ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA HISTÓRIA SOCIAL DO SUICÍDIO


A intenção deste capítulo é fazer uma trajetória histórica do suicídio principalmente na sociedade ocidental para demonstrar a mudança histórico-cultural do significado desse fenômeno, já que a proposta desta dissertação é estudar o suicídio enquanto fenômeno psicossocial, mediado por significados que se transformam nos diferentes contextos históricos.

Faz-se necessário, para uma melhor compreensão da proposta que se desenvolverá, a distinção entre o suicídio e o ato de se matar, a qual é desenvolvida por diversos autores, porém, é em Fairbairn (1999) que se encontra essa noção da forma mais coerente com a proposta desse trabalho. Para o autor o suicídio

"O suicídio é um ato, tanto de cometimento como de omissão realizado pela própria pessoa ou por terceiros, por meio do qual um indivíduo autonomamente pretende e deseja concretizar a própria morte, porque quer ser morto ou quer morrer uma morte que ele mesmo concretiza". (FAIRBAIRN, 1999 p. 117)

Enquanto o ato de se matar envolve o fato de o indivíduo morrer devido a um ato cometido por ele mesmo, porém, sem ter a clara intenção de morrer. Ou seja, nem sempre que um sujeito morre pela suas próprias mãos, quer dizer que ele esteja se suicidando.

Antes de começar a desenvolver o capítulo, cabe ressaltar três aspectos a serem observados na construção histórica do suicídio, um é a estrita relação que possui o significado do suicídio, com os significados atribuídos à vida e à morte em cada momento histórico, sendo que esses significados estão relacionados com a concepção de homem e mundo vigentes em tais sociedades desde a religião à política.

Outro dos aspectos é a relação entre o desenvolvimento material (tecnológico) da sociedade e o suicídio. Quando a espécie humana deixa de estabelecer uma relação imediata com a Natureza, passando a transformá-la e criar instrumentos que lhe possibilite criar novos instrumentos para o trabalho; passa-se a desenvolver técnicas mais avançadas de tirar a própria vida intencionalmente, com maior eficácia e menor sofrimento.

Essa questão nos leva a duas outras fundamentais que são, o acesso dos indivíduos tanto à produção material, quanto à produção intelectual historicamente acumuladas pela humanidade, que lhes possibilitará ter acesso a esses meios mais eficazes e que causam menos sofrimento e ao conhecimento de como utilizá-los. Para A. N. Leontiev (1978), os seres humanos necessitam apropriar-se de um mínimo de resultados da atividade social para viver e os componentes sociais que farão parte desse mínimo necessário são decorrentes da experiência concreta de vida do sujeito. Isso também fica claro nas palavras do filósofo soviético E. V. Ilyenkov (1977)

"A existência deste puramente social legado de formas de atividade vital, ou seja, um legado de formas que não são transmitidas por meio dos genes, por meio da morfologia do corpo orgânico, mas sim apenas através da educação, apenas através da apropriação da cultura disponível, apenas por meio de um processo no curso do qual o corpo orgânico individual transforma-se em um representante do gênero humano (isto é, o conjunto inteiro de pessoas conectadas pelos laços das relações sociais) – é somente a existência dessa específica relação que produz a consciência e a vontade com formas especificamente humanas de atividade mental". (ILYENKOV, 1977, p. 95 apud DUARTE, 2003, p.99)

Um terceiro aspecto está relacionado com a consciência que o sujeito possui de si e do outro. Segundo Minayo (1998, p. 423), o suicídio “[...]é um fenômeno universal, registrado desde a alta Antigüidade”. A autora também ressalta que segundo vários estudiosos,”[...] o ato de atentar contra a própria vida acontece pari passu à emergência da consciência, sendo portanto, um fenômeno que acompanha a própria história da humanidade”.

Também o psicólogo soviético, A. R. Luria (1979, p. 72), ao discutir a atividade consciente do homem e suas raízes sócio-históricas, traz um exemplo uma situação que nos remete a esse fato e ao fato de considerarmos o suicídio um ato exclusivamente humano, pois entre os animais “não há formas de comportamento ‘desinteressado’, que se baseiam em motivos não biológicos”. O exemplo apresentado pelo autor diz:

"Encontramos freqüentemente situações nas quais a atividade consciente do homem, além de não se sujeitar às influências e necessidades biológicas, ainda entra em conflito com elas e chega inclusive a reprimi-las. São amplamente conhecidos casos de heroísmo em que o homem, movido por elevados motivos de patriotismo, cobre com seu corpo bocas de fogo ou se lança à morte sob tanques; esses casos são apenas exemplos da independência do comportamento do homem em relação aos motivos biológicos (p.72)".

Para Luria (1979), a atividade consciente do homem difere do comportamento individualmente variável dos animais, isto porque tal atividade não está obrigatoriamente ligada a motivos biológicos; não se determina diretamente pelo meio ou por vestígios de experiências individuais imediatas e para além dos programas hereditários e dos resultados das experiências individuais, o homem também se apropria da experiência acumulada historicamente pela humanidade para desenvolver conscientemente suas atividades.

Essa discussão também se encontra no trabalho produzido conjuntamente por Luria e Vigotski (1996), onde se baseiam em Engels (1960)2 para dizer que a diferença entre os comportamentos humanos e animais não reside no fato de que aos animais carece a capacidade de planejar ações, já que atividades planejadas existem em qualquer lugar onde existam albuminas vivas, que realizem movimentos reativos frente a estímulos luminosos, porém, nem mesmo as ações planejadas dos animais não conseguiram imprimir à terra a marca de sua vontade. As transformações geradas na Natureza pelos animais se dão por sua simples existência em meio a essa, enquanto as transformações humanas implicam na dominação da Natureza pelo homem e isso se dá a partir do trabalho.

Sendo assim, para uma compreensão histórico-social do suicídio, devemos compreender tanto o indivíduo que o comete quanto o próprio fenômeno enquanto construções históricas e sociais. Segundo Vigotski (1987), estudar dialeticamente alguma coisa, significa estudá-la em seu processo histórico, na sua gênese e nas suas transformações.

Para traçar um breve histórico do fenômeno suicídio, o relato mais antigo encontrado data de 2.500 a.C., onde há registros de suicídios como ato concreto na cidade de Ur, na Mesopotâmia, quando doze pessoas ingeriram uma bebida envenenada e se deitaram para aguardar a morte3.


Na antiguidade, sistemas religiosos de diversos povos ocidentais partilhavam um caráter comum; o fato de designarem uma morada repleta de delícias aos idosos suicidas. Para esses povos era extremamente penoso ter que suportar as limitações da velhice, além de que, o idoso não tinha o mesmo papel comunitário que desempenhava anteriormente. Também era comum a preconização da idéia de que uma morte violenta, preferivelmente em batalha, ou através do suicídio, garantiria um lugar especial no pós-morte. Essas culturas valorizavam a morte violenta como forma de manter ardente entre os membros da sociedade o espírito guerreiro. Baseados nesses fatos, Kalina e Kovadloff (1983, p. 30)4 indicam a existência nessas culturas de uma indução comunitária para a morte de si mesmo “[...] legitimamente estimulada e normativamente legitimada. A transgressão consiste em se deixar morrer , não em se dar a morte”, ou seja, o  suicídio nessas culturas se torna um dever, a indução comunitária ao suicídio era extremamente poderosa e desatendê-la significava colocar-se em uma posição marginalizada. (ALVAREZ, 1999).5

Para Kalina & Kovadlof (1983, p. 51), “Tanto nas sociedades chamadas bárbaras pelos gregos, como na egípcia e na hindu, a indução franca ao suicídio por parte da comunidade tinha um sentido cultural legítimo e benfeitor, já que preservava a identidade do grupo” (grifos no original).

Na Grécia Antiga, apesar de haver uma grande diversidade de opiniões acerca do suicídio, esse era um fenômeno comumente tolerado, desde que seguisse determinados critérios políticos e éticos, que variavam conforme o local e a época; houve um período em que os gregos tinham abominação por tal ato, já que o comparavam com a atitude extrema do assassinato de familiares, algo que os incomodava muito. Por conta disso, os cadáveres sofriam uma série de penalidades e a mão do sujeito era geralmente enterrada separada de seu corpo, como algo alheio ao indivíduo e que lhe causou mal. Posteriormente, os gregos começaram a ter pelo suicídio extrema tolerância, inclusive tendo algumas cidades (entre elas, Atenas, Marselha e Cea6 – onde se desenvolveu a cicuta) que mantinham uma reserva de veneno para aqueles que defendessem seus motivos perante o senado para obter permissão oficial para se suicidar. Isso pode ser percebido no discurso de Libânio, citado por Durkheim (apud ALVAREZ, 1999, p.73):

“Aquele que não desejar mais viver deverá declarar suas razões ao Senado e, após ter recebido permissão, poderá abandonar a vida. Se tua existência te é insuportável, morre; se o destino te oprime, bebe a cicuta. Se estás esmagado pela dor, abandona a vida. Que os infelizes narrem os seus infortúnios e que o magistrado lhes forneça o remédio para que sua aflição chegue ao fim.”

Pisithonata é um bom exemplo da tolerância grega ao suicídio. Ele se auto-intitulava “professor da morte” (aquele que aconselha a morte) e preconizava a seus pupilos a autoquiría.7 (TEIXEIRA, 1947)

Teixeira (1947) traz também a história de que se conta ter havido na Grécia Antiga um filósofo que propagava entre os jovens gregos a filosofia do suicídio; para tanto, teria fundado uma “escola do suicídio”, na qual se aceitava apenas jovens, que eram sugestionados e ensinados a tirarem a própria vida. Esse filósofo, ao ser indagado do porquê não cometia suicídio, teria respondido que “fazia o sacrifício de viver para ensinar a outros as delícias da morte”. (TEIXEIRA, 1947, p. 26)

Os filósofos clássicos, discutiam a questão do suicídio de forma racional e equilibrada, tendo como preceitos “´[...] a moderação e a nobreza de princípios”. Porém os pitagóricos, condenavam diversas formas de suicídio, principalmente quando essas feriam de alguma maneira suas crenças, seus valores éticos e políticos. Para esses, o suicídio era inadmissível, pois era uma ofensa aos deuses; os únicos que tinham direitos sobre a vida e a morte dos homens, esse pensamento é incorporado posteriormente pelos cristãos. (MINOIS, 1998, p. 61)8

Hegésias, um dos mestres cirenáicos, foi supostamente expulso de Alexandria por ali provocar diversos suicídios. Dentre os cínicos, se professava um profundo desapego à vida se essa não pudesse ser vivida de forma razoável. Para Antístenes, “[...] aqueles que não possuem uma inteligência suficiente fariam melhor se se enforcassem”; para Diógenes, seu discípulo, “[...] a morte, que se não sente quando ela existe, não é de recear. Portanto, não se deve hesitar em entregar-se a ela se se não puder viver de forma razoável”. (MINOIS, 1998, p. 61)

Alvarez (1999, p.71), indica que Platão, no Fédon, afirma a símile do soldado sentinela que não pode abandonar seu posto, assim como a símile do homem sendo propriedade dos deuses, que se zangam tanto com o suicídio humano, quanto os homens se zangam com o suicídio de seus escravos. Aristóteles9 , de maneira mais austera, afirma “[...] o suicídio era ‘uma ofensa contra o Estado porque, do ponto de vista religioso, poluía a cidade e, economicamente, enfraquecia o Estado ao destruir um cidadão útil. Era um ato, portanto, de irresponsabilidade social”.

