A DOR


E como dói...
Só há pouco tempo, passou-se a estudar o fenômeno da dor como um mal em si mesmo, que merece tratamentos específicos. E descobertas surpreendentes conduzem à cura na esmagadora maioria dos casos.

Alguns podem suportar uma dor durante certo tempo, mas decididamente ninguém suporta quem reclama de dor muito tempo. “Como vai?” — alguém lhe pergunta, e o maria-das-dores, em vez de um cortante “tudo mal”, explica que arde, aperta, pinica, perfura, belisca, queima, irrita, estremece, lateja aqui e ali. No início, até dói no coração de quem ouve, que retira um providencial analgésico do bolso, lembra-se de um fantástico chá da vovó, procura o endereço daquele médico que curou outro amigo. Mas há dores que vencem não só esses primeiros socorros como também todas as demais manifestações de caridade. Esgotam ainda as receitas do médico da família. Porque não têm domínio da situação, as pessoas tendem a achar que o problema de fato não existe ou se sentem constrangidas pela falta de solução. E quem já sofria de uma dor experimenta outra — a da solidão. Esse “chato de doer” talvez ignore que hoje existem médicos especializados em compreender suas queixas e curá-lo. A Medicina nos últimos anos passou a pesquisar o fenômeno da dor, que agora é muitas vezes considerado uma doença em si. Pode ser um alívio saber que existem tratamentos — embora nem sempre cura definitiva — para todos os casos. Talvez por não contar com os recursos modernos, o homem tentou no passado encontrar consolo valorizando a dor. Sofrer, como escreveu o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), “é um divino remédio para as nossas impurezas”.

Várias religiões propagaram essa idéia: basta lembrar os sofrimentos da paixão de Cristo ou o martírio dos santos. Apenas em 1957, uma encíclica de Pio XII autorizou os médicos católicos a usar a morfina “em doses moderadas” para acalmar o suplício dos pacientes. Em geral, é sempre assim: no cinema, o bandido leva um soco e fica se contorcendo no chão; o herói leva um tiro, range os dentes, passa a mão na camisa ensangüentada e vai à luta. Isso porque permanece inconscientemente a idéia de que quem agüenta a dor é íntegro e corajoso. Mas, na hora H, ninguém quer ser admirado por agüentá-la. Só pessoas com distúrbios psíquicos, os masoquistas, sentem prazer na dor. A grande maioria quer é distância dessa sensação inapelavelmente desagradável. A princípio, porém, a dor aguda tem uma causa nobre, pois faz parte de um importante sistema de alarme do organismo, chamado nociceptor ou receptor de agentes nocivos. Na verdade, dor é uma interpretação cerebral de estímulos captados por estruturas nervosas existentes na pele, nos músculos e vísceras, encarregadas de registrar e comunicar qualquer anormalidade de pressão, temperatura ou eletricidade. Assim, quando um agente externo danifica o corpo, como um prego que fura o pé ou uma panela que queima a mão, sente-se uma dor que, primeiro, afasta a pessoa do que a machuca e, depois, a obriga a cuidar da região afetada. Da mesma forma, dores alertam para problemas internos: a digestão malfeita se manifesta em ardor no estômago, por exemplo. Existem ainda dores mais sofisticadas, que não se limitam a dar o alarme.

A angina no peito informa que um infarto pode estar a caminho. É claro que todos têm uma certa consciência disso e, sentindo a queimação no peito, não saem correndo para buscar socorro, evitando esforços para o coração. Mesmo assim, o organismo parece tomar suas precauções; a dor típica no braço esquerdo dos cardíacos dificulta qualquer movimentação, praticamente obrigando a pessoa a ficar imóvel e,dessa maneira, poupar o coração em crise. Outro exemplo é o parto. A inesperada pontada na barriga da grávida — a dor da primeira contração — é que impede que a criança nasça na rua. Mas, além de ordenar a ida para a maternidade, essa dor tem outra função. Ser mãe é padecer de uma contração dolorosa do útero atrás de outra — ao menos, até que se tome anestesia. Em partos normais, para os quais o corpo da mulher naturalmente se prepara, a dor ajuda a expulsão da criança cada vez que obriga a mãe a contrair a barriga num espasmo.

