MANICÔMIOS: UM CASO DE DIREITOS HUMANOS


“Na verdade, duvido que haja, para o ser pensante, minuto mais decisivo do que aquele em que, caindo-lhe a venda dos olhos, descobre que não é um elemento perdido nas solidões cósmicas, mas que uma universal vontade de viver nele converge e se hominiza”
Pierre Teilhard de Chardin

Desde o momento que, no processo da evolução biológica, o hoje Homo sapiens sapiens tornou-se bípede, libertando seus membros superiores da função da suportar seu corpo, de erguer-se, teve sua visão ampliada e qualificada. Das interações entre mãos, visão e cérebro já diferenciados, resultou uma complexidade cerebral que tornou o homem distinto entre todos os animais. Assim, dentre os seres vivos, é o ser humano o único que ocupa todas as áreas habitáveis do planeta, o único capaz de simbolizar, o único a fazer cultura, ou seja, o único capaz de transformar-se, de provocar mudanças nos seus meios físico e social e transmitir essa cultura; o único capaz, pois, de criar.

Dentre as várias características que o destinguem dos demais animais, penso também ser o homem o único que traz em si a potencialidade da “loucura”. Embora o termo genérico loucura seja usado para designar, ainda que metaforicamente, situações as mais diversificadas, ele significa sempre aquilo que escapa às normas, que é incomum, que diverge, que sai do anonimato. Num determinado momento da história das ciências médicas, foi a loucura aprisionada sob o conceito de “doença mental”; tendo sido anexadas a essa mesma categoria patologias várias como doenças orgânicas com sintomatologia psíquica e correspondente lesão neurológica. Todo esse fenômeno da loucura ainda carece de conceitualização em termos absolutos e abstratos.

Inerente ao ser humano, sujeito e objeto de seu estudo, ainda não foi possível expressar pela palavra a idéia da loucura — tal o seu caráter de indefinição e de indeterminação. Traço comum entre todos os povos, ela é vista, abordada e tratada de forma diversa pelas diferentes etnias que habitam a terra.

Se o processo saúde/enfermidade é sempre revelador da realidade social, e o conhecimento científico expressa em conceitos esta realidade, não parece nulo de significado o conceito de “doença mental”. Idealmente, uma sociedade saudável e harmônica é capaz de se autogerir, de ser suporte e continente para as diferenças individuais, integrando-as e enriquecendo-se com elas e não se tornando amputada pela sua exclusão. Quanto maior a ameaça ante o desconhecido, quanto maior o arsenal das incertezas, mais cresce a necessidade de conceituar, de criar regras, de dogmatizar, de erigir normas. Então, a normalidade é um conceito relativo, pois supõe relação, referência, concernências, sendo também casual, fortuito.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou invalidez”. Mas, a visão psicoterapêutica não concebe saúde como um estático e permanente estado de bem-estar, pois é o inquietar-se, a não acomodação, que mobiliza, que deflagra mudanças. Então, saúde mental, ou simplesmente saúde é um estado caracterizado por uma universal vontade de viver, por uma secreta alegria que dá suporte a todas as dores vivenciadas, que capacitam o ser humano a revelar-se ao outro, a assumir suas dúvidas e suas diferenças, a ter esperanças, ter viva consciência de não ser um elemento perdido nas solidões cósmicas, mas um ser em relação com outros seres humanos, com todos os seres vivos, com o planeta, com o cosmo. Saúde é, pois, vontade de viver e viver é processar-se, é permitir transformação, é abrir-se para amar, pois o homem é “eixo e flecha da evolução”, lembrando Chardin.
     
Propondo uma visão dinâmica da saúde mental, Christopher Dejours (8), através de sua experiência como psicanalista, não a define como o bem-estar psíquico, mas um estado onde ter esperança é permitido, e acrescenta: “o verdadeiro perigo existe quando não há mais desejo, quando ele não é mais possível”.
     
Outro conceito intrinsecamente inserido na práxis da saúde mental é o de “cidadania”, definida nos dicionários como “ato de exercer o gozo dos direitos civis e políticos”. Tem suas raízes no mundo antigo, sendo na Grécia definido como cidadão o “indivíduo dotado de plenos poderes políticos”; já os romanos entendiam cidadania como a “aptidão de alguém para exercer por si os atos da vida civil” (7).
     
Finalmente, neste século, com as novas perspectivas humanistas, despontam e se efetivam novas posturas em relação ao doente mental, posturas estas coerentes com os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 sintetizados no seguinte: “Todos os seres humanos são livres e iguais em dignidade e direito”.