Platão vai dizer que, se o homem não encontra na vida a moderação, o suicídio passa a ser uma opção, um ato racional e justificável. Consideravam-se razões suficientes para morrer as doenças dolorosas ou coibições intoleráveis. (ALVAREZ, 1999, p. 72).

Segundo Minois (1998), Platão possuía uma visão muito mais matizada que a de Aristóteles, para ele, apesar do suicídio ser condenável, e nas Leis declarar que o cadáver do suicida não merecia uma sepultura pública e devia ser enterrado em lugar isolado e de maneira anônima, em algumas instâncias esclarece que isso não seria aplicável. No caso daqueles que se matam por ordem da cidade, por serem portadores de doença grave, aguda e incurável ou pela “[...] sorte que o espera ser uma ignomia inviável e sem saída”; a esses, lhes seria permitido acabar com a própria vida".


Para Cícero, por exemplo, o suicídio é uma atitude intermediária entre o bem e o mal, estando seu valor sujeito aos motivos do ato, se depusermos do suicídio de Catão para ilustrar, este “é o modelo da liberdade integral, porque matando-se quando a sua vida não estava ameaçada, ele colocou-se acima do destino.”, porém, a partir de sua interpretação do platonismo, condena outros suicidas. Para mostrar isso, cita as obras platônicas “Fédon” e “República”; no “Fédon” no qual entende que Platão “proíbe que alguém se mate enquanto os deuses não impuserem essa necessidade” e a “República” no qual “não temos o direito de fugir ao papel que os deuses destinaram. (MINOIS, 1998, p. 66-67)

Era comum entre os historiadores gregos essa atitude de condenar alguns suicídios e glorificar outros, outro exemplo é Virgílio, que distribuía os suicidas por “patriotismo, coragem e afirmação da própria liberdade” para os Campos Elíseos e os por desgosto da vida ao inferno. (MINOIS, 1998)

Durante o período da prisão de Sócrates, Platão pediu que seus discípulos, Críton e Fédon lhe fossem recitar palavras de conforto. Também os preparou para argumentar na assembléia dos discípulos de Sócrates, pois estava doente e não o poderia fazer pessoalmente. A relevância disso é que, em suas obras “Apologia de Sócrates”, “Fédon” e “Críton”, Platão manipula o discurso de seu mestre para dar relevância às suas próprias idéias (MOURA, 1967).

Segundo Moura10 (1967), a Apologia de Sócrates, de fato foi escrita por Antístenes “o cão”, esse sim, o grande discípulo de Sócrates e aquele que acompanhou o filósofo em todos seus últimos dias. Antístenes faz diversas denúncias referentes à produção platônica, inclusive ao fato de ter elaborado a versão da Apologia a partir dos discursos de terceiros, já que Platão não se encontrava presente no momento da defesa pública de Sócrates. Antístenes, ao criticar Platão também ressalta que “[...] ninguém o iguala em beleza, em doçura, em talento, sonoridade, quando é sincero, quando é simples, justo, e quando faz calar a sua personalidade” ( ANTÍSTENES apud MOURA, 1967, p. 123).

O suicídio de Sócrates é uma grande discussão, pelo fato do filósofo ter sido julgado e condenado a se envenenar, ou seja, apesar dele próprio ter cometido o ato contra si, questiona-se volição desse ato, porém, essa análise pode ser feita a partir de outros dados. Alguns de seus discípulos articularam com o carcereiro sua fuga, mas ele se recusou, pois fugindo, sacrificaria todas as suas idéias, tudo aquilo pelo que viveu.

Como escreveu Lima (1967)11:
"Sócrates não morreu por um regime político, mas por um princípio mais alto do que todos os regimes – o da dignidade humana. O que ele não tolerava era a opressão do pensamento, fosse da Multidão, fosse do Estado, fosse em nome dos Deuses, fosse em nome da onipotência da Razão, da Violência ou do Número."

Acerca da possibilidade de fuga de Sócrates, Platão escreve em sua obra “Fédon” as palavras do Filósofo a seu discípulo Ésquines12:

"Minha fuga seria a morte da minha palavra, a morte do meu pensamento. Conservando a vida, eu me tornaria indigno. Minha palavra, espalhada e amada, pode fazer algum bem. Não me peças que eu mate a minha palavra. Outros juízes poderão se precaver contra a injustiça e outros inocentes poderão ser poupados. Seria covardia e crueldade não procurar salvá-los" (PLATÃO apud MOURA, 1967, p. 127-28).

Além disso, Sócrates tinha consciência de que, com sua morte, suas palavras teriam um alcance muito maior. O sábio foi julgado por uma denúncia feita por Meleto, Licon e Anito, nessa, era acusado de criar novos Deuses e cultuar deuses que não eram os deuses oficiais da Polis. Também o acusavam de subverter o pensamento dos jovens e corromper a mocidade.

Em seu discurso de defesa perante o povo ateniense e os 501 juízes que o julgaram, Sócrates desbanca as duas acusações, deixa claro que algum dia, seriam acusados de terem matado o homem mais sábio da Grécia e expressa sua própria concepção acerca de sua morte, que acredito ser esclarecedora e valiosa, por conta disso, transcreverei na seqüência algumas partes que melhor ilustram suas idéias.

"Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males [...]" 

Sócrates também indica que em momento algum de todo o processo, o deus se manifestou contra qualquer coisa que estivesse ocorrendo e indica a suposta causa:

"[...] em verdade este meu caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um mal" (PLATÃO, 1967 p. 97)13.

Justifica sua posição com o seguinte discurso:

"Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente que naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo, mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume em uma única noite" (PLATÃO, 1967, p. 98-101)14.

Se ao contrário, a morte for concebida como uma passagem deste lugar para outro , o Filósofo afirma:

"[...] se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam de serem juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diriam que fazem justiça acolá[...] seria então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso?"

Conclui suas reflexões dizendo:

"Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim, especialmente, a conversação acolá seria maravilhosa quando eu encontrasse Palamedes e Ájax Telamônio e qualquer um dos antigos mortos por injusto julgamento."

Com certeza aqueles de lá mandam a morte por isso, porque, além do mais, são mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se é que o que dizem é verdade (PLATÃO, 1967, p. 98-101)15.

Sócrates termina sua defesa pedindo para que quando crescerem seus filhos, que os tratem como ele tratou os atenienses, que os questionem e os critiquem, que os eduquem e que não lhes permitam pensar ser aquilo que não são, que dessa forma, estarão sendo justos com seus filhos e com ele próprio e completa: “Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para Deus.” (PLATÃO, 1967, p. 102)16.

Sócrates, ao ser obrigado a se envenenar com a cicuta, a sorve com tanto entusiasmo que passa a ser um modelo às gerações vindouras; apesar de repudiar o suicídio, traz em seu discurso referências que fazem com que a morte se torne algo desejável, dela que é “[...]a porta de entrada para o mundo das presenças ideais, do qual a realidade terrena é apenas uma sombra” (ALVAREZ, 1999, p.72).

Muitos autores, como Lima (1967), comparam o suicídio de Sócrates com a morte de Cristo, por muitos também considerada suicídio: “[...] Sócrates foi uma prefiguração de Cristo. Sua morte, como a de Cristo, foi um protesto contra todas as tiranias”. 17

De qualquer forma, as posições apresentadas não são definitivas e outros autores questionam a morte de Sócrates ter sido suicídio.

Aproximadamente um século depois do auto-envenenamento de Sócrates, o estoicismo considerou o suicídio a “[...] mais razoável e desejável de todas as saídas”, como eles, os epicuristas18 também se diziam indiferentes à vida, tanto quanto à morte, a estes, o que importava era o quão prazerosa era uma situação; tudo que reproduzia prazer era positivo, aquilo que impingisse dor era negativo. Aos estóicos o importante era viver de acordo com a natureza e caso isso se tornasse inviável, o suicídio seria uma solução plausível, os escritos estóicos gregos são repletos de exortações ao suicídio.

Para Heller (2002, p. 362), tanto aos estoicos, quanto aos epicuristas, a liberdade possuía como condição fundamental a libertação dos afetos particulares, mas, ao contrário do que era para seus antecessores (uma condição para fazer parte do Estado, para governar livre das paixões), para esses dois grupos a liberdade servia para faze-los independentes “do mundo circundante e de suas mudanças”. Por conta disso, a importância dada ao comportamento conscientemente indiferente frente à morte. O que não quer dizer que essa liberdade não esteja intimamente atrelada à política, já que, “[...] conquistar uma atitude indiferente frente à morte era de primeira importância para o homem livre, não a causa da inevitabilidade da morte natural, mas para melhor ter a possibilidade de se opor ao tirano e para extirpar o temor da vingança dos tiranos”.

Pode-se perceber, como observa Alvarez (1999, p. 73), que houve algumas mudanças na compreensão do suicídio entre os estóicos gregos e os estóicos romanos. O estoicismo grego, segundo o autor, desenvolveu e racionalizou o suicídio como um ideal de vida de acordo com a Natureza. Já o estoicismo romano, o qual também teve Platão como ponto de partida, argumentava que: “Quando a compulsão interna se tornava intolerável, a questão que se apresentava não era mais se a pessoa devia ou não se matar, mas sim como ela poderia fazê-lo com dignidade, bravura e estilo” .

Aos romanos o suicídio também não trazia medo ou repulsa, era “[...] uma validação cuidadosamente considerada e escolhida do modo como haviam vivido e dos princípios pelos quais haviam vivido”. Segundo o Código Justiniano, qualquer cidadão podia se matar sem qualquer consequência de punição a seu cadáver ou a seus familiares, desde que esse suicídio se justificasse com um motivo, dor ou doença, fastio da vida, loucura ou desonra; só não se aceitava que o indivíduo se matasse irracionalmente, sem deixar explícita sua causa, portanto, os romanos não puniam o auto-assassinado como um crime, mas como uma irracionalidade. Porém, isso era válido apenas para os cidadãos (ALVAREZ, 1999, p. 75-6).

Todo e qualquer cidadão podia dispor de sua vida sem penalidades nas condições apontadas pelo Código Justiniano, porém, por óbvios interesses econômicos e políticos, escravos e soldados não eram entendidos como cidadãos, os primeiros eram propriedade particular e responsabilidade do vendedor, os segundos, propriedade do Estado e sua morte por suas próprias mãos não era justificável, seu suicídio era equivalente a uma deserção e caso fracassasse, estava sujeito a penalidades.

Alvarez (1999, p. 76) esclarece acerca da situação do suicídio dos escravos, que os mesmos tinham uma espécie de garantia atrelada à sua comercialização, pois: “Caso se matasse, ou tentasse se matar, até seis meses depois de ter sido comprado, o escravo podia ser devolvido – vivo ou morto – ao seu antigo senhor, e a transação era declarada inválida”.

Na Lei das Doze Tábuas, nada consta acerca da proibição da morte voluntária, e se legitima que os funerais dos suicidas ocorram normalmente, no entanto, por razões obscuras o enforcamento é considerado particularmente maléfico; essa conotação perdura até a época moderna (MINOIS, 1998).