Quem não sente dor alguma — pessoas portadoras de uma doença congênita chamada analgesia — costuma ter muitos problemas no dia-a-dia e até morrer cedo. Felizmente, são raridades: não há mais que trinta casos registrados neste século no mundo inteiro. O primeiro deles, da década de 20 foi o de uma garotinha inglesa, Mary Andrews, que chegou em casa com uma perna inchada. Os médicos acharam que era mais um caso de reumatismo infantil. Depois de vários tratamentos fracassados, descobriram que a menina tinha três fraturas na perna — sem sentir dor; porém, ela caminhava normalmente e, por não ter sido imobilizada a tempo, a perna ficou defeituosa. Diz o ditado que a gente tem aquilo que dói. Pois foi o filósofo francês René Descartes (1596-1650), o mesmo que afirmou “penso, logo existo”, quem primeiro desenhou um possível caminho da dor, que seria uma ligação direta da área dolorida até o cérebro. Não é bem assim, sabe-se hoje. As microestruturas nervosas que captam alterações que afetam o corpo estão ligadas a nervos que na verdade não seguem direto ao cérebro. Em primeiro lugar, o estímulo é desencadeado quando essas estruturas liberam para os nervos determinadas substâncias que formam uma corrente elétrica. Esta passa pela medula da espinha e só então segue para o cérebro ou, mais especificamente, para o tálamo, onde se tem as sensações. Aqui já se sente a dor, mas não se sabe ainda nem a intensidade nem o que a provoca. Enfim, não se interpreta a sensação — isso só acontecerá quando a informação alcançar o córtex cerebral, uma fração de segundo mais tarde. Os cientistas definem esse percurso como “processo ascendente da dor”. O “processo descendente” é quando o cérebro, em resposta, manda socorro para a medula. O remédio orgânico são substâncias analgésicas que ou bloqueiam totalmente ou ao menos aliviam a dor. Isso acontece porque elas se encaixam como uma chave na fechadura nas substâncias que desencadeiam a informação dolorosa. Tais analgésicos, as endorfinas, foram descobertos em 1975 por cientistas americanos. Já se sabia que, estimulando com choques elétricos certas regiões cerebrais, conseguia-se um efeito analgésico. Os cientistas começaram a operar ratinhos usando esse estímulo como anestesia. Mas, para surpresa geral, os bichos continuavam sem demonstrar dor mesmo quando os choques eram interrompidos. Se fosse o mero estímulo de uma área do cérebro a causa da ausência de dor, esta deveria se manifestar com a interrupção dos choques. O fato de isso não acontecer indicava que existia algo mais — daí a descobrir que os choques estimulavam a produção de analgésicos naturais foi um passo.

As endorfinas são muito parecidas com as drogas sintetizadas pelo homem, como a morfina. Acredita-se que a diferença na produção dos analgésicos biológicos — seja de indivíduo para indivíduo ou de situação para situação — faça da dor uma experiência pessoal e intransferível. Por exemplo, descobriu-se que, quando se está concentrado numa atividade qualquer e não na dor em si, a produção de endorfinas aumenta. O povo parece ter aprendido isso antes dos cientistas: quem, sentindo dor, já não ouviu o conselho: “Pense em outra coisa, que passa”? Os atletas são craques em driblar a dor: um jogador de futebol pode levar caneladas e continua em campo. Depois da partida, pode até chorar de dor. Mas só depois. A vida de quem se sente feliz também é menos dolorida. Está provado que aqueles que ficam deprimidos por algum motivo ou estressados têm sua produção de endorfinas diminuída. Com isso, a dor é percebida como se estivesse sob uma lente de aumento. De uma forma ou de outra, todos já puderam testar essa diferença do próprio limiar da dor: quando se está louco para ir a um encontro e aparece uma dor de cabeça, toma-se um comprimido, mas não se perde o programa; quando a perspectiva é um tedioso dia no escritório, a dor pode tornar o trabalho impossível.

Tudo ainda leva a crer que a produção de endorfinas é maior no sexo feminino. Portanto, o ditado deveria ser “mulher que é mulher não chora”, pois os homens nesse aspecto são o sexo mais frágil. As dores também tendem a provocar reações diferentes, conforme as origens de cada um. Ao levar um beliscão, um japonês, por exemplo, limita-se, regra geral, a retirar o braço; o mesmo beliscão num italiano costuma gerar um berreiro. Por mais cuidado que se deva ter com tais generalizações, as pesquisas indicam que os campeões mundiais de resistência à dor sãoos orientais; no outro extremo, estariam os italianos e os judeus. Os brasileiros, segundo os pesquisadores, estariam entre os mais resistentes. Resta saber se essas pessoas sentem a dor da mesma maneira, mas a demonstram de formas diferentes, ou se a produção de endorfinas pode ser influenciada pelo ambiente familiar e pela herança cultural transmitida na educação.