Aspectos históricos e legislação
     
“Abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura” 
                                  Franco Basaglia

Durante a história da humanidade a loucura tem ocupado um lugar paradoxalmente destacado. Ora sendo enaltecida e reverenciada através das figuras mágicas e misteriosas dos oráculos, xamãs e pagés; ora discriminada com a expulsão dos loucos do convívio social. Temos na história exemplos clássicos dessa expulsão, como a “nau dos insensatos” — barco carregado de loucos que vagava nos rios europeus na Idade Média, e, mais recentemente, a segregação imposta pelas correntes e camisas de força dos manicômios.
     
À época do Iluminismo, o transtorno mental era considerado uma alteração da capacidade moral e uma perversão da vontade. Nesse período ocorreu na Europa, particularmente na França e na Alemanha, o que Foucaut (11) chamou de “a grande internação”, com a criação das grandes instituições da miséria, sendo os loucos ali internados juntamente com marginais, mendigos, ladrões etc.
     
A legislação brasileira tem acompanhado a história de segregação e discriminação das pessoas acometidas de distúrbios mentais. Citamos a seguir alguns exemplos dessa segregação:
      — Em 1852 foi constituída, por influência da psiquiatria francesa, a primeira lei de assistência ao doente mental no Brasil; ano em que também se inaugurou o primeiro hospital psiquiátrico público — Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Regina Marsiglia justifica essa lei, num contexto em que nenhum grupo da sociedade tinha garantia de assistência pelo estado, pelo interesse em manter os doentes mentais afastados do convívio social.
      — O Art. 5º, parágrafo 2º, do Código Civil de 1916 cita que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os loucos de todo gênero”.
      — A legislação de 1934 comprometia o estado na assistência e proteção à pessoa e aos bens do psicopata (termo, à época, usado para designar todo tipo de doenças mentais). Em 1940 em decreto lei específico para o doente mental e segundo o Código Civil, define-se que a assistência deve ser feita pelo hospital público, tendo o Estado o dever de retirar o doente mental do convívio com a sociedade.
     
Todas essas legislações mantêm em comum o estímulo à alienação do indivíduo enquanto ser social e o cassam do direito ao trabalho, dos direitos civis — à palavra, ao pensamento, à justiça, a ir e vir, à liberdade religiosa —, dos direitos sociais — educação, saúde, habitação, previdência —, e dos direitos políticos.
     
A conquista das garantias dos direitos de cidadania no art.1º e dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade no art.5º da Constituição brasileira de 1988, direitos estes estendidos a todos os brasileiros, nos fortalece para defender uma legislação específica para o doente mental, que mantenha os mesmos princípios de garantias. Nesse sentido, o projeto de lei do deputado mineiro Paulo Delgado já aprovado na Câmara dos Deputados, tramitando no Senado, regulamenta a extinção progressiva dos manicômios, com substituição por instituições abertas — hospital-dia, hospital-noite, oficina protegida, núcleo de atenção psicossocial (NAPS), enfermaria de urgência em hospitais gerais e ambulatórios.
     
Mesmo sem aprovação final, esse projeto de lei já mobilizou inúmeros estados e municípios brasileiros na elaboração de leis que propõem um atendimento aberto e humanizado, como por exemplo a Lei Orgânica do Distrito Federal, dos municípios de Santos, Campinas, Porto Alegre e São Paulo, além da lei ordinária na Assembléia Legislativa de Pernambuco.
     
A Itália em 1978, com a aprovação da Lei 180 da reforma psiquiátrica, contribuiu de forma decisiva para a legislação sobre o atendimento psiquiátrico, mobilizando profissionais do mundo inteiro a se reposicionarem diante da legislação vigente. Constam na lei os seguintes pontos principais:
      — é proibida a construção de novos hospitais psiquiátricos;
      — os serviços territoriais tornam-se responsáveis pela saúde mental;
      — fica abolido o estatuto de periculosidade social do doente mental, a tutela jurídica, a internação compulsória e o tratamento compulsório;
      — o doente mental é cidadão pleno para todos os efeitos, com seus respectivos direitos sociais e civis, que incluem o direito a um tratamento.