Também se penalizavam os cidadãos considerados criminosos que tentavam fugir da punição do confisco de seus bens através do suicídio; nesse caso, como aponta Alvarez (1999, p. 76):

"Os parentes, no entanto, tinham permissão para defender o acusado como se ele estivesse vivo; se ele fosse considerado inocente, os parentes ficavam com a herança; se não, os bens do morto ficavam com o Estado. Em suma, na lei romana o suicídio era um crime estritamente econômico. Não era uma ofensa nem contra a moral nem contra a religião, mas apenas contra os investimentos de capital da classe proprietária de escravos ou do tesouro do Estado".

Nas palavras de Alvarez (1999, p. 76), os cristãos se apropriaram da serenidade estoica e das posturas romanas em relação ao suicídio e à morte, mas subverteram-nas. Para todos os cidadãos romanos, não era a morte em si que importava, mas como essa se dava, em qual contexto, de que forma. Devia-se morrer com dignidade, de forma racional e no momento adequado, isso era a “medida do valor derradeiro da vida de cada um”. Para os cristãos, o suicídio passou a ser uma forma de martírio, “Da mesma forma que o batismo purgava o pecado original, o martírio apagava todas as transgressões posteriores”. A igreja cada vez mais incutia a ideia de que a vida, esse mundo, eram um vale de lágrimas, um “lugar” do qual os cristãos desejavam ansiosamente se ver livres e somente a morte podia trazer-lhes a liberdade e levar-lhes a um lugar melhor, dar-lhes a glória eterna.

Além disso, a igreja oferecia outro incentivo, a glória póstuma, onde os padres celebravam anualmente no calendário da igreja as mortes cristãs, que eram oficialmente registradas e os mortos tinham suas relíquias adoradas. Além de lhes proporcionar a redenção, ainda lhes garantia a adoração e o exemplo entre os vivos (ALVAREZ, 1999, p. 78-9).

Com o declínio do estoicismo romano, no século II d.C., a partir da dinastia dos Antoninos passa a haver uma maior rigidez em relação ao suicídio na legislação romana. Nessa época há um grande desenvolvimento do direito e das idéias filosóficas, porém, a condenação do suicídio se torna cada vez mais comum em diversas esferas.

Nesse período no Império Romano havia uma grande diversidade de influências. Para os neoplatônicos bem como para os cultos orientais o suicídio era condenável, já para os órficos e as religiões de mistério que se popularizaram na época, a alma é aprisionada no corpo por decisão divina e apenas pela por esta decisão, pode do corpo sair.

Nos primórdios da consolidação da Igreja Católica, a vida era considerada intolerável em quaisquer circunstâncias e somente a redenção possibilitaria a liberdade e a glória eterna da alma. “Por que, então, viver sem redenção quando a felicidade celestial estava a apenas uma punhalada de distância?” (ALVAREZ, 1999 p. 78-9).

Em seu início, até mesmo a morte de Cristo foi considerada por Tertuliano – um padre considerado o mais feroz entre seus pares – uma forma de suicídio.

O assassinato de si mesmo só passa a ser considerado crime19 pela Igreja Católica a partir do século VI d.C. quando a instituição estabelece leis que proíbem e condenam o suicídio. É Santo Agostinho quem desenvolve os argumentos para a criação de tal lei, buscando uma solução contra a suicidomania que assolava os primeiros cristãos e que até esse tempo, ainda tinha forte apelo entre os seus fiéis, e o fez baseado no sexto mandamento; o “não matarás”, que passa a abranger o assassinato de si mesmo; a dificuldade de se encontrar argumentos para isso estava no fato do livro sagrado não conter qualquer desaprovação a esse ato. 20

“Essas expressões refletem também a dificuldade sentida pela Igreja para racionalizar sua condenação ao suicídio, já que nem o Antigo nem o Novo Testamento o proíbem diretamente. O Antigo Testamento registra quatro suicidas – Sansão, Saul, Abimelec e Aquitofel –, nenhum deles recebe comentários desfavoráveis” (ALVAREZ, 1999 p. 64).

O médico cubano Sérgio Pérez Barrero (2002), faz uma análise das sagradas escrituras e encontra um número de suicídios consideravelmente maior que o indicado por Alvarez(1999). Segundo Barrero (2002), o primeiro suicídio bíblico foi o de Abimelec (Juizes 9:54), que o autor indica como um caso de suicídio assistido relatado na história, já que Abimelec, para que não dissessem que havia sido morto por uma mulher, pede a seu escudeiro que lhe mate com sua espada.

O segundo caso relatado é o de Sansão (Juizes 16:30), que para se vingar daqueles que lhe fizeram perder a força e lhe tiraram os olhos, derruba as colunas da casa, matando a si, aos que o prejudicaram e a uma série de inocentes. Saul (Samuel 1:31-5), é o terceiro suicida relatado na Bíblia. Este também pede a seu escudeiro que lhe assassine, mas como este não o faz, Saul se atira sobre sua espada. Ao ver que seu chefe havia morrido, também tira a própria vida, tornando-se o quarto caso das sagradas escrituras.

Aquitofel (Samuel 2:17-23), o quinto suicida bíblico, era um conselheiro, que se acreditava proferir palavras divinas, ao ter um de seus conselhos desprezado, chegando em sua casa, arrumou suas coisas e se enforcou. O sexto é o suicídio de Zimri (Reis 1:16-18), um rei cruel que ateou fogo em seu palácio e morreu carbonizado para impedir que fosse capturado.

Eleazar (Macabeus 1:6, 1:46), o sétimo suicídio apresentado nas escrituras sagradas, morreu esmagado como Sansão, mas como indica Barrero (2002), ao contrário do ato de vingança cometido por Sansão, Eleazar se sacrifica para salvar seu povo. Com o intuito de matar o líder dos conquistadores, que vinha montado em um elefante, jogou-se embaixo do animal e o atingiu no abdômen, o animal, ao morrer, esmagou o sacerdote hebreu com seu peso.

A oitava é a morte de Ptolomeu Makron (Macabeus 2:10-13), que se envenenou por não conseguir cumprir adequadamente com suas funções de governante. Razis (Macabeus 2:14, 2:42-46), também conhecido, por sua bondade, como “pai dos judeus”, era um dos anciãos de Jerusalém. Seu suicídio é dos mais violentos dentre os descritos na história; ao se ver encurralado, atacou-se com sua própria espada no ventre, mas não morreu, subiu em um monte com seus soldados e se jogou sobre os soldados adversários, mas ainda assim não morreu e apesar de todas as feridas, correu por entre todo o exército, jogando-lhes suas vísceras. O suicídio de Razis fecha as aparições desse fenômeno no antigo testamento, porém, ainda nesse livro, há a descrição das idéias suicidas de Sara (Tobias, 3:10), que pensou em se enforcar, porém, para não entristecer a velhice de seu pai, acaba desistindo.

No novo testamento, o único relato se refere ao suicídio de Judas Iscariote (Mateus 27:5), que, apesar de sempre ser dito que se enforcou, Barrero (2000) indica que na verdade, ele se arremessou. Outro dado importante, apresentado por Dauzat (2000) é que o grande pecado de Judas, não foi ter traído Cristo, mas sim ter tirado a própria vida, porém, ou autor diz isso já baseado nas discussões de Santo Agostinho e não nos próprios juízos Bíblicos.

A partir da proposta de Santo Agostinho, considerou-se que se um indivíduo tirasse a própria vida com o intento de expiar seus pecados, ele estaria usurpando a função que cabia ao Estado e à Igreja; se morresse inocente com o intuito de escapar ao pecado, estaria sujando suas mãos com seu próprio sangue inocente, o que tornava o suicídio um pecado pior do que qualquer outro, já que morto não teria como se arrepender (ALVAREZ, 1999 p. 80-1).

Essa lei é aprovada em 533 d.C. pelo Concílio de Órleans21, que proíbe que se preste honras fúnebres ao suicidado, porém, essa decisão se restringia àquele que se matasse quando estivesse sob a acusação de ter cometido um crime.

Em 562 22 d.C. é a vez do Concílio de Praga proibir a prestação de honras aos cadáveres de suicidas, passando a lei a abranger todo e qualquer suicida, independentemente da posição social, motivo ou método. Por fim, em 693 d.C. o Concílio de Toledo alcança até mesmo aqueles que não foram bem 21 Segundo Kalina & Kovadloff, em 452, o “Concílio de Arlés declarou que o suicídio constituía um crime e que só podia ser efeito de um furor diabólico”. Os autores também indicam que nessa perspectiva, cabe ao suicida certo grau de inocência, devido à suposta possessão. sucedidos em sua tentativa, definindo que esses devem ser excomungados (ALVAREZ, 1999, p. 81).

É Santo Tomás de Aquino quem encerra a questão com a seguinte Suma: “O suicídio é um pecado mortal contra Deus, que nos deu a vida; é também um pecado contra a justiça e contra a caridade” (ALVAREZ, 1999, p. 81).

Alvarez (1999) comenta que tanto Agostinho quanto Tomás de Aquino baseiam-se na tese de Platão para defender seus argumentos no que tange ao pecado contra Deus, e na tese de Aristóteles, naquilo que se refere ao pecado contra a justiça (o filósofo grego falava em responsabilidade com a comunidade). No que se refere ao pecado contra a caridade,

"[...]o que Tomás de Aquino tem em mente é a caridade instintiva que todo homem tem para consigo mesmo – ou seja, instinto de autopreservação que o homem compartilha com os animais inferiores; ir contra isso configura um pecado mortal porque é ir contra a natureza (p. 82)."

Essa postura da igreja católica, favorece a institucionalização do repúdio ao suicídio. Um fenômeno que foi tolerado na Grécia, admirado em Roma e se tornou a redenção dos primeiros cristãos, termina nessa condição, torna-se objeto de extrema repulsa moral.

Tal significado acerca do suicídio espalha-se por toda Europa, os corpos dos suicidas são publicamente humilhados, sua memória é praguejada, seus familiares perseguidos e aquilo que “[...]começou como delicadeza moral e esclarecimento, acabou se transformando nas atrocidades legalizadas e consagradas” (ALVAREZ, 1999 p.65).

"Tais atrocidades, mesmo sendo estranhas à cultura judeu-helênica, conseguem prevalecer porque “sua força advinha de superstições, preconceitos e medos primitivos que haviam sobrevivido a despeito do cristianismo, do judaísmo e do helenismo” (ALVAREZ, 1999 p. 65).

Podemos perceber isso também no texto de Veneu23 (1994, p. 15), quando discute as práticas medievais relacionadas ao suicídio e o papel da igreja nesse contexto:

"A atitude medieval perante a morte voluntária tem na igreja seu principal agente formulador, embora na sua condenação desse tipo de morte os prelados caminhassem junto com as crenças e reações folclóricas e, juntamente com os juízes seculares, muitas vezes lhes emprestassem o latim e as razões para expressarem os mesmos sentimentos de repulsa e justificarem práticas rituais de aspectos reminiscentemente pagãos".

É possível ainda complementarmos essa compreensão das atrocidades cometidas contra os corpos dos suicidas com os comentários de Minois (1998, p. 75) acerca desse fenômeno quando diz que:

"Este fenômeno cultural deve muito à desconfiança dos pensadores cristãos medievais em relação ao paganismo antigo. A herança greco-romana, que em parte fora perdida, esquecida ou deformada, fornece sempre alguns modelos científicos e filosóficos, mas retira-lhe todo o valor de referência moral. A Idade Média adopta Aristóteles e Ptolomeu quando eles falam de astronomia, mas a partir da revelação cristológica não aceita senão uma autoridade moral – a das Escrituras –, desenvolvida pela Tradição(...). Por isso, parece acreditar-se mais na ciência da antiguidade, mas não na sua moral, que releva dos escolásticos e do direito canônico".

