OS LUCROS DAS FARMACÊUTICAS


Em 2003, a prestigiosa organização filantrópica Médicos Sem Fronteira (MSF) denunciou à comissão que gerenciava o Tratado de Livre Comércio da América Central (Cafta) uma distorção no preço de remédios. A ONG dizia pagar entre 75% e 99% a menos que o governo da Guatemala pelas mesmas drogas medicinais.

Isso significava que a margem (diferença entre preço de venda e custos de produção no setor) estaria entre 300% e 10 mil%.

Os acusadores davam um exemplo concreto: o preço do ARV 4T (40 miligramas) do Bristol-Myers Squibb para um ano de tratamento na Guatemala era de US$ 5.271 por pessoa, enquanto a MSF pagava US$ 53 pelo correspondente genérico. (É bom deixar claro que esse preço reduzido nunca aconteceria com os pseudogenéricos brasileiros).

Embora a maior das consequências perniciosas dessa obscena margem seja o conjunto de perdas econômicas para governos e sociedade, há outros prejuízos mais sutis, mas não menos deletérios. É apenas natural que esse desmesurado ganho proporcione e exija formas de persuasão, para não dizer corrupção, para manter-se vivo e até mesmo para estender seu campo de atuação.

É preciso, inicialmente, reconhecer a peculiaridade do setor: quem usa o remédio não é quem escolhe e, muitas vezes, não é quem paga. Essa condição dilui responsabilidades e compromissos. O exemplo a seguir vai tornar clara a condição.

A Secretaria estadual da Saúde de São Paulo durante o governo Fleury (1991-1994) emitiu por três meses uma série de pedidos de aquisição de até 20 medicamentos. As drogas eram condicionadas a direitos proprietários. Ou seja, eram medicamentos patenteados.

Acontece, porém, que, àquela época, menos de 5% dos medicamentos em uso no Brasil eram produtos patenteados. Os demais tinham o registro de propriedade vencido e eram, portanto, mais baratos. Se o Estado tivesse se restringido à compra de apenas um medicamento patenteado, tudo bem. Mas foram 27 e constituíram a totalidade de compras naquele ano.

Para evitar problemas com as exigências legais de licitação, uma associação de produtores multinacionais de medicamentos atestava que tais produtos não tinham similar nacional e eram, cada um deles, produzidos exclusivamente por certa empresa farmacêutica.

Em seguida, essas empresas vendedoras de medicamentos declaravam que sua representante diante do governo do Estado de São Paulo era uma certa intermediária, sempre a mesma para todas as produtoras. Essa empresa intermediária era propriedade de um indivíduo que, aliás, foi condenado logo depois, no caso dos sanguessugas.

Nenhuma dessas ações, em si, constituiria uma ilegalidade, pois os preços dos medicamentos comprados pela secretaria eram idênticos aos vigentes, aprovados pelo governo federal. A questão era a escolha dos patenteados, em detrimento de versões similares mais baratas.

O conjunto de compras somou cerca de US$ 300 milhões. Os documentos foram todos assinados por bagrinhos. Se prevalecesse, então, a doutrina atual dita domínio do fato do Supremo Tribunal Federal, haveria tubarões na rede.

O esquema só foi e ainda é possível graças à absurda margem de lucro que caracteriza o setor, pois o intermediário poderia ficar com, digamos, 50% ou mais e ainda restaria aos produtores de medicamentos um assombroso lucro.

De acordo com relatórios das próprias empresas que desenvolvem novas drogas e de suas associações, elas despendem até 15% de seu faturamento com pesquisas. Não há, portanto, como justificar essa margem exorbitante praticada pela indústria de medicamentos, principalmente porque se torna uma forma imoral de exploração da doença e do sofrimento humano.

Texto de Rogério Cezar de Cerqueira Leite publicado na "Folha de S. Paulo" de  1 de fevereiro de 2013. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 81, físico, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha 

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