Existem, é claro, regiões do corpo, como os olhos e os lábios. Mais sensíveis à dor — porque têm um número maior de nociceptores. Os cientistas acham que qualquer estrutura sensitiva pode desencadear a dor e não apenas os nociceptores especializados. Os corpúsculos de Ruffini, por exemplo, são microestruturas das células que enviam ao cérebro informações sobre temperatura. Se tremendamente excitados, quando se toca a língua em um líquido muito quente ou se encosta a mão num cigarro aceso, o cérebro interpreta a sensação intensa como dor. Enfim, como os nociceptores não atuam sozinhos, a intensidade de uma dor torna-se ainda mais relativa. Para a ciência — embora isso agrida a experiência concreta de cada um — não há dores menos ou mais dolorosas. Em matéria de intensidade da dor, não existe um campeão absoluto. Segundo uma teoria, a percepção seria também efeito da “memória de dor” — um conjunto de conceitos, lembranças e associações. Assim, um médico poderia sentir mais a dor de uma injeção que um paciente — por saber o que acontece exatamente e o que pode dar errado quando a agulha penetra na pele. Da mesma forma, índios que nunca tinham passado por tratamentos dentários nada sentiram numa extração sem anestesia — eles simplesmente ignoravam que aquilo ia doer. Ou seja, a antecipação da dor, causada pelo medo, influiria na intensidade da dor.

Para medir uma dor, os médicos só contam com um instrumento: o relato de quem a sente. “Nossa filosofia é sempre acreditar no paciente”. diz o neurologista Jorge Roberto Pagura, 39 anos, da Escola Paulista de Medicina. Há oito anos, ele fundou em São Paulo a primeira clínica particular do Brasil para tratamento da dor — não aquela que serve como alarme, mas as dores crônicas. “Elas não são um aviso. Elas são o próprio problema”, diz. Quase sempre, segundo o neurologista, o diagnóstico é encontrado. “A dor tem umarazão fisiológica que deve ser tratada” explica Pagura “Muitas vezes, localizada a causa da dor o paciente é encaminhado a especialistas e fisioterapeutas — exercícios específicos e medicação resolvem mais de 70 por cento dos casos.” O restante deve apelar para o bisturi. Só a cirurgia, por exemplo, descomprime o nervo trigêmeo, que desce das têmporas para os lábios, cuja dor chega a paralisar a face. Quem já sentiu diz que não há nada pior em matéria de suplício físico.As cirurgias, em geral, podem interferir de duas maneiras: interrompendo o processo ascendente da dor, ou seja, cortando os nervos que levam os sinais dolorosos, ou estimulando a produção de endorfinas mediante o implante de eletrodos na medula e no cérebro. Esses eletrodos são controlados por um marcapasso similar ao usado pelos cardíacos.

A dor de que os brasileiros mais padecem — sem falar, é claro, da dor-de-cotovelo — é a terrível dor de cabeça, mais especificamente a afamada enxaqueca. Os ambulatórios para tratamento dessa dor, existentes em muitas faculdades de Medicina do país, atendem uma média de quarenta casos por dia. Foi trabalhando num desses ambulatórios, o do Hospital dos Servidores Públicos de São Paulo, que o neurologista Célio Levymann acabou se especializando em dor de cabeça. “A cura de dores crônicas como a enxaqueca é fácil, desde que o diagnóstico seja adequado”, diz ele.Os brasileiros consomem por ano 3 bilhões de comprimidos para dor de cabeça — sem dúvida uma enormidade, mas ainda assim dez vezes menos que os americanos. Os cientistas, porém, estão quase certos de que, em excesso, analgésicos eventualmente se viram contra o feiticeiro e, em vez de fazerem a dor sumir num piscar de olhos, como num passe de mágica, podem aumentá-la. Quem não tem crises freqüentes de enxaqueca pode optar por remédios sintomáticos, que aliviam a dor quando ela aparece. Para quem tem duas a três crises por mês — é a média dos casos, de acordo com Levymann —, a solução é prevenir, também com medicamentos, combinados conforme a situação.

