ESCARRADEIRAS, RAPÉ E BONS COSTUMES

Uma outra categoria de artefatos associados à excreção, as chamadas escarradeiras ou cuspideiras, de porcelana, faiança fina, vidro ou metais nobres, foram intensamente utilizadas no século XIX, considerando-se “de bom-tom” o hábito de se expelir secreções em público. Utilizadas nos espaços sociais das unidades domésticas, basicamente na sala e no gabinete de fumantes, eram deixadas à disposição das visitas, no chão, em geral aos pares, ladeando os sofás. Arrolamentos de tralhas domésticas feitos por ocasião de inventários, leilões ou executivos hipotecários registram sistematicamente sua presença, sempre em número de duas, mostrando tratar-se de um equipamento habitual nas residências de médio e alto poder aquisitivo.

Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao ato de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos.
   
Foram abundantemente fabricados pelos principais estabelecimentos ceramistas europeus, aí incluídos ingleses, franceses, holandeses, alemães e portugueses. Valente (1949, pp.156, 158 e 216) assinala a produção, na fábrica de Santo Antônio do Vale da Piedade, no Porto, de escarradores brancos, ”de sala de segunda”, de escarradores “de rabo” e de escarradores “de roda”. Essas peças eram produzidas, portanto, em ampla escala, com maior ou menor qualidade, para atender a todas as classes sociais, desde a porcelana de Limoges, passando pela faiança fina inglesa, até a faiança portuguesa de segunda categoria, ordinária, como a já citada, para os segmentos de menor poder aquisitivo.

A origem destes utensílios está, ao que