"Outro fato interessante do período medieval em relação ao suicídio, como ressalta Minois (1998, p. 19) é que, ao contrário da Antiguidade pagã, poucos são os suicídios entre pessoas ilustres. Há também uma diversidade nos motivos entre as categorias sociais e os objetivos que almejavam conquistar com o ato, por exemplo, “[...] o camponês e o artesão enforcavam-se para escapar à miséria e ao sofrimento; o cavaleiro e o clérigo deixavam-se morrer para escapar à humilhação e frustrar o infiel com seu triunfo”.

Clarifica-se também que a forma de lidar com os cadáveres de cada suicida estava ligado ao motivo e ao meio utilizado para concretizar o ato, mas acima de tudo, à posição social que ocupava o auto-homicida.

Os suicídios considerados como fuga, suicídios vulgares, eram severamente punidos, enquanto os considerados nobres, aqueles que ressaltavam a “honra cavalheiresca e a fé inabalável até o martírio”, esses eram admirados. (MINOIS, 1998, p. 19).

Minois (1998, p. 19) nos elucida que “a sociedade medieval, dirigida por uma casta militar e sacerdotal, mostra-se assim de acordo consigo mesma e ergue como norma moral o ideal cavalheiresco e a busca do sacrifício cristão”. Os reflexos disso podem ser encontrados na literatura da época. O autor também indica não ter encontrado qualquer menção de processo contra algum cadáver nobre que tenha se matado nessa época, principalmente pelo fato desses terem à sua disposição formas de escamotear as mortes voluntárias (acidentes de caça, torneios), enquanto os outros dispõem principalmente das cordas, das quedas e dos afogamentos.

Segundo Alvarez (1999) a envergadura da punição ao ato suicida é diretamente proporcional ao medo que se tem deste em determinado momento histórico.

Para Minois (1998) a relação com o suicido nessa época parte de uma visão matizada, ou seja, apesar da rigidez da teoria, da religião e do direito em relação ao ato, a sua aplicação se fixava mais nos motivos do ato, na personalidade do suicida e em sua origem social.

Um momento de transformação no trato com o suicídio se dá por volta do século XII, quando se passa a valorizar uma nova forma de privacidade “pessoal e não mais coletiva, realizando-se em várias dimensões da existência, ao lado da persistência dos antigos valores”. Passa-se a reconhecer no indivíduo singular, no interior de cada um, um valor pessoal, precioso, mas freqüentemente mantido em segredo, como na confissão ou no amor cortês (VENEU, 1994, p. 19).

Conforme o “Eu” ia sendo valorizado, as atitudes coletivas perante a morte transformavam-se:

"Uma série de indícios dão conta da mudança nessa atitude, a partir do século XII e estendendo-se pelos seguintes. Um dos primeiros é o ressurgimento da individualização das sepulturas e dos monumentos funerários, distinguindo do anonimato dos pobres a memória dos mortos ilustres, santos ou grandes deste mundo. Inscrições funerárias e efígies dos defuntos multiplicam-se não só nos túmulos monumentais e capelas de família como também, de forma mais modesta, em placas afixadas às paredes das igrejas com os dizeres: ‘aqui jaz...’(VENEU, 1994, p. 22)".

Na transição entre Idade Média e Modernidade, com a transformação da forma de se compreender o homem e o mundo, há uma nova mudança na forma de se compreender e lidar com o suicídio, como expõe Alvarez (1999, p.159):

"O que diferenciou, portanto, a atitude da renascença da atitude da Idade Média para com o suicídio não foi um súbito acesso de esclarecimento na prática, mas uma nova ênfase sobre o individualismo que fazia com que os grandes problemas morais da vida, da morte e da responsabilidade parecessem mais fluidos e complexos do que antes, e muito mais abertos a questionamentos."

Minois (1998, p. 79-80) ressalta que “[...] alguns homens do Renascimento tiveram a impressão muito nítida de um aumento do número de suicídios na sua época”, segundo o autor, “alguns historiadores do século XIX deixaram-se impressionar por estas declarações, mesmo raras e bastante vagas, e contribuíram assim para alicerçar a ideia de algumas tendências suicidarias próprias do Renascimento”.

Inclusive, pelo fato de a Inglaterra, ao contrário da maioria dos outros países, ter dados estatísticos acerca dos suicídios no país causou uma falsa impressão de que lá havia muito mais ocorrências do ato, o que “contribuiu para a difusão do mito do ‘mal inglês’” (KURCGANT; WANG, 2004, p. 41).

No fim do século XVI e início do século XVII, a preocupação dos europeus com o suicídio se manifesta na expressão de Hamlet; “ser, ou não ser – eis a questão”. Entre os quarenta anos que vão de 1580 a 1620, o teatro inglês expressa mais de duzentos suicídios em suas peças. Minois completa interpretando que este fato revela um “fenômeno social” que promove no público uma atração feita de curiosidade e inquietude. Para o autor, os espectadores desse período “revelam-se partidários da morte voluntária”, indicando a confirmação desse fato pela diversidade e quantidade de produções que “[...]abordam pela primeira vez o suicídio como tema central de reflexão, colocando em causa as interdições tradicionais a fim de estudar as motivações e o valor desse ato à luz da razão e dos antigos exemplos” (MINOIS, 1998, p. 113).

Por exemplo, já no século XVII, mais especificamente 1608, John Donne escreve a primeira obra Inglesa de defesa ao suicídio24, onde expõe que: “[...] em todos os tempos, em todos os lugares, sob todas as circunstâncias, homens de todas as condições desejaram-no e sentiram-se inclinados a praticá-lo.” (DONNE apud ALVAREZ, 1999, p. 161-2). Donne, não chega a publicar seu texto. Depois de entrar para a vida eclesiástica, se envergonha e critica sua produção, este veio a ser publicado após sua morte em 1647.

Porém, Donne não estava disposto a arcar com o peso da responsabilidade de suicídios provocados por sua obra, pois uma coisa é ressaltar a admiração por suicidas históricos como Brutus e Catão, outra é um ato que deva ser sancionado. Ele declara não fazer qualquer apologia ao suicídio e tampouco pretende indicar em quais circunstâncias concretas o suicídio seria permissível. Nas palavras do próprio Donne:

"Abstive-me de forma voluntária em estender esse discurso a certos exemplos e regras particulares, ao mesmo tempo que não me atrevo a ser mestre numa ciência tão especial, mas porque os limites são obscuros, abruptos, deslizantes e estreitos, e aí o erro é mortal (DONNE apud MINOIS, 1998, p. 121)".

Além disso, Donne se atreveu a propor uma reflexão dentro da própria teologia cristã, usando sempre argumentos religiosos e racionais, atacando-a frontalmente, como expõe Minois:

"Consideramos como uma evidência que o suicídio é o pior dos pecados; mas, se examinarmos bem os argumentos que sustentam tal ‘evidência’ podemos verificar que o suicídio pode não ser de todo um pecado. De qualquer modo, não temos o direito de julgar que este ou aquele homem deve ser condenado porque se matou, quando muitas ações que hoje condenamos estavam autorizadas na Bíblia (MINOIS, 1998, p. 122)".


Seu livro é dividido em três partes que questionam respectivamente a relação do suicídio com as leis da Natureza, as leis da razão e as leis divinas. Em relação às leis da Natureza, ele indica a necessidade de condenar qualquer mortificação, já que “[...] todas as práticas visam ‘iludir’ a nossa natureza”. Para ele, a natureza humana é racional, é o que nos distingue dos animais, sendo assim, é a partir da razão que devemos selecionar o que é bom e mau em nossas vidas e muitas vezes, matar-se pode ser muito mais razoável que viver. Além disso, considerando-se o fato de existirem suicídios entre homens de diversos lugares e épocas, tal ato não é “[...]tão contrário à inclinação natural como se quer fazer crer” (MINOIS, 1998, p. 122).

Quanto às leis da razão, considerando-se o já exposto, de que é esta que rege as leis humanas e levando em conta que certas leis, particularmente as romanas, não condenavam o suicídio, tampouco o direito canônico o fazia, apesar de teólogos como São Tomás condenarem o suicídio por esse prejudicar o Estado e a sociedade sacando-lhe indivíduos úteis; “[...] não se poderá dizer o mesmo de um general que vira monge ou de um emigrado”? Também nesse aspecto as mortificações excessivas “podem ser um verdadeiro suicídio disfarçado” ao qual não se condena. “Nós podemos, pois, renunciar à vida por um bem superior” (MINOIS, 1998, p. 122).

Referente às leis divinas, Donne não vacila em demonstrar que em lugar algum da Bíblia, o suicídio é condenado; que o que há é o “Tu não matarás”. Sendo assim, não seriam pecado “os milhares de homicídios na guerra e nas execuções capitais”? Não seria suicídio o martírio voluntário, ou a morte de Cristo, não o seria por excelência? Rebate também a argumentação de Santo Agostinho de que Sansão teria recebido apelo divino (MINOIS, 1998, p. 122).

Apesar do raciocínio “fraco, pesado e fastidioso”, sua obra possui certo peso histórico e todavia “uma força indesmentível”. Donne (MINOIS, 1998, p. 122)

Também o padre Robert Burton apresentou postura favorável ao suicídio, porém, “[...] rejeita a justificativa estóica do suicídio como um ato de refletida dignidade e auto-afirmação”, para ele, “[...] o suicídio não é um ato nem racional, nem digno, nem ponderado; as pessoas se matam porque suas vidas se tornaram intoleráveis” (ALVAREZ, 1999, p. 171). Nas palavras do próprio clérigo: “Esses homens infelizes nasceram para a desdita, estão além de toda esperança de recuperação, pois padecem de uma doença incurável; quanto mais tempo vivem, pior se sentem; e só a morte pode aliviá-los” (BURTON apud ALVAREZ, 1999, p. 161-2).

Segundo Alvarez (1999):

"O que é certo é que Donne e Burton, cada um ao seu modo, acrescentaram um novo elemento àquilo que antes era uma questão apriorística. Eles a trouxeram para a dimensão em que agora habitamos. Antes, o suicida era considerado sórdido, um condenado que devia ser rejeitado com o mais puro horror. Agora ele começava, pelo menos, a parecer humano: ‘É o caso dele; pode ser também o teu’25 (ALVAREZ, 1999, p. 173)" .

Após a Reforma Protestante, o julgamento dos casos de suicídio deixa de ser departamento canônico, todos os decretos referentes ao suicídio passam a ser pertencentes à lei civil. Com esse processo, as punições contra os corpos de suicidas bem como as punições aplicadas às suas famílias, passam a ser entendidos como gestos bárbaros e estúpidos. Apesar de os estatutos ainda preverem punições que profanassem os corpos dos suicidas e de seus bens serem confiscados em benefício da Coroa, "[...] os júris de inquéritos de morte suspeita se esquivavam deles com uma freqüência cada vez maior, passando um veredicto de ‘non compos mentis’” (ALVAREZ, 1999, p. 174 – grifo no original).

