu humilde. A primeira vez em que seu nome aparece é em "Historia Britonum", livro em latim escrito em 828 pelo monge galés Nennius. Não era citado como rei, mas como um 'dux belorum', um chefe militar poderoso, capaz de matar 960 homens, sozinho, ao longo de uma única batalha.

“Textos anteriores citam reis e batalhas, e nenhum menciona Arthur. Sua história deve ter sido inspirada em guerreiros que viveram durante o período turbulento de consolidação da Grã-Bretanha como nação”, diz Norris Lacy. Arthur nasce entre os celtas do País de Gales e é exportado para os anglo-saxônicos da Inglaterra. As lendas falam que um guerreiro imbatível chamado Arthur teria vivido no século VI e lutado contra monstros. Montou em um urso para vencer um dragão. Enfrentou gigantes de 10 metros de altura. Superou bruxas e gatos bem maiores que tigres. Prendeu o javali Twrch Tnvyth. Viajou até Annwn, 0 mundo dos mortos da mitologia galesa.

Até o século XII, os textos citam Arthur apenas brevemente. Ele ganharia uma nova dimensão no ano 1136, com um escritor chamado Geoffrey de Monmouth.

Britânico de Oxford, Monmouth construiu a figura de Arthur em seu livro "Historia Regum Britanniae". De forma exuberante e quase nada baseada em fatos, ele se propõe a contar a vida de cada um dos supostos 107 reis da Inglaterra até então. Começando por Brutus, neto do personagem Enéas, da Ilíada grega. E passando por Lear (aquele que depois seria imortalizado por Shakespeare).

“A partir daqui, tornou-se comum, nas novelas de cavalaria posteriores, fazer a ascendência do herói remontar estrategicamente à tradição greco-romana ou à arturiana para dignificação de sua ‘linhagem’”, afirma Lênia Márcia Mongelli, professora de literatura da USP.

Com Monmouth, Arthur ganhou uma personalidade. É nessa obra que estão, reunidos pela primeira vez, todos os elementos que todo mundo conhece até hoje: é filho do rei Uther Pendragon, que havia tomado sua esposa Igema de outro homem graças a uma magia de Merlin. Com a morte do pai, envenenado, Arthur, de apenas 15 anos, assume o trono bretão e dá início a um período de grande prosperidade. Munido de sua espada Excalibur, seu escudo Pridwen e sua lança Ron, ele parece ser invencível.

Casa-se com Guinevere, vive em Camelot e coordena a Távola Redonda, o grupo de cavaleiros nobres que aumenta o território do reino. Depois de um período de paz, segue para enfrentar os romanos, mas volta correndo para casa quando fica sabendo que seu sobrinho Mordred, filho de sua irmã Ana (que depois viraria Morgana), tomou sua rainha em casamento e se proclamou rei. Arthur então mata o sobrinho, fica gravemente ferido e é levado para a Ilha de Avalon. Nunca mais é visto.

O que vem depois é toda outra mitologia, algumas lendas apontando a localização de seu túmulo e outras dizendo que ele nunca morreu e governará novamente. “O Arthur mítico passou à História como ‘rei messiânico’ - aquele que está recolhido em algum lugar inacessível e que um dia voltará para conduzir seu povo à redenção”, afirma Márcia Mongelli.

"Historia Regum Britanniae" teve uma influência gigantesca. Tomada como história oficial da Grã-Bretanha até o século XVI, estimulou os ingleses a encontrar um túmulo que teria sido do antigo rei glorioso. Os manuscritos da obra correram a Europa, o norte da África e o Oriente Médio. Influenciaram centenas de obras literárias, que se dedicaram a explorar novos aspectos da vida do monarca. E também adições dos tradutores: uma tradução para a linguagem normanda, concluída em 1155, incluiu a história da Távola Redonda, uma mesa onde os conselheiros e cavaleiros do rei se reuniam de igual para igual, sem ninguém à cabeceira.

De certa forma, a Távola Redonda existiu de verdade, mais de uma vez, em diferentes lugares: existiram mesas circulares para reuniões de cavaleiros e lideres políticos em Chipre, na Suécia, na França, na Espanha... A mais famosa é a de Winchester, edificada a mando do rei inglês Eduardo I, o mesmo que construiu a cripta para os supostos ossos de Arthur. A rainha Maria da Escócia (1542-1587) batizou seu filho, o futuro rei Jaime I, durante um festival onde reuniu 30 convidados em torno de uma réplica da Távola mítica.

