É POSSÍVEL VIVER SEM MISTÉRIO?
Na semana passada, foi publicado um artigo na revista americana “The New Yorker”, de autoria de Adam Gopnik, escritor e intelectual muito conceituado nos EUA.
O artigo trata da questão do ateísmo e sua aparente ascensão,ao menos na América e Europa, resenhando um par de livros sobre o assunto. Gopnik argumenta que a questão ou a dificuldade dela é a seguinte: “Quem semeou o solo é a pergunta fácil para o historiador; o que fez o solo receber as sementes é uma pergunta mais complexa”. Ou seja, listar os nomes dos ateus famosos e seus feitos é bem mais fácil do que compreender porque suas ideias são aceitas por tantas pessoas.
Gopnik identifica três períodos em que o ateísmo teve uma clara ascensão: no século 18, logo antes da Revolução Francesa; no século 20, logo antes da Revolução Russa; e agora. É óbvio que a expectativa é que a nossa época também tenha a sua revolução. Difícil imaginar que, no nosso caso, ela seja também de natureza política, como nas duas antecedentes. Mas então o quê?
Conforme escreveu Peter Watson em seu “A Era dos Ateus: Como buscamos viver desde a morte de Deus”, existem dois grupos — e não os tradicionais crentes e não crentes — : os supernaturalistas, que acreditam que uma explicação estritamente materialista da existência é inadequada para nossas experiências de natureza espiritual; e os autocriadores, que dão à mente humana o poder de explicar todos os aspectos da existência.
Gopnik aponta para uma convergência entre os supernaturalistas e os autocriadores, mesmo que clandestina. Descontando os que têm fé tradicional, acreditando piamente na Bíblia ou no Corão ou nos textos xintoístas (que são contados em bilhões no mundo), os supernaturalistas modernos acreditam em algo maior do que a matéria, mesmo que não seja caracterizado por uma divindade óbvia, uma celebração do mistério, da complexidade e de coisas que fogem à nossa compreensão ou mesmo a uma descrição puramente racional. Os supernaturalistas respondem à emoção indescritível da experiência humana.
Por outro lado,Gopnik argumenta que os autocriadores também experimentam algo como a fé.
Segundo Gopnik, todos têm algum tipo de vida espiritual, seja na adoção de rituais secretos, na ida à igreja no Natal ou na busca por algum tipo de transcendência por meio de atividades diversas, da meditação à corridas em trilhas, surfando ondas, escalando montanhas ou lendo poesia.
Me parece que o ponto de convergência não está nos detalhes da prática de cada um, mas na inevitabilidade do mistério que todos confrontamos. O próprio Richard Dawkins, o grande sacerdote do novo ateísmo, escreveu um livro com o título “A Mágica da Realidade”; sua autobiografia é “Um Apetite pelo Maravilhamento”. Outro ateu conhecido, Sam Harris, está escrevendo um livro sobre espiritualidade.
Como exploro em meu próximo livro, “A Ilha do Conhecimento” (Ed. Record, que será lançado em agosto de 2014), o que nos torna humanos é precisamente nossa atração pelo desconhecido, atração que tanto comove quanto inspira nossa criatividade, seja ela científica ou artística. Dela, ninguém escapa.
Texto de Marcelo Gleiser publicado na "Folha de S. Paulo" de 16 de fevereiro de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
O artigo trata da questão do ateísmo e sua aparente ascensão,ao menos na América e Europa, resenhando um par de livros sobre o assunto. Gopnik argumenta que a questão ou a dificuldade dela é a seguinte: “Quem semeou o solo é a pergunta fácil para o historiador; o que fez o solo receber as sementes é uma pergunta mais complexa”. Ou seja, listar os nomes dos ateus famosos e seus feitos é bem mais fácil do que compreender porque suas ideias são aceitas por tantas pessoas.
Gopnik identifica três períodos em que o ateísmo teve uma clara ascensão: no século 18, logo antes da Revolução Francesa; no século 20, logo antes da Revolução Russa; e agora. É óbvio que a expectativa é que a nossa época também tenha a sua revolução. Difícil imaginar que, no nosso caso, ela seja também de natureza política, como nas duas antecedentes. Mas então o quê?
Conforme escreveu Peter Watson em seu “A Era dos Ateus: Como buscamos viver desde a morte de Deus”, existem dois grupos — e não os tradicionais crentes e não crentes — : os supernaturalistas, que acreditam que uma explicação estritamente materialista da existência é inadequada para nossas experiências de natureza espiritual; e os autocriadores, que dão à mente humana o poder de explicar todos os aspectos da existência.
Gopnik aponta para uma convergência entre os supernaturalistas e os autocriadores, mesmo que clandestina. Descontando os que têm fé tradicional, acreditando piamente na Bíblia ou no Corão ou nos textos xintoístas (que são contados em bilhões no mundo), os supernaturalistas modernos acreditam em algo maior do que a matéria, mesmo que não seja caracterizado por uma divindade óbvia, uma celebração do mistério, da complexidade e de coisas que fogem à nossa compreensão ou mesmo a uma descrição puramente racional. Os supernaturalistas respondem à emoção indescritível da experiência humana.
Por outro lado,Gopnik argumenta que os autocriadores também experimentam algo como a fé.
Segundo Gopnik, todos têm algum tipo de vida espiritual, seja na adoção de rituais secretos, na ida à igreja no Natal ou na busca por algum tipo de transcendência por meio de atividades diversas, da meditação à corridas em trilhas, surfando ondas, escalando montanhas ou lendo poesia.
Me parece que o ponto de convergência não está nos detalhes da prática de cada um, mas na inevitabilidade do mistério que todos confrontamos. O próprio Richard Dawkins, o grande sacerdote do novo ateísmo, escreveu um livro com o título “A Mágica da Realidade”; sua autobiografia é “Um Apetite pelo Maravilhamento”. Outro ateu conhecido, Sam Harris, está escrevendo um livro sobre espiritualidade.
Como exploro em meu próximo livro, “A Ilha do Conhecimento” (Ed. Record, que será lançado em agosto de 2014), o que nos torna humanos é precisamente nossa atração pelo desconhecido, atração que tanto comove quanto inspira nossa criatividade, seja ela científica ou artística. Dela, ninguém escapa.
Texto de Marcelo Gleiser publicado na "Folha de S. Paulo" de 16 de fevereiro de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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