As leis de punição ao suicídio na França foram reforçadas por duas vezes no século XVIII e continuaram vigorando até 1770, mas o confisco dos bens e a difamação do nome do suicidado duram até a Revolução; no código penal que passa a vigorar, não há qualquer menção ao suicídio como crime.

Na Inglaterra, o último registro que se tem notícia, de degradação a um cadáver de suicidado é de 1823, mesmo assim, nos cinqüenta anos seguintes os cadáveres de suicidas pobres que não fossem reclamados eram usados para o estudo de anatomia; as leis que determinavam o confisco das propriedades do suicida perduraram até 1870 e até 1961, uma pessoa que fracassasse em sua tentativa, podia ir para a prisão.

A discussão que se inicia nesse período (séc. XIX) é se o suicidado tem pleno controle de suas faculdades mentais naquele momento, o suicido passa a ter uma conotação de traição de si mesmo (felo de se), caso se prove que o sujeito estava consciente daquilo que estava fazendo; nesse caso, ele era privado das honrarias fúnebres e seus herdeiros se viam privados da herança.

Como indica Veneu (1994, p. 16):

"[...] sobretudo, é sobre a tarefa básica que se propõem esses tribunais que deve concentrar-se nossa atenção: distinguir, na morte voluntária, a parte da loucura e a parte da razão. Loucura e razão, irresponsabilidade/responsabilidade, determinação/vontade, essa oposição será o fundo sobre o qual ocorrerá o debate sobre a morte voluntária e seus principais deslocamentos nos séculos seguintes"

Veneu (1994) atenta também para não cairmos no equívoco de fazer analogias entre as manifestações afetivas ou psicopatológicas modernas; ao contrário do costume contemporâneo de associar o suicídio a estados depressivos, na Idade Média, segundo amostra levantada e analisada por J.C. Schmitt, uma minoria dos casos de suicídio por loucura era relacionados a estados melancólicos, o mais comum era associarem-se a estados de furor ou frenesi.

Dentre as causas mais comuns atribuídas aos suicídios julgados como “de caso deliberado”, os especialistas da época apontavam para um radical comum; o desespero, ou desperatio26.

É nesse mesmo século que se emprega pela primeira vez o termo suicídio, pelo Abade Desfontaines, porém, Alvarez (1999, p. 64 – grifos no original) indica ter encontrado o termo em alguns dicionários:

"O Oxford English Dictionary data de 1651 a primeira utilização do termo; encontrei a palavra numa obra pouco anterior, a Religio Medici de Sir Thomas Browne, escrita em 1635 e publicada em 1642. Mas o termo ainda era raro o bastante para não aparecer na edição de 1755 do dicionário do dr. Jhonson. Em seu lugar, usavam-se expressões como self-murder (auto-assassinato), self-destruction (auto-destruição), self-killing, (autoassassinato), self-homicide (auto-homicidio), self-slaughter (automassacre) – todas elas refletindo associação feita entre suicídio e assassinato".

Também Veneu (1994) indica que o suicídio é o nome dado pela modernidade ao fenômeno da morte voluntária, “[...] neologismo que apareceu pela primeira vez, ainda em latim, na Inglaterra de 1630”, segundo ele, são os romances modernos e o ‘século das luzes’ que “[...] são responsáveis pela popularização do termo, bem como sua entrada definitiva nos dicionários”. Porém, essa mudança na forma de se referir ao fenômeno não se dá por acaso;

"[...] ela reflete a mudança no entendimento coletivo do gesto, da mesma forma que na atitude diante da morte em geral e na construção da subjetividade. A criação do termo ‘suicídio’ corresponde a uma reorganização do seu significado, que entretanto não se apresenta como inovação absoluta, mas filia-se a uma tradição longamente elaborada da morte voluntária (VENEU, 1994, p. 14)."

Sem dúvida o século XVIII é divisor de águas em diversos aspectos sociais, com o suicídio não foi diferente, como já foi indicado em parágrafo anterior; é nesse século que o termo suicídio se consolida e no pós Revolução Francesa que o fenômeno é significado de maneira mais próxima de como o entendemos atualmente, como apresenta Coelho (1997, p. 49):

"A partir da segunda metade do século XVIII, as punições em relação ao suicida e seus familiares começaram a ser suavizadas; não tanto pela compreensão em relação ao suicídio, mas devido ao fato de o indivíduo isolado perder a importância coletiva que tinha, tanto na antiguidade quanto na idade média".

O rompimento entre Igreja e Estado e a adoção por parte deste pelo liberalismo têm papel fundamental nesse processo, como salienta Coelho (1997, p. 50):

"Essa liberalização em relação aos suicidas foi uma das conseqüências da desvinculação entre a Igreja e o Estado. Este último com a ascendência da ideologia liberal, que preservava os assuntos privados, sentia-se cada dia mais intimidado para tomar resoluções contra o indivíduo, à medida que sua ação fosse um ato isolado que não afetasse os poderes do Estado. A Igreja, no entanto, continuou a condenar o suicida, abrandando, entretanto, a condenação em relação aos familiares".

Dois outros fenômenos importantes que ocorreram no século XVIII e que tem grande relevância em relação ao suicídio são o movimento Racionalista e o Movimento Romântico.

"O debate em torno do que havia de certo e de errado no ato continuava tão inflamado como sempre, mas agora os tradicionalistas devotos tinham adversários mais difíceis contra os quais esbravejar. Montesquieu, Voltaire e Hume, bem como figuras menores como Alberto Radicati, o conde de Passerano, analisaram o assunto racionalmente e com comedida indignação, e um maior esclarecimento humanitário começou a se fazer sentir em todas as camadas (ALVAREZ, 1999, p. 174)."

Quanto mais avançava o discurso Racionalista, mais seus opositores se manifestavam contra, qualificando o suicídio como um crime hediondo que devia ser punido das formas mais perversas possíveis e os corpos dos suicidas deviam ser publicamente maltratados. Isso ocorria porque para os Racionalistas o suicídio não passava de um ato banal e achavam um "absurdo" que tanta importância fosse dada a isso, a algo que Hume sintetizou em sua célebre frase: "A vida de um homem,tem tanta importância para o universo quanto a vida de uma ostra" (HUME, 1977, p. 123).

A posição de Hume não era publicamente compartilhada por todos os seus contemporâneos, porém, amiúde, o suicídio já havia mudado de status nas esferas cotidianas, deixou de ser tabu para se tornar costume.

Uma passagem célebre desse momento histórico é a lenda de que um francês convidado por um amigo para jantar, responde-lhe: "Com o maior prazer. Se bem que, agora que parei para pensar, lembrei que tenho um compromisso inadiável de me dar um tiro. Não se pode escapar de um compromisso desse". Era de bom tom que a tal tipo de comentário, as pessoas manifestassem indiferença, chegando a bocejar como resposta, até mesmo aquele que se mataria devia mostrar-se insensível. (ALVAREZ, 1999, p. 185)

Tal reação ao suicido aniquila as possibilidades de tratá-lo de forma criativa na literatura; fazendo com que deixe de ser tema fecundo à poesia. É a frase supracitada de Hume (1977) que define toda a postura frente ao suicídio daquele momento histórico. Como iindica Alvarez (1999, p. 188).:

"[...] a admirável, nova e, de certa forma, corajosa tolerância que a época tinha para com o suicídio como um ato ao qual todos tinham direito era contra-balançada por uma repugnância inata pelo drama e por um hábito do gosto, se não da mente, que fazia todo cavalheiro devidamente provido de estilo e inteligência reagir ao desespero com impaciência."

Entre os Românticos, a interpretação era muito distinta, nesse movimento, a melancolia leva o nome 'spleen', que tinha como característica "[...] uma tristeza mais circunscrita e controlada que encontrava a sua válvula de escape não no desespero, mas no rancor e na mordacidade da grande idade da sátira". Esse 'clima' que envolvia o Romantismo foi responsável pela transformação da tradicional combinação "gênios melancólicos" para uma mais apropriada ao movimento, que era "gênios suicidas", a morte prematura era muito comum entre os românticos, fosse pelo estilo de vida e o 'mal do século' ou pelo auto assassinato.

A sensibilidade extremada decorrente dessa linha de pensamento não encontrava na vida um espaço suficientemente adequado para sua manifestação, como indica Alvarez (1999, p. 203-4):

"Era um dogma romântico a ideia de que a vida intensa e verdadeira dos sentimentos não sobrevivia e não podia sobreviver à meia-idade. Balzac delineou as alternativas em La Peau de chagrin (A pele de onagro): ‘Matar as emoções e viver até a velhice, ou aceitar o martírio de nossas paixões e morrer jovem, essa é a nossa sina’."

Os Românticos trazem como um de seus ícones o poeta Thomas Chatterton, que foi um dos suicidas mais famosos da esfera literária. O suicídio desse autor não é uma grande manifestação do sentimentalismo excessivo dos românticos, está muito mais enraizado no fato dele não conseguir sobreviver de sua produção.

Chatterton pode ter sido símbolo para muitos românticos (principalmente os Ingleses), porém, vai ser o jovem personagem Werther, de Göethe, a figura emblemática do suicídio para a população da época, "[...] não era mais um personagem de um romance, mas um modelo de vida que firmou todo um estilo de hipersensibilidade e desespero” (ALVAREZ, 1999, p.208).

Tais movimentos contribuíram para a transformação na forma de se compreender o suicídio, como transparece na citação de Alvarez (1999, p. 288) a seguir:

"Os racionalistas das gerações anteriores tinham inocentado o ato do suicídio, tinham ajudado a mudar as leis e a abrandar os tabus religiosos primitivos, mas foi Werther quem fez o ato parecer realmente desejável para os jovens românticos de toda a Europa. Chatterton fez basicamente o mesmo para os poetas ingleses, seu considerável renome devia-se não ao seu trabalho, mas à sua morte".

Fala-se no surgimento de uma moda de suicídio a lá Werther, porém, creio ser mais prudente atentarmos para os acontecimentos da época, para as situações sócio-culturais, históricas e econômicas, do que cair numa análise superficial de um modismo. Cabe perguntar: "o que a leitura dos 'sofrimentos do jovem Werther' despertava naquelas pessoas?" (principalmente nos jovens).

Em diversos momentos do século XX surgem discussões acerca do direito do indivíduo tirar a própria vida; em 1901, Paris, uma pequena brochura de quatro páginas é publicada como suplemento do quinto número da revista La Critique; o texto, intitulado Technique du Suicide, foi produzido por Paul Robin, 64 anos “e um passado nem um pouco banal”.27 O velho anarquista suicidou-se indubitavelmente em primeiro de setembro de 1912 (GUILLON; LE BONNIEC, 1984, p. 131).

Foram publicados em inúmeros periódicos artigos, enquetes, cartas e ensaios defendendo ou repugnando o suicídio como um direito. Em 1925, por exemplo, a revista “La Révolution Surréaliste” publicou uma enquête feita com diversos adeptos do “movimento artístico”, que respondiam à pergunta “Seria o suicídio uma solução?”.

A referência mais antiga de associação pró-suicídio e eutanásia encontrada foi da “EXIT – The society for the right to die with dignity”, fundada em 1930 em Londres. A idéia dessas associações era dividir com seus membros técnicas eficazes de tirar a própria vida.