Psiquiatria e análise do manicômio

“O louco foi para a ciência aquele outro da razão e que em função disso criaram-se estratégias e táticas para lidar com esse outro que não se conformava ao ideário racional burguês.” 
                                    Jurandir Freire

Das especialidades médicas, a psiquiatria, nascida no século XIX, recebeu nas últimas décadas fortes influências de outras áreas do saber humano, aproximando-se sobremaneira da psicologia, psicanálise, ciências sociais e filosofia. Segundo Kaplan (12), a história da psiquiatria é ao mesmo tempo história da civilização: “à medida que o homem desenvolvia o conhecimento do mundo que o cercava, aumentava também o conhecimento de seu mundo interior”.
     
Essa ciência, nos dois últimos séculos, vivenciou três grandes movimentos. O primeiro, representado pela psiquiatria kraepeliana, centrava-se nos aspectos orgânicos, anátomo-patológicos. Posteriormente, com o conhecimento da estrutura do inconsciente proporcionado pela psicanálise, foram ressaltados os aspectos psicogênicos ou psicodinâmicos da doença mental. Mais recentemente, acompanhado a mudança paradigmática das ciências, a psiquiatria acrescenta, de forma integrada e sistêmica, aos fatores orgânicos — bioquímicos/neurofisiológicos — os aspectos psicológicos, sociais, antropológicos, ambientais e noológicos. Antevemos que essa mudança de concepção transformará a prática da psiquiatria, tornando-a disponível para uma prática verdadeiramente interdisciplinar.
     
Criado por Pinel no século XVIII para acolher os doentes mentais que viviam misturados aos marginais e mendigos das instituições gerais, o manicômio representou de início uma avanço na assistência psiquiátrica. Posteriormente, essa estrutura se tornou símbolo da repressão ideológica aos loucos e, mais recentemente, passou a ser utilizado por grupos econômicos como instrumento de fabricação da loucura, interessando muito mais fomentar a cronificação para manter uma clientela, do que oferecer tratamento a esses pacientes.
     
Segundo Paulo Amarante, a estrutura manicomial tem “uma história de apropriação, de um seqüestro de identidades e cidadania, um processo de medicalização social, de disciplinarização, de inscrição de amplos segmentos sociais no âmbito de um saber que exclui e tutela, e de instituição asilar que custodia e violenta”.
     
O manicômio tem sido o depositário daquilo com que a sociedade não deseja entrar em contato. Lugar de sofrimento e dor, onde as vítimas, sem direito à defesa, são submetidas a maus-tratos, obstrução de sua liberdade, de seu direito à cidadania e à participação social. Uma vez rotulado como mentalmente doente, estabelece-se uma rota de cronificação, de estigma e desvalorização social, confirmado, este caminho sem volta, pela taxa de reinternações de 70%. No Brasil existem 88.000 leitos psiquiátricos públicos ou conveniados, na maioria manicomiais, com precárias condições de atendimento: são celas fortes, isolamento compulsório, camisa de força física ou química, superlotação, promiscuidade, péssimas condições sanitárias, eletrochoque, desrespeito etc.
     
Consonante aos avanços da política de saúde mental em nível mundial e da própria mudança paradigmática da psiquiatria, citada acima, enquanto ciência, a prática da saúde mental busca se parametrizar numa concepção libertária, promovendo instituições abertas que tenham no seu bojo o respeito aos direitos de cidadania do usuário.
     
O hospital psiquiátrico tipo manicomial está superado. O manicômio é uma estrutura abolida do código de respeito ao ser humano! Estas afirmativas têm eco em milhares de trabalhadores da saúde, profissionais das áreas humanas e sociais, familiares e usuários.

Luta antimanicomial e desinstitucionalização

“A missão da utopia é abrir espaço para o possível no mundo social em contraposição ao conformismo.”  
                                Ernst Cassirer

O movimento antimanicomial teve seus primórdios nas transformações sociais propostas a partir da década de 1960, associadas a outras formas que despontavam na época — contracultura, movimento hippie, movimento estudantil europeu etc. Posteriormente foram alimentadas através dos apelos dos referenciais humanistas ocidentais que viam liberdade o principal valor nas inter—relações sociais.
     
Em 1971, Franco Basaglia questiona a estrutura manicomial e propõe em Trieste-Itália a “derrubada” dos muros do manicômio através de uma ação integradora, onde os usuários do sistema de saúde mental poderiam obter ajuda sem perder o vínculo social. Muito pelo contrário, estes indivíduos seriam estimulados a participarem do meio social que os circunda, sendo co-partícipes de sua socialização. Começa aí uma sucessão irreversível de acontecimentos que trazem em sua essência a libertação dos usuários e a destruição progressiva dos nosocômios psquiátricos.
     