A mais famosa enxaqueca do Brasil pertence ao poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, autor de Morte e Vida Severina e de Ode à Aspirina. O que não falta são teorias para explicar a enxaqueca. A clássica é de que se trata de uma alteração na irrigação sanguínea do cérebro. Hoje. porém, também se leva em conta que, quando existe enxaqueca, há também uma alteração nos hormônios cerebrais que produzem as endorfinas. E estudos muito recentes mostram que os enxaquecosos, como dizem os médicos, têm uma tendência maior que as pessoas normais a formar coágulos sanguíneos. Isso faz muitos cientistas encararem essa dor como um problema hematológico, que diz respeito ao sangue, e não neurológico. Para o acupunturista Jou El Jia, de São Paulo, a dor — como prega a medicina tradicional chinesa — é cansada quando a energia que deve fluir, por todo o corpo fica estagnada ou não passa por um determinado ponto. As agulhas da acupuntura restabeleceriam o fluxo normal. O doutor Jou, porém. não discrimina as explicações da ciência ocidental para o fenômeno. “Embora a questão da energia seja fundamental para a tradição chinesa”, diz, “estudos avançados provaram que as agulhas, na verdade, estimulam a produção das endorfinas, além de bloquear a chegada dos sinais de dor.” O doutor Jou assegura que as agulhas eliminam qualquer dor em duas ou três sessões. Outros médicos, porém, afirmam que nem sempre esse tratamento oferece resultados positivos. “De fato”. esclarece o doutor Jou, “as agulhas eliminam cólicas renais ou menstruais. Mas, se a pessoa está com a energia muito baixa, precisamos elevar esse nível, antes de tratar de outras dores mais complexas.” Num livro publicado no começo do ano na França, L'homme sans douleur, o neurocirurgião Gabriel Mazar escreve com todas as letras que “a ciência possui todos os meios de dominar a dor, seja qual for a sua origem ou os órgãos afetados”. Primeiro clínico parisiense a tratar da dor como tal, já em 1960 Mazar oferece um verdadeiro cardápio de alternativas médicas, algumas extremamente sofisticadas, para o combate à dor. Por exemplo, injeções de morfina no cérebro ou a coagulação de uma pequena área da medula espinhal, Mazar insiste em que mesmo pacientes desenganados podem ser poupados do sofrimento. Para ele, em suma, deve-se viver e morrer sem dor.

Armas do alívio

Uma vez diagnosticada, qualquer dor tem tratamento. Mesmo nos casos sem cura, pelo menos algum alívio temporário sempre se consegue. Eis as armas mais utilizadas nessa guerra sem fim:Fisioterapia — Indicada na maioria dos casos, sozinha ou ainda como tratamento auxiliar. Os resultados são positivos apenas quando o especialista encontra o ponto exato que está gerando a dor — assim se tira maior proveito dos exercícios.Acupuntura — A aplicação de agulhas em determinados pontos do corpo bloqueia a mensagem da dor para o cérebro e ainda estimula a produção das endorfinas. Em casos de dor muito forte, os acupunturistas intensificam o tratamento girando as agulhas aplicadas no paciente ou recorrendo a choques elétricos nesses pontos de dores. Em crianças, o raio laser pode substituir a agulha; no adulto, que tem a pele mais grossa, o laser não consegue estimular o suficiente.Cirurgias — Em casos graves, como as dores de câncer, drogas como a morfina estão sendo substituídas pela cirurgia que destrói a glândula hipófise: isso gera uma série de processos químicos no cérebro que impedem a sensação de dor.Estímulo transcutâneo — Diversos eletrodos são ligados ao corpo da pessoa para que ondas elétricas bloqueiem a dor. Serve apenas para as dores temporárias, como as do pós-operatório, pois ninguém sai por aí envolto em fios e eletrodos.Analgésicos — Não mexem com a causa, mas eliminam a sensação da dor, com substâncias que irão se juntar aos receptores nervosos, impedindo que captem os sinais dolorosos.

O circuito da dor

1) Um furo de prego, por exemplo, excita terminações nervosas especiais, os nociceptores, que então liberam substâncias químicas desencadeadoras de uma corrente elétrica
2) A corrente mensageira da dor percorre os nervos até chegar à medula espinhal
3) Da medula, vai para o tálamo, região cerebral onde a dor é sentida: nesse instante, a pessoa afasta o pé do prego
4) Três décimos de segundo depois, o estímulo alcança o córtex cerebral, onde a intensidade da dor é analisada. Aqui termina o chamado “processo ascendente da dor” com a ordem do cérebro de enviar substâncias para atenuar a sensação
5) A medula passa a liberar endorfinas, substâncias analgésicas biológicas produzidas pelo cérebro
6) As endorfinas, graças ao formato de suas moléculas, se encaixam com as substâncias que desencadeiam a corrente elétrica, ficando assim bloqueada a mensagem da dor.

Emoções doloridas

A pontada de susto no estômago, o aperto da paixão no peito, o nó na garganta da tristeza — sentimentos fortes estão associados à dor fisiológica. O suplício de uma saudade não é apenas uma imagem literária: machuca mesmo por dentro. Isso acontece porque, ao se emocionar, a pessoa perde parte do controle do sistema nervoso vegetativo, que comanda o funcionamento de diversos órgãos do corpo. Assim, desencadeia-se uma série de alterações drásticas e repentinas nas secreções em geral — daí o coração partido, por causa do disparo do hormônio adrenalina; eis também a razão orgânica da sensação de pancada no estômago que, na verdade, é uma contração súbita misturada a uma descarga extra de sucos gástricos. Tensão emocional automaticamente se transforma em tensão muscular e o corpo fica todo dolorido. Não há como não sentir essas dores — pois não há como não sentir emoções.

Por Lúcia Helena de Oliveira publicado na revista "Super Interessante" edição 6 de março de 1988. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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