Guillon & Le Bonniec (1984) descrevem em seu livro “Suicídio - Modo de usar” a construção de algumas dessas sociedades e algumas das propostas nelas envolvidas. Um dos fatos importantes ressaltados por eles é o fato dessas associações possuírem diferentes posturas frente ao ato suicida, à produção e divulgação de material e às formas de associação dos membros.

Foi a partir da década de 1970 que houve um grande número de associações desse tipo criadas em diversos países. Seus criadores defendiam, em sua maioria, o direito do cidadão comum a ter acesso aos conhecimentos necessários para tirar suas vidas sem dor ou sofrimento, de forma eficaz e com o menor risco de, caso fracassassem, sofrerem o menor número possível de danos físicos. Para tanto, rogavam aos médicos e profissionais da saúde, que dividissem seus conhecimentos com a população. Certamente, disso surgem diversos questionamentos éticos, que vão criando as distinções entre as associações, desde aquelas que defendiam a elaboração de manuais que ensinassem as pessoas a se matar ‘com segurança’ e a divulgação indiscriminada desse material, a qualquer um que demonstrasse interesse (independendo inclusive a idade), até aquelas que se dispunham a fazer uma análise psicológica dos interessados.

O próprio livro de Guillon & Le Bonniec, ambos militantes da “morte doce”, contem um manual, que se divide em meios eficazes, pouco eficazes e “jamais tente isso, pois será fracasso certo seguido de dor e sofrimento”. Os autores socializam verdadeiras receitas de como se matar, pensando inclusive em detalhes como o local, datas de validade dos remédios e afins; tudo para evitar o fracasso dos atos.

Com o advento da internet, pode-se encontrar diversos sites dessas associações pró-suicídio e eutanásia, algumas inclusive tendo caráter misto em relação ao apoio e à prevenção.

De qualquer maneira, no código penal brasileiro, criado em 1940 e vigente desde 1942, consta sobre o suicídio o Art. 122 – Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio – “Induzir ou instigar alguém ao suicídio ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena – reclusão de 2 a 6 anos caso o suicídio venha a se consumar, de 1 a 3 anos, caso resulte em lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único. A pena é duplicada: 
I  – se o crime é praticado por motivo egoístico; 
II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência” (JESUS, 2004, p. 357).

Essa determinação parte da idéia de que punir as tentativas de suicídio apenas contribuiria para que estas fossem melhor elaboradas, evitando que houvessem falhas e garantindo que os indivíduos alcançassem seu objetivo, além de que, o indivíduo estando desgostoso com sua vida a ponto de tentar dispô-la, torna-lo criminoso apenas aumentaria seus desgostos e seria um aliado para uma próxima tentativa.

Desde sua fundação, em 1950, a Organização Mundial de Saúde acompanha os dados relativos ao suicídio em todo o mundo, nesse ano de sua criação apenas 21 países relataram as mortes por suicídio. Em 1998, a OMS passou a desenvolver um trabalho de avaliação crítica da situação mundial do suicídio, a partir dos dados de oficiais de 105 países, que foram agrupados por sexo e idade em intervalos de cinco anos. (WANG et al., 2004, p.97)28

No Brasil até 1975, todas as informações referentes aos óbitos em geral, entre eles o suicídio, era de responsabilidade do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mas desde essa data, o manejo desses dados tornaram-se tarefa do Ministério da Saúde, através do SIM/MS (Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde), que é baseado em um “[...] modelo padronizado de atestado de óbito, preenchido por médico ou perito-legista e lavrado em cartório de registro civil” (WANG et al., 2004 p. 101).

Apenas em 1980 o Brasil passa a fornecer informações acerca da mortalidade por suicídio no país sendo que as últimas constam do ano 2000. Dentro desse espaço de 20 anos, as taxas de suicídio do país foram consideravelmente baixas em relação a muitos outros países. (WANG et al., 2004, p.98)

“Em números absolutos de mortes por suicídio, Brasil ocupa a nona posição no ranking mundial. Entretanto, quando se consideram as taxas de suicídio (número de casos de suicídio/100.000 habitantes), o Brasil foi posicionado em 71º lugar na classificação mundial” (WANG et al., 2004, p.98).

Os países com as maiores taxas de suicídio encontram-se particularmente no Leste Europeu, principalmente entre aqueles que “[...] compartilham passado histórico similar e características sócio-econômicas semelhantes: Estônia, Letônia e Lituânia”, também a Rússia, Hungria e Finlândia. Dentre os países dos outros continentes, as taxas mais altas estão entre “[...]os países insulares, tais como: Cuba, Japão e Ilhas Maurício”. Já as taxas mais baixas “encontram-se em países circumediterrâneos e de tradição islâmica, bem como em algumas repúblicas da Ásia Central”29 (WANG et al., 2004, p.98).

Em 1999, a OMS iniciou uma campanha mundial para a prevenção ao suicídio, entre as propostas da Organização está um estudo multicêntrico de intervenção sobre comportamentos suicidas, também designado como SUPREMISS (Suicide Prevention – Multisite Intervention Study on Suicidal Behaviours).

Tal estudo “está se realizando em 13 países e engloba a avaliação de estratégias de tratamento para o suicídio, um inquérito populacional relativo à ideação, ao comportamento suicida e a uma descrição de índices socioculturais da comunidade pesquisada” (BOTEGA et al., 2004, p. 178).

As justificativas para o surgimento desse programa são: o crescimento de 60% nas taxas de mortalidade por suicídio nos últimos 45 anos, tantos nos países desenvolvidos, quanto nos em desenvolvimento, sendo que nesse período os maiores coeficientes de suicídio que se encontravam entre os idosos mudaram para as faixas etárias mais jovens, entre 35 e 45 anos e em alguns países, até mesmo entre 15 e 25 anos, sendo que dentre esses, o suicídio é uma das cinco maiores causas de morte em ambos os sexos e o fato de algumas formas de intervenção dentre as propostas pelo programa serem bastante eficazes na redução e prevenção dos suicídios e de poderem ser aliadas a abordagens terapêuticas na atenção primária (BOTEGA, N. J. et al., 2004). O SUPRE/MISS possui os seguintes objetivos: possibilitar a ampliação da conscientização acerca dos problemas derivados do comportamento suicida; identificar variáveis válidas e fidedignas da determinação dos fatores de risco para o comportamento suicida fatal e não fatal, enfatizando principalmente os fatores sociais; descrever os padrões comportamentais do suicídio, identificar as que tentaram o suicídio; identificar os tratamentos capazes de diminuir as tentativas de suicídio; melhorar a eficácia dos serviços de saúde através de intervenções específicas que reduzam a quantidade de tentativas de suicídio (BOTEGA et al., 2004, p. 178)

No Brasil, na UNICAMP são desenvolvidos dois subprojetos do SUPRE/MISS, um em que todos os casos de tentativa de suicídio que chegam no hospital da universidade são avaliados através de um instrumento padronizado e os indivíduos são convidados a participar do estudo.

Objetiva-se atingir um total de 600 sujeitos que são aleatoriamente divididos em duas modalidades de tratamento:

"1) Tratamento usual, de acordo com normas usadas localmente (no caso do centro brasileiro – UNICAMP –, os pacientes são encaminhados para os ambulatórios do hospital ou para outros serviços da rede pública: postos de saúde, CAPS, internação); 
 2) Intervenção Breve. Esta última inclui: sessão de uma hora de informação e provisão de uma brochura, tão próxima da alta do pronto-socorro quanto possível, é uma série de telefonemas ou visitas domiciliares (1, 2, 4, 7, 11 semanas e 4, 6, 12, 18 meses após a tentativa de suicídio) (BOTEGA et al., 2004, p. 178)."

O segundo projeto desenvolvido pela UNICAMP é um inquérito populacional em que 500 pessoas residentes na área atendida pelo pronto-socorro do subprojeto foram selecionadas aleatoriamente e entrevistados através de um questionário específico. Tal inquérito visa identificar a ideação e o comportamento suicidas nos indivíduos que, por vários motivos, não buscam um pronto-socorro por conta desses problemas, o que chamam de “a parte submersa do iceberg” (BOTEGA et al., 2004, p. 179).

No município de São Paulo (onde o suicídio foi a quarta maior causa morte entre indivíduos entre 10 e 24 anos no ano 2001) a Secretaria da Saúde do adotou um modelo de atuação baseado nos programas do SUPRE/MISS; “um programa de seguimento, com busca ativa de pessoas que tentaram o suicídio”. Junto a essa política assistencial, acoplou-se um protocolo de pesquisa que visa levantar o perfil dos tentadores de suicídio do município. Na fase piloto do projeto participaram as sub-prefeituras da Sé e do Jabaquara. Esse projeto possui financiamento da FAPESP e colaboração da UNICAMP no treinamento de profissionais da rede de saúde (BOTEGA et al., 2004, p. 180).

No ano 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS)30 veiculou 8 manuais para prevenção do suicídio, voltados para profissionais da saúde em atenção primária, profissionais da mídia, médicos clínicos gerais, professores e outros profissionais da equipe escolar, profissionais que trabalham nos presídios, além de um manual para a formação de grupos de sobreviventes, e dois livretos de auxílio, um para “conselheiros” e outro sobre relações de trabalho.

Esses livretos, escritos em inglês, foram traduzidos para 11 línguas (francês, chinês, russo, árabe, espanhol, estoniano, lituano, flamengo, polonês,sérvio e português), porém, não em sua totalidade; no Brasil, por exemplo, foram traduzidos apenas 4 desses manuais. A OMS incentiva a tradução, publicação e disseminação desses manuais nos diversos países do globo como estratégia de prevenção.31 Tais manuais e outros materiais publicados pela OMS podem ser encontrados no página da internet da Organização Mundial de Saúde, no seguinte endereço: www.who.int/mental_health/resources/suicide/en/.

Cabe uma breve apresentação do conteúdo desses manuais que foram traduzidos para o português, o que permite ter uma noção das estratégias propostas pela OMS no sentido de prevenir as tentativas de suicídio.

O manual para profissionais da saúde em atenção primária se inicia com um dimensionamento do problema, indicando alguns dados acerca da morte por suicídio em termos globais, indicando também a multi-determinação do fenômeno e valorizando a possibilidade de prevenção de grande parte das tentativas.

O manual indica que o “suicídio é agora uma grande questão de Saúde Pública em todos os países. Capacitar a equipe de atenção primária à saúde para identificar, abordar, manejar e encaminhar um suicida na comunidade é um passo importante na prevenção do suicídio” (OMS, 2000a, p. 04).

Sendo assim, o enfoque na equipe de atenção primária à saúde se dá pelo grande contato que esses profissionais possuem com os habitantes das comunidades e por sua aceitação junto a elas, o que acaba estabelecendo um elo entre os moradores e o sistema de saúde. No caso de países em desenvolvimento, pela precariedade nos serviços de saúde mental, o profissional da atenção primária acaba sendo o primeiro recurso de atenção à saúde. “Em resumo, os profissionais de saúde da atenção primária são disponíveis, acessíveis, detentores de conhecimento e comprometidos com a promoção de saúde” (OMS, 2000a, p. 05).

O livreto apresenta algumas relações entre transtornos mentais, já que os estudos de diversos pesquisadores indicam que a maioria dos indivíduos que se suicidou era diagnosticável por algum transtorno mental e também por indicarem que tanto os suicídios quanto os comportamentos suicidas são mais freqüentes em pacientes psiquiátricos. Dessa forma, estabelece uma relação entre o suicídio e a depressão (em suas diversas formas), os transtornos de personalidade como o anti-social e o borderline quando possuem traços de impulsividade; a agressividade e alterações de humor freqüentes; o alcoolismo ou abuso de substância alcoólica; a esquizofrenia e os transtornos mentais orgânicos.