O pensamento Basigliano avança além das propostas britânicas de Comunidades Terapêuticas que emergiram na década de 1950. Nestas propostas de atendimento, a loucura era tratada com respeito, pois estava garantida a liberdade de expressão no mundo simbólico e respeitadas as diferenças individuais. Porém limitava os indivíduos à jurisdição da comunidade, ambiente artificial, distante da sociedade.
     
Hoje a substituição dos manicômios por práticas alternativas é uma realidade em inúmeros países. Serviços de assistência desdobram-se em estudos e pesquisas no sentido de encontrar essa alternativas, respeitando as características culturais e sociais de cada região. Preconiza-se para os pacientes com cuidados contínuos, antes denominados crônicos, as pensões e oficinas protegidas, lares abrigados, serviços que estimulem a participação social e a profissionalização, integrando os familiares nas diversas etapas. Para os casos agudos orienta-se a criação de enfermarias de crise em hospitais gerais (5), tendo como meta a brevidade da internação, e núcleos de atenção psicossocial nos ambulatórios.
     
No Brasil, alguns fatores contribuíram para a implantação da reforma psiquiátrica: liberdades sindicais e de organizações civis, movimento nacional pela anistia, redemocratização e abertura político—partidária. Essa reforma foi encampada basicamente pelos profissionais da área de saúde mental que, insatisfeitos com a desumanização no atendimento manicomial-asilar, propunham o fechamento dessas estruturas e a divulgação de novos referenciais terapêuticos.
     
São exemplos dessa luta no Brasil as experiências em Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo, Distrito Federal e Rio de Janeiro onde paulatinamente reformula-se a assistência psiquiátrica através da criação de atendimentos alternativos ao manicômio, envolvendo o sistema de saúde do Estado. Na cidade de Santos SP o processo se deu através de intervenção realizada em 1989 pela prefeitura no Hospital Anchieta, símbolo da desumanização psiquiátrica daquela região. Hoje a assistência se dá utilizando os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), local que aglutina vários setores da sociedade, comprometendo-a integralmente no processo. Todas essas transformações estão concordantes com a política de saúde mental do Ministério da Saúde através das orientações da Coordenação de Saúde Mental, de substituir os leitos manicomiais por estruturas abertas e humanizadas.
     
No Distrito Federal esse movimento teve como seu representante histórico o Instituto de Saúde Mental/FHDF (Fundação Hospitalar do Distrito Federal). Posteriormente foi criado o Movimento Pró—Saúde Mental do DF, em abril de 1991,com a finalidade de promover uma ampla discussão e mobilização de profissionais de diversas áreas. Importante citar, ainda, a criação do Hospital São Vicente de Paula/FHDF, em junho de 1993, tendo por referência um atendimento aberto e participativo aos usuários do sistema de saúde mental, que desenvolve, além das atividades médicas e psicoterapêuticas, um sistema de oficinas protegidas onde o usuário é estimulado ao aprendizado profissional e à produção.
     
A luta antimanicomial se organiza e se expande a cada dia. Na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica (17), realizada em novembro de 1990, na Venezuela, profissionais de todo o mundo elaboraram a Declaração de Caracas, que em síntese defende dois princípios: retirar o hospital psiquiátrico como centro da assistência à saúde mental e defender os serviços comunitários como arregimentadores dessa ações.
     
É interessante ressaltar que em todas essas experiências, nacionais e internacionais, governamentais e não—governamentais, a proposta de trabalho multi/interdisciplinar aparece como elemento fundamental no processo terapêutico. As diversas áreas — médica, psicológica, de enfermagem e serviço social — se articulam e buscam nas demais áreas do conhecimento uma aliança para maior ampliação dos recursos assistenciais.

Experiência de Instituto de Saúde Mental

A pessoa inteira é aquela que estabelece um contato significativo e profundo com o mundo à sua volta.(...) A extensão da sua própria experiência individual é infinitamente multiplicada por uma empatia sensitiva que experimenta em relação aos outros.”
                                       John Powell

O Instituto de Saúde Mental do DF (ISM), criado em 1987 pelo dr. Inácio Republicano, emergiu da insatisfação de um grupo de profissionais de saúde no tratamento a usuários com distúrbios psicóticos; como também da necessidade de uma prática que funcionasse como fórum de reflexões e desenvolvimento de novas abordagens em saúde mensal. Parodiando Paulo Freire, “todo trabalho se faz pela prática-reflexão-prática-reflexão...”
     
sse Instituto tem sido local de vivências exuberantes de crescimento e fortalecimento de propósitos de uma assistência não-manicomial. Já representa em Brasília, e talvez no Brasil, uma referência institucional de hospital-dia. A prática do ISM tem se revelado como a garantia de reabastecimento de forças, no sentido de defender uma nova abordagem em saúde mental caracterizada fundamentalmente por uma postura de respeito e estímulo à autonomia do usuário atendido, onde a convivência se revela como pilar primordial da ação terápica.
     