Arthur, que nasceu para justificar a nobreza da Grã-Bretanha, passou a ser um símbolo mundial. Muitos reis da época se disseram inspirados na grandeza de Arthur, tentando emular seus feitos.

Até o fim do século XVI, ainda eram comuns os festivais imitando a antiga corte do rei, com sua rainha e seus cavaleiros. Mas, à medida que novas obras foram surgindo, novas facetas do rei apareceram. Algumas delas bastante negativas, dando origem a um personagem mais interessante (ao menos para o gosto moderno).

BÊBADO E DORMINHOCO 

Sabe-se pouco sobre a vida do poeta e trovador francês Chrétien de Troyes. Mas não há dúvidas de que seus romances foram influentes. Vários abordaram lugares e personagens ligados à mitologia britânica. “Chrétien de Troyes valeu-se do expressivo papel da literatura ficcional na intersecção de fontes para praticamente criar a identidade do Arthur e da gloriosa Cavalaria arturiana”. afirma a professora Lenia Márcia Mongelli.

Troyes situa cinco de suas histórias, escritas entre 1170 e 1190, durante o reinado de Arthur. Mas o rei costuma aparecer num pano de fundo. Geralmente está dormindo, ou bebendo. Não toma atitude alguma quando sua rainha é raptada - são seus cavaleiros que vão assumir a iniciativa de resgatá-la. Mal percebe que sua esposa se apaixonou por seu mais valoroso cavaleiro, Lancelot - criação de Troyes.

A mudança de enfoque diminui a figura do rei com o objetivo de valorizar o amor romântico e o cavalheirismo nobre. “A história das origens grandiosas e heroicas da Inglaterra perde espaço e a corte britânica se torna pano de fundo para dramas pessoais que valorizam atitudes éticas“, afirma o professor Norris Lacy. Segundo Lênia Mongelli, Troyes “deu asas à fantasia e acrescentou à tradição alguns elementos que, a partir de então, passaram a compor o modelo mítico do soberano perfeito.”

Troyes também é o criador de Percival (aquele que Wagner vai transformar na ópera 'Parsifal'), um cavaleiro que encontra o famoso cálice usado por Cristo na Santa Ceia. É nesse contexto, de transformar Arthur num rei cristão, que surge, finalmente, a lenda a respeito da espada fincada na pedra - ela é citada pela primeira vez no livro "Merlin", publicado no começo do século XIII por Robert de Boron, um poeta francês que também expandiu a lenda do Santo Graal.

O suposto artefato (para muitos nem é uma taça, mas também pode ser um prato) teria sido usado durante a Última Ceia. José de Arimateia, aquele que, segundo os evangelhos, emprestou sua sepultura a Jesus, teria recolhido o sangue do messias crucificado no mesmo recipiente. Para fugir às perseguições dos romanos, teria então fugido para a Grã-Bretanha, levando o Graal consigo.

A lenda nunca morreu. Os nazistas realizaram uma expedição séria para o monastério de Montserrat, perto de Barcelona, onde ele estaria escondido. Em 2014, dois pesquisadores, Margarita Torres e José Ortega del Rio, apresentaram um cálice conhecido desde o século XI, 0 Cálice de Dona Urraca, como o verdadeiro Santo Graal. As catedrais de Valência e Gênova também afirmam que os cálices em sua possessão são o da Última Ceia.

Camelot, a cidade fantástica que teria sido a capital do império arturiano, só surgiu várias décadas depois. Turistas em viagem pela Cornualha podem visitar o que seriam os restos de Camelot.

As lendas arturianas perderam força na época da Renascença, pela atitude mais racionalista e pela decadência militar da cavalaria. Ilustra esse momento "Dom Quixote", de 1600, satirizando os romances de cavalaria, habitat natural do Rei Arthur. No século XIX, uma segunda chance: o Romantismo renovou o interesse na Idade Média, vista como uma era heroica. E o interesse ficou. Vive no gótico, no heavy metal, na fantasia medieval e, claro, em filmes do Rei Arthur.

Texto de Tiago Cordeiro publicado em "Aventuras na História", edição 169, junho de 2017, Brasil, excertos pp. 38-43. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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