Também doenças físicas como câncer e HIV/AIDS e doenças de condições crônicas como diabetes, esclerose múltipla, doenças renais, hepáticas, gastrointestinais, nos ossos, articulações, cerebrovasculares, neuro-vasculares e sexuais são muitas vezes fatores contribuintes para o aumento das tentativas de suicídio, principalmente quando estão associadas a fortes e constantes dores. As deficiências físicas também são indicadas como fatores que contribuem para as tentativas de suicídio (OMS, 2000a, p. 10).

Os fatores sócio-demográficos apresentados estão relacionados ao gênero (apesar dos homens conseguirem se suicidar com mais freqüência, o número de tentativas é maior entre as mulheres); à idade (as maiores taxas se encontram entre 15 e 35 anos e entre aqueles com mais de 75 anos); ao estado civil (entre as pessoas casadas possuem menos incidência de suicídios, também as pessoas que moram acompanhadas); à profissão (médicos, veterinários, farmacêuticos, químicos e agricultores são taxas acima da média); ao desemprego (a perda de emprego está mais associada ao suicídio que o desemprego) e à migração (aqueles que migram de áreas rurais para urbanas, bem como de regiões e países são mais freqüentemente suscetíveis aos comportamentos suicidas).

Entre os fatores ambientais estão os fatores estressores da vida como problemas interpessoais, rejeições, problemas financeiros e empregatícios, bruscas mudanças sociais e fatores como a vergonha e o medo de ser culpado por algo; a facilidade de acesso a métodos e instrumentos que possibilitem tirar a própria vida e a exposição ao suicídio na vida real ou através dos meios de comunicação, sendo que esse último caso ocorre mais comumente entre adolescentes (OMS, 2000a, p. 11).

Três características são apresentadas como as mais comumente associadas ao estado mental do suicida: a ambivalência, a impulsividade e a rigidez.

Na seqüência, o manual oferece, de forma bastante simples e didática (até mesmo superficial e pragmática) diversas formas de identificar, abordar e lidar com os sujeitos em risco de suicídio, maneiras de encaminhamento do sujeito e quais os recursos comunitários a serem utilizados e como fazê-lo.

O manual dedicado aos profissionais da mídia indica a importância desse veículo na formação não só da opinião das pessoas, como de suas atitudes e o quanto uma notícia mal veiculada pode ter conseqüências indesejadas. Por conta disso, o manual se propõe a destacar qual “o impacto que a cobertura midiática pode ter nos suicídios, indicar fontes de informação confiáveis, sugerir como abordar suicídios tanto em circunstâncias gerais quanto especificas e apontar as armadilhas a serem evitadas nas coberturas de suicídios” (OMS, 2000b, p. 02).

Como exemplo da influência dos meios de comunicação de massa no cometimento de suicídio, o manual apresenta o ‘efeito Werther’, que é como se tornou conhecido na literatura técnica o alto índice de suicídios associados à leitura do livro de J. W. Goethe (1774) , ‘Os sofrimentos do jovem Werther’ por conta do fenômeno chamado de imitação, que “é o processo pelo qual um suicida exerce um efeito modelador em suicídios subsequentes”. Outros dois conceitos técnicos são apresentados, sendo o primeiro denominado agrupamento (cluster), que se refere “ao número de suicídios que ocorrem em estreita proximidade temporal e/ou geográfica, com ou sem qualquer ligação direta”. O segundo é chamado de contágio, que é o processo pelo qual um determinado suicídio facilita a ocorrência de outros suicídios, a despeito do conhecimento direto ou indireto do suicídio prévio (OMS, 2000b, p. 03).

O livreto atribui o aumento das taxas de suicídio na atualidade aos manuais de suicídio publicados pelas associações pró-suicídio e eutanásia, citando especificamente o livro de Derek Humphry “Solução Final – Praticabilidade da Auto-eliminação (Final Exit)”, e o livro “Suicídio: Modo de usar”, de Claude Guillon e Yves Le Bonniec.

Citando Philips e cols32 a OMS ressalta que “o grau de publicidade dado a uma historia de suicídio correlaciona-se diretamente com o número de suicídios subseqüentes. Casos de suicídio envolvendo celebridades têm tido impacto particularmente forte” (OMS, 2000b, p. 04).

Apesar da influência do teatro e da música terem sido pouco estudadas até o momento, a influência da televisão e dos meios impressos é bastante grande, “histórias altamente veiculadas, que aparecem em múltiplosprogramas e em múltiplos canais, parecem ser as de maior impacto – maior ainda se elas envolvem celebridades”. Já entre os programas de ficção, há uma diversidade de resultados, sendo que “alguns não mostraram nenhum efeito, outros mostraram um aumento no comportamento suicida” (OMS, 2000b, p. 04).


Apesar de admitir o fato de que o suicídio costuma possuir apelo suficiente para ser noticiado e de que é um direito da mídia fazê-lo, tendo em vista os fatos citados, apela-se que o façam com extrema responsabilidade, pois se sabe que não é a cobertura jornalística em si que contribui para o aumento dos suicídios, mas a forma que é feita. Uma cobertura responsável pode contribuir para a prevenção e a desnaturalização do fenômeno. (OMS, 2000b, p. 05)

No sentido de contribuir para a produção de matérias responsáveis acerca do suicídio, o livreto traz a indicação de diversas fontes fidedignas de informação acerca do fenômeno para que possam ser pesquisadas pelos profissionais da mídia, apresentam algumas precauções a serem tomadas frente aos dados sobre o suicídio e as formas ideais de noticiá-las, além de sugerir que sempre se indique informações sobre serviços de ajuda e prevenção (OMS, 2000b, p. 06-09).

O manual para professores e educadores se inicia apresentando o suicídio como uma das cinco maiores causas de morte entre adolescentes na faixa etária dos 15 aos 19 anos e, apesar de ser incomum o suicídio entre crianças menores de 15 anos, esse índice tem aumentado em diversos lugares.

Os autores do manual justificam que como em grande parte dos países, meninos e meninas dessas idades costumam frequentar a escola, esse se torna um lugar fecundo para a prevenção do suicídio e indicam que “Quando possível, a melhor abordagem para a prevenção do suicídio na escola é a elaboração de um trabalho em grupo que inclui professores, médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais da própria escola, trabalhando em conjunto com agentes da comunidade” (OMS, 2000c, p.07).

Indicam que pensamentos suicidas esporádicos na adolescência fazem parte dessa fase, por conta das crises existenciais, mas que se tornam periclitantes quando passam a parecer a única saída para o sujeito. Estudos a partir da aplicação de questionários mostram que mais da metade dos estudantes de segundo grau já pensaram em se matar.

A identificação do suicídio entre adolescentes passa desapercebida muitas vezes, pois as mortes freqüentes por causas violentas como overdoses, acidentes de carro e afins, nem sempre possibilitam identificar a intencionalidade do ato.

Alguns fatores de proteção contra o comportamento suicida são indicados, como: padrões familiares (bons relacionamentos com familiares e apoio familiar); personalidade e estilo cognitivo (boas habilidades/relações sociais,confiança em si mesmo e em suas conquistas, capacidade de procurar ajuda em dificuldades, capacidade de buscar conselhos na tomada de decisões importantes, estar aberto aos conselhos de pessoas mais experientes e ao conhecimento em geral); fatores culturais e sócio-demográficos (bons relacionamentos com colegas de escola, professores e outros adultos, integração social em igrejas, grupos esportivos, clubes, etc. ).

Os fatores e situações de risco apresentados coincidem quase plenamente com aqueles apresentados em outros manuais, porém, enfatizando a questão da infância e da adolescência.

Dentre as formas de identificação de estudantes em risco de suicídio, o manual destaca: falta de interesse nas atividades habituais; declínio geral nas notas; diminuição no esforço/interesse; má conduta na sala de aula; faltas frequentes não explicadas; consumo excessivo de cigarros (tabaco), de bebidas alcoólicas ou de drogas (incluindo maconha);incidentes envolvendo a polícia; comportamento violento.

Caso qualquer desses fatores seja identificado por um professor ou algum funcionário da escola, deve-se alertar a coordenação da escola “e medidas devem ser tomadas para se obter uma avaliação abrangente do estudante, desde que ele indique sofrimento severo em que o resultado, em alguns casos, pode ser o comportamento suicida” (OMS, 2000c, p.17).

Alguns fatores como tentativas prévias, depressão e envolvimento em situações que sejam consideradas ‘de risco’, demandam mais atenção. Sobre o manejo com esses estudantes, o manual indica que algumas prevenções sejam tomadas, por exemplo: trabalhar questões referentes à saúde mental de professores e outros funcionários da escola, fortificar a auto-estima dos estudantes, enfatizar a importância da expressão emocional, prevenir os comportamentos desafiadores e violentos dentro e fora da escola. Enfatiza a importância da comunicação e da confiança que deve ser transmitida nos casos em que a ideação suicida é percebida, o que exige que professores e funcionários da escola sejam treinados e sensibilizados para tais situações, além da busca de auxílio especializado.

Materiais que possam ser utilizados para tirar a própria vida ou a vida alheia também nunca devem estar ao alcance das crianças e adolescentes dentro da escola e sempre que houver alguma tentativa ou concretização de um suicídio, as escolas

"[...] precisam ter um plano de emergência sobre como informar os funcionários, especialmente os professores, e também os colegas mais próximos e pais, quando a tentativa de suicídio ou o suicídio ocorre na escola, o objetivo é prevenir uma leva de suicídios. O efeito contagioso resultante de uma criança ou adolescente suicida é a tendência que eles têm em se identificar com soluções destrutivas adotadas por pessoas que tentaram ou cometeram suicídio (OMS, 2000c, p.17)".

O manual feito para médicos clínicos gerais se aproxima muito daquele produzido para os profissionais da atenção primária em saúde, exceto pelas especificidades da profissão e alguns acréscimos de conteúdo, um pouco menos superficiais (OMS, 2000d).

Retomando a discussão acerca do suicídio no Brasil, após essa breve apresentação dos conteúdos presentes nos manuais em português produzidos OMS, pode-se afirmar que nos países com altas taxas suicidógenas, é comum o hábito de se fazer os atestados de óbito com certa seriedade, porém, no Brasil, Wang et al. (2004, p.101) denunciam, tais informações “apresentam deficiências e limitações” e possuem diversos “fatores que afetam a sua precisão e qualidade”.

"No sistema brasileiro, os casos de suicídio são registrados na sessão de Causas Externas da Classificação Internacional de Doenças – décima edição (CID-10). As informações de mortalidade por causas externas registram eventos letais não decorrentes de doenças biológicas,monitorando, sobretudo, as mortes resultantes de violência, acidentes fatais e suicídio (WANG et al., 2004, p.101)".

A dificuldade apresentada por esse sistema advém da dificuldade ou até da impossibilidade de se identificar determinados suicídios e de distingui-los de outros eventos como acidentes de trânsito, overdoses, homicídios entre outros. Além disso, com freqüência “[...] os médicos legistas não esclarecem a causa básica da morte no atestado de óbito, especificam somente a natureza da lesão, dificultando a obtenção de dados conclusivos sobre a natureza da morte registrada” (LAURENTI; MELLO JORGE, 1987, MELLO JORGE; COLS., 1997 apud WANG et al., 2004, p. 101).