Participante de uma vertente não-manicomial, busca novas compreensões da loucura e novas formas de abordagem para os transtornos do comportamento humano. No início, o enfoque priorizava a cura psicológica e/ou psiquiátrica. Depois, com a diversificação das atividades e inclusão de outros referenciais profissionais, o modelo vem apliando-se, constando com conhecimentos da área de psiquiatria social, comunidade terapêutica, psiquiatria biológica, pensamento humanístico, fenomenológico e existencialista. Perpassando todos esses enfoques , foi eleita a recontextualização pessoal, familiar, social e cultural como eixo de atuação das diversas disciplinas.
     
Ocupando uma grande e bela área física — a granja do Riacho Fundo, 500.000m2 de área verde, água natural, piscinas, quadras e casas — o ISM sobre acusações do tipo: “ser um lugar muito bonito para atender doentes mentais”, como se essas pessoas não fossem merecedoras de um lugar aprazível e digno. Este também é o ponto crucial do atendimento — a dignidade e o respeito àqueles que o procuram.
     
Toda a história do Instituto tem sido um permanente reaprender, um processo de reflexão da equipe, seja através de momentos de reuniões sistemáticas e periódicas do grupo, seja na vivência prática, quando profissionais de inúmeras áreas trocam e discutem suas experiências. Nessa convivência os técnicos e usuários se inter-relacionam buscando uma forma compartilhada de poder, destoando dos modelos tradicionais de serviços de saúde mental, onde o psiquiatra detém toda decisão, a equipe executa as tarefas e os pacientes se submetem.
     
Este processo de repensar permanente gera alguns conflitos, inseguranças, retrocessos, avanços e, conseqüentemente, crescimento.
     
Os usuários são atendidos primordialmente em grupos, priorizando-se as relações com o outro e com a comunidade. São atividades psicoterapêuticas, grupos de discussão sobre cidadania, medicação, programação da semana, oficinas de arte — música, teatro, artes plásticas —, oficinas de capacitação e produção — marcenaria, tecelagem, cozinha e de beleza. Todas estas atividades são entremeadas de vivências comunitárias onde participam familiares e convidados. Estas vivências são organizadas sempre por comissões paritárias de usuários e técnicos, reforçando sempre a autogestão e a capacidade de organização das pessoas atendidas.
     
As famílias invariavelmente são incluídas na programação terapêutica instituída. Grupos quinzenais de familiares discutem suas dificuldades e se auto-ajudam na mudança de seu referencial de doença para um referencial de relações pautadas na saúde. Outras atividades, como atendimento do grupo familiar ou estímulos à participação no processo da comunidade, são incluídas. São diversas ocasiões em que esses familiares se agregam aos eventos ali ocorridos.

O ISM, caracterizado como uma estrutura aberta, funciona sob a forma de hospital-dia, núcleo de reinserção social e ambulatório. Em todas as etapas os usuários retornam diariamente às suas casas, não perdendo, em nenhum momento, o contato com sua família e com a sociedade a que pertencem. Pelo contrário, esse contato é estimulado — princípio fundamental da proposta de trabalho. Tem como objetivos principais:
      — desenvolver uma prática alternativa ao manicômio;
      — possibilitar ao usuário do serviço de saúde mental uma nova postura em relação à sua doença, desenvolvendo sua autonomia e capacidade de assumir novos papéis;
      — expandir para além dos muros da instituição, comprometendo familiares e comunidade.

O programa de tratamento contém em seu bojo a noção de fluxo e resolutividade e critérios de admissão e alta, contrariando o estigma existente nas estruturas psiquiátricas tradicionais da cronificação e via de mão única. São quatro etapas a serem percorridas, desde a triagem/avaliação: grupo de inserção, unidade interdiciplinar de referência (UNIR), pré-alta e ambulatório.

