A SAMURAI DOS DRINQUES

BARTENDER JAPONESA INCLUÍDA ENTRE OS ‘DEZ MAIS’ DO PLANETA É DELICADA, DESMISTIFICA A PROFISSÃO E DIZ QUE FAZER UM GIM TÔNICA É ‘COMPLICADÍSSIMO’.

Yukiyo Kurihara trabalhava como garçonete num hotel de Tóquio quando uma cliente que bebia sozinha pediu: “Quero um drinque que combine com meu vestido.” A mulher usava uma roupa vermelho-sangue, sexy. Yukiyo achou que seria impossível atender o pedido, mas a bebida chegou à mesa exatamente como a dona do vestido sonhara. Não foi apenas a cor perfeita, mas a apresentação, sensual, que encantou Yukiyo. E assim ela decidiu o que queria da vida. Virou bartender.

A japonesa escolheu seu caminho há 20 anos e hoje está entre os melhores profissionais do mundo. Ela brilha no topo da pirâmide etílica de uma cidade onde bebe-se muito e espera-se qualidade — esteja você num boteco no subsolo de uma estação de trem ou num restaurante estrelado do “Guia Michelin’’. Yukiyo comanda o Mandarin Bar, no 37º andar do Hotel Mandarin Oriental, um dos cinco estrelas mais exclusivos de Tóquio. Seu balcão não é lugar para quem aprecia performances rocambolescas, com fogo, fumaça e chacoalhadas à la Tom Cruise em “Cocktail” (clássico da década de 80). Malabarismo não é a praia da bartender magrinha e elegante, impecavelmente vestida e maquiada, tanto ao meio-dia quanto à meia-noite.

— Ela precisa de um espaço mínimo para fazer os drinques. Poderia trabalhar de quimono se quisesse — destaca uma das diretoras do hotel, citando um traje que, embora belo, limita os movimentos de qualquer mortal.

Apesar da delicadeza, destacar-se num universo onde o sexo masculino predomina — neste lado do mundo os homens são maioria esmagadora entre os bartenders — exige disposição de samurai. Num ranking divulgado por uma marca clássica de gim, a britânica Tanqueray, a japonesa apareceu entre os dez melhores do planeta. É a única mulher ao lado de nomes que dominam noites de endereços lendários, como o Heminghway Bar, no Ritz de Paris, e o The Bar, no Hotel Dorchester, em Londres.

— Não enfrentei preconceito por ser mulher — garante Yukiyo. — A maior dificuldade para uma mulher nesse ramo é carregar peso. Toda a equipe tem que fazer trabalho braçal, não tem jeito — diz ela, desglamourizando a aura de estrelato que envolve os grandes bartenders, disputados a preço de ouro no mercado do luxo.

Yukiyo carrega barras de gelo, mas é inegável que se diverte com a vida que escolheu. Fala com paixão sobre infusões e combinações milimétricas — coisas que um leigo não imagina que existam por trás do primeiro gole. O que parece básico — um gim tônica, por exemplo — a mestre japonesa considera complicadíssimo:

— São apenas duas bebidas, mas para chegar à perfeição é necessário acertar na qualidade dos produtos, na medida e na temperatura.

Segundo a bartender, não existe  para criar um bom coquetel.

— É inspiração e alquimia, cada detalhe muda tudo — diz ela, conhecida pelos funcionários como “the boss” (a chefe).

Um dos drinques mais pedidos do Mandarin Bar é o Nihonbashi, homenagem ao bairro onde fica o hotel. A premiada junção de vodca polonesa, licor de yuzu (cítrico fundamental na culinária japonesa), curaçau blue e suco de grapefruit foi definida por críticos como um “estudo conceitual de alta mixologia”. O turquesa simboliza o rio da região; o verde, os salgueiros da margem; e a casca de limão retorcida, a ponte que atravessa o bairro desde o século 17. O drinque cai bem tanto no longo inverno como no escorchante verão do Oriente. Na primavera, o bestseller é o martíni de flor de cerejeira.

No Japão, é comum deixar que o bartender escolha o drinque. Yukiyo acredita que adivinhar o que a pessoa deseja, com base numa conversa informal, não é segredo e sim obrigação.

Mas a moça tem lá os seus truques para servir uma dose memorável. Não costuma espremer, por exemplo, o limão no copo para fazer um martíni. Ela apenas toca levemente a base da taça com a fruta (“Como uma gotinha sutil de perfume atrás da orelha”, ensina). Também gosta de usar saquê espumante ou doce (com uma consistência leitosa) em muitas de suas criações e substitui o tradicional bourbon por um uísque japonês (Nikka), cada vez mais cultuado pelos adoradores do destilado. Além disso, não aceita angostura e xaropes — essenciais para a coquetelaria — industrializados. É ela quem prepara as infusões.

— Misturo entre 20 e 30 ingredientes — explica, mostrando as garrafinhas de cristal que lembram fórmulas de farmácias antigas.

À porta do hotel há filas de Ferraris e Lamborghinis, mas o clima do bar não é de bombação, nem de ostentação. É um lugar mais procurado por quem quer beber em paz, como mulheres sozinhas que estão em viagem de negócios ou que saem do trabalho sonhando com um tempo para elas. Sem inconvenientes, só com um pouco de álcool, a vista noturna da cidade e o prazer da independência. Algumas frequentam o bar por causa de Yukiyo e sua capacidade de ouvir.

— Já atendi muitas mulheres que estavam comemorando uma promoção, ou algum acontecimento importante na empresa, e queriam fazer isso de forma discreta — conta.

A barwoman se identifica com elas. O Japão ainda é um país atrasado em relação à presença feminina na força de trabalho. Mulheres em cargos altos são figuras raras.

Yukiyo, solteira e sem filhos, preferiu fugir à regra e investir na carreira. Dorme de madrugada e acorda cedo. E em dia de folga?

— Eu bebo. É quando avalio a concorrência — solta ela, desmentindo a crença de que as japonesas sempre escondem o sorriso largo.

Texto de Claudia Sarmento publicado na "Revista O Globo" de 1° de junho de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa

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