Em 2004, dos cento e noventa e quatro países participantes da OMS, cento e quinze têm “[...] condições de notificar os óbitos que ocorrem na maioria da população”, vinte conseguem notificar os óbitos que ocorrem nos hospitais e o restante, devido às limitações sócio-econômicas e tecnológicas, sequer consegue notificar óbitos com exceção daqueles causados por doenças de notificação internacional obrigatória e em casos de epidemias, para tanto, recebem apoio internacional no período determinado (WANG et al., 2004 p.101).

Wang et al. (2004 p.103-104) fazem uma análise descritiva dos dados epidemiológicos sobre suicídio levantados no Brasil entre 1980 e 2000; tais dados foram captados no banco de dados da OMS e SIM/MS33. Fazem também uma comparação das taxas nacionais com as de 105 países pertencentes à OMS. Apresentarei aqui apenas o aspecto mais geral referente às taxas suicidógenas do país, onde os autores indicam ter ocorrido um aumento de 21% na taxa de suicídio nesses 20 anos, passando de 3,3 a 4 mortes /100.000 habitantes34. Com essa proporção de suicídios por cem mil habitantes, o Brasil, como já foi dito, é considerado um país de baixa taxa de suicídio se comparado aos já citados países europeus que chegam alguns a estar acima de 40/100.000.

Porém, os autores ressaltam a importância de saber:

"[...]se houve um aumento real das taxas de suicídio no Brasil ou se nossos achados representam apenas um artefato metodológico, resultante da melhoria da colheita de dados em nível nacional. A tendência observada de sub-notificação dos óbitos em nosso meio também é comum em outros países latino-americanos, fruto das dificuldades metodológicas de registro obituário por suicídio, mas também do descaso das autoridades em relação a esse problema (WANG et al., 2004, p.104)".

Também na década de 50 surgem diversos centros de prevenção ao suicídio. Tais centros possuem em suas equipes técnicos e leigos, geralmente voluntários, que se dispõe por diversas razões a oferecer assistência aos indivíduos com intenções suicidas. Essa assistência é prestada geralmente via telefone, porém, excepcionalmente, centros se dispõem a atendimentos presenciais e a internet vem se tornando um outro veículo que possibilita a comunicação entre essas pessoas dispostas a colaborar e as que buscam esses serviços.

As primeiras instituições que se prestaram a tais serviços por meio do telefone foram o “Centro de Prevenção do Suicídio de Los Angeles” e o “Centro de Controle de Envenenamento” (Poison Control Center), existente em diversos locais dos Estados Unidos. Ambos, desde a década de 1950 possuem plantão de vinte e quatro horas (DIAS, 1991, p.64).

Para integrar e promover a troca de experiências entre as diversas instituições que prestam essa forma de serviço, foi criada a Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio, sediada em Viena. Essa entidade promove encontros e conferências bienais (DIAS, 1991, p.64).

No Brasil, em 1962 surgiu em São Paulo o Centro de Valorização da Vida (CVV), essa instituição é criada nos moldes e filiada à associação inglesa “Os Samaritanos”, criada em 1953 pelo pastor anglicano Chad Varah (DIAS, 1991, p.64).

Expedido pela Organização Mundial de Saúde, o documento intitulado “Saúde para todos no ano 2000” traz o suicídio como uma de suas preocupações, denotando assim esse fenômeno como um evidente problema de saúde pública. Ficou estabelecido pela OMS o dia 10 de setembro, como dia internacional da prevenção do suicídio.

O Ministério da Saúde do Brasil, através da Coordenação de Saúde Mental, vem buscando estratégias de prevenção e combate ao suicídio, culminando, no final do ano 2006 na criação da “Estratégia Nacional para Prevenção do Suicídio”.

A história social do suicídio continua sendo escrita a cada dia, não apenas por aqueles que atentam contra suas próprias vidas, obtendo ou não sucesso em suas tentativas, tampouco por aqueles que em sua intimidade, pensam nessa possibilidade, ainda que remota, nem pelos seus familiares, ou pelos pesquisadores que estudam esse fenômeno ou pelos profissionais que trabalham diretamente com as ‘vítimas’, mas por todos os homens, por todos que são atingidos ou fazem parte da construção de um ou muitos suicídios, ou seja, por cada um e por todos.

Notes

2 Essa é a data da Dialética da Natureza que consta na tradução brasileira do Livro de A. R. Luria e L. S. Vigotski, porém, a versão utilizada nesse trabalho é de 2000.
3 Enciclopédia Delta de História Geral. Rio de Janeiro : Delta, 1969, vol. 1, p.26. apud Silva, 1992 p. 09
4 Eduardo Kalina é psicanalista; Santiago Kovadloff, filósofo e ensaísta, ambos argentinos e ativistas ecológicos, a edição original em castelhano data de 1980.
5 Alfred Alvarez é ensaísta e crítico literário inglês; o “Deus Selvagem” foi escrito principalmente para contar a história do suicídio de Sylvia Plath, porém, desenvolve uma contextualização histórica sobre o tema que é referência na maioria dos estudos sobre esse fenômeno, principalmente no Brasil. Escreve também um epílogo contando sua própria experiência em uma tentativa de suicídio. A edição original em inglês data de 1971.
6 Sobre o suicídio em Cea, vale a leitura do texto de MONTAIGNE, M. E. “A propósito de um costume da ilha de Ceos”, in: MONTAIGNE, M. E. Ensaios. Tomo II, Brasília: UNB/Hucitec, 1987.
7 No Egito, existiu a Escola Sinapotumenos, que significa “matar juntos”. (SILVA, 1997, p. 10)
8 George Minois é historiador francês, o original em francês data de 1995.
9 Apesar de Aristóteles ser contrário ao suicídio, quando percebeu que teria a mesma sorte de Sócrates, fugiu de Atenas para “poupar aos atenienses um segundo atentado contra a filosofia”, condenado pelo conselho do Areópago, “adiantou-se matando-se por conta própria, ingerindo cicuta.”(TOLEDO, 1999 p. 48)
10 Tais restrições, segundo a autora, se baseiam no estudo da obra Les vèritables entrêtiens de Sócrates, de Han Ryner e na própria obra de Antístenes. Não foi possível acessar nenhuma dessas obras durante o processo de elaboração dessa dissertação.
11 Introdução, páginas não numeradas
12 Platão atribui esse diálogo à pessoa de Críton, por ser mais próximo a ele. (MOURA, 1967)
13 PLATÃO, Apologia de Sócrates, XXIX.
14 PLATÃO, Apologia de Sócrates, XXIX e XXX.
15 PLATÃO, Apologia de Sócrates, XXIX e XXX.
16 PLATÃO, Apologia de Sócrates, XXX.
17 Sobre esse tema, vale a leitura do livro “O suicídio de Cristo” de Pierre-Emmanuel Dauzat, que discute de maneira aprofundada essa questão.
18 O estoicismo é dependente da escola cínica; o epicurismo é um estoicismo também, mas, sem a agressividade ou o azedume da cínica.
19 “Cabiam-lhe então diversos tipos de sanções: religiosas, em primeiro lugar, com a privação dos ritos fúnebres e da sepultura em terreno consagrado, com todas as conseqüências que isso acarretava numa época em que o enterramento ‘junto aos santos’ era a garantia de ressurreição ao seu lado no dia do juízo. Além disso, conforme a região, a legislação secular também se interessava pelo caso: a autoridade, fosse ela senhor local ou rei, considerava-se lesada pelo desaparecimento de um de seus súditos, e a comunidade, poluída pela mancha do pecado cometido” (VENEU, 1994 p. 15)".
20 “O triunfo da oposição sistemática ao suicídio a partir de Santo Agostinho é mais como resultado do contexto histórico do que conseqüência de um princípio claro e fundamental da doutrina original” (MINOIS, 1998 p. 74).
22 Em Kalina & Kovadloff consta como 563 d.C. (p. 52)
23 Marcus Guedes Veneu é historiador, seu livro é a publicação de sua dissertação de mestrado defendida no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ em 1992.
24 Seu livro se chamava Biathanatos. (A declaration of that paradoxe, or thesis, that self-homicide is not so naturally sinne, that it may never be otherwise) – Biathanatos (Uma declaração daquele paradoxo, ou tese, Segundo o qual o auto-homicídio não é tão naturalmente um pecado que nunca possa vir a deixar de sê-lo)
25 “É o caso dele; pode ser também o teu. [...] Não devemos ser tão precipitados e rigorosos em nossas censuras, como alguns são: a misericórdia julgará melhor: que Deus tenha piedade de todos nós!” (BURTON apud ALVAREZ, 1999, p. 172)
26 “A desperatio é ‘um vício, a dúvida sobre a misericórdia divina, a convicção de não poder ser salvo’” (SCHMITT, 1976 p. 4-5 apud VENEU, 1994, p. 20).
27 Robin participou da Internacional em 1866, do congresso de Bruxelas em 1868, foi nomeado membro do conselho geral da Associação Internacional dos Trabalhadores por proposta de Marx e desenvolveu a teoria da “educação integral”; impedido de continuar suas pesquisas na educação, passa a publicar em 1896 o Régenération, um jornal de influência neomalthusiana. É nessa perspectiva que vai escrever o livreto.
28 As informações extraídas desse texto são creditadas à WHO – OMS (World Helth Organization – Organização Mundial de Saúde), porém, não são citações ipsis litteris que os autores fazem, por conta disso, opto por creditar os autores e citar a WHO apenas quando forem informações extraídas por mim do site da Organização ou quando forem citações literais dos autores.
29 Wang et al indicam que a tradição religiosa parece exercer influência nas taxas suicidógenas, já que entre os países onde a religião condena o suicido, a taxa é próxima a zero; 0,1/100.000, enquanto entre países católicos e budistas, por exemplo, essas taxas variam entre 1,2 e 17,9/100.000 habitantes. Em países “pouco oficialmente ateus”, como a Rússia e os países Bálticos, tais taxas variam entre 27 e 44/100.000 habitantes. (BERTOLOTE; FLEISHMAN, 2002 apud WANG et al 2004, p. 99).
30 World Health Organization (WHO)
31 Em português pode-se encontrar os manuais voltados para os profissionais da saúde em atenção primária, profissionais da mídia, professores e educadores e médicos clínicos gerais.
32 Philips DP, Lesnya K, Paight DJ. Suicide and media. In: Maris RW, Berman AL, Maltsberger JT,eds. Assessment and prediction of suicide. New Yor, Guilford, 1992: 499-519.
33 Os dados de 1996 e 2000 foram captados no banco de dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS).
34 Para a análise detalhada consultar WANG, Yuan P.; Mello-Santos, Carolina de. e Bertolote, José M. Epidemiologia do suicídio. In: MELEIRO, Alexandrina M. A. da S.; TENG, Chei Tung; WANG, Yuan Pang. (coords) Suicídio: estudos fundamentais. São Paulo: Segmento Farma, 2004.

Texto dr Nilson Berenchtein Netto na dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo "Suicídio: Uma Análise Psicossocial a Partir do Materialismo Histórico Dialético", Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social – PUC/SP, São Paulo SP, 2007, excertos pp.9-60. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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