Durante o ano de 1993 processaram-se inúmeros avanços em seu funcionamento, caracterizados como avanços ideológicos, técnicos e político-administrativos. Ideológicos, quando se efetivou nas relações uma postura intrinsecamente democrática. Nesse particular lançou-se mão dos referenciais da Comunidade Terapêutica, onde o poder se processa o mais horizontalmente possível.

No aspecto técnico-científico, avançou de uma prática multidisciplinar para a interdisciplinar, em que as disciplinas se realimentam nas suas potencialidades. Enfrentando o desafio permanente de abrir mão do limite pré-estabelecido de cada disciplina acadêmica para arvorar-se ao “Encontro”. Nesse aspecto foi criado ainda o Centro de Estudos em Saúde Mental para fortalecer as bases científicas das atividades.

Finalmente, como avanço político-administrativo, foi implantada na gestão 93/94 uma administração participativa e democrática, abrindo mão de sua “cadeira” cativa do poder e socializando-a nos diversos estágios de realizações. Esta socialização teve seu ponto alto no Seminário Institucional, realizado em dezembro/93 para confecção do Plano Diretor/94. Participaram todos os usuários, familiares e profissionais do ISM, como também órgãos e setores afeitos da sociedade. Como expressão de uma participação política mais ampla, foi criado também em 1993 o Conselho Comunitário do ISM, composto por usuários, familiares, técnicos e diversos órgãos de defesa dos direitos humanos.

Hoje o Instituto tem sua carta de navegação, um rumo e uma direção. É um compromisso assumido por todos para ser cumprido também por todos os envolvidos.

A partir dessa experiência, mister se faz tecer algumas considerações sobre a assistência à Saúde em geral:
      — definitivamente, saúde é a resultante sistêmica do conhecimento das ciências biológicas, comportamentais e sociais;
      — a participação dos usuários e dos familiares é fundamental no processo e projetos de assistência;
      — administração participativa é peça primordial na construção de uma instituição que deseje responder aos anseios da população;
      — reavaliação permanente das ações é canal para crescimento e ampliação das soluções;
      — a eleição da comunidade como foco principal das ações de saúde muda radicalmente a assistência para níveis de prevenção e participação.

Texto de Maria Henriqueta Camarotti Costa publicado no Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (INESC), adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

BIBLIOGRAFIA

01. Saúde mental e cidadania. São Paulo, Edições Mandacaru, 1990.
02. Andrade, C.E. et all; “Oficinas comunitárias - Um programa de atenção psicossocial”. J. bras Psiq, 43 (1): 39-43, 1994.
03. Bandeira, M.; “Reinserção de doentes mentais na comunidade: fatores determinantes das re-hospitalizações”. J bras Psiq, 42 (9): 491-498, 1993.
04. Basaglia, F.; A instituição negada. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1991.
05. Botega, N., Dalgalarrondo, P.; Saúde mental em Hospital Geral. São Paulo, Editora Hucitec, 1993.
06. Calil, L.C. et all: “Tratamento em grupo de pacientes psicóticos” J bras Psiq, 42 (10): 537-540, 1993.
07. Croizet, A, Figueiredo, G.A; A cidadania na Grécia e Roma. Brasília, Ministério do Interior, 1998.
08. Dejours, Christopher; A loucura do trabalho.
09. Firmino, Hiram; Nos porões da loucura. Rio de Janeiro, Editora Codecri, 1982.
10. Foucault, M.; Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1984.
11. Foucault, M.; História da loucura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1991.
12. Kaplan e Sadock; Compêndio de psiquiatria dinâmica. Editora Artes Médicas, 3ª edição, 1984.
13. Lancetti, A; “Saúde e loucura”, nº 1, Editora Hucitec, São Paulo.
14. Levav, I. et all: “A reestruturaçã da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de saúde mental”. J bras Psiq 43 (2): 63-69, 1994.
15. Morgado, A, Lima, L.A; “Desinstitucionalização: suas bases e a experiência internacional” J bras Psiq, 43 (1): 19-28, 1994.
16. Onildo, J. et all; “Grupoterapia em hospital-dia: os grupos das comissões de atividades” J bras Psiq, 42 (6): 327-334, 1993.
17. Reestruturação da Assistência Psiquiátrica: Bases Conceituais e Caminhos para sua Implementação. Memórias da Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica. Caracas/Venezuela.
18. Teves, Nilda: Imaginário social e educação. Rio de Janeiro, Editora Gryphus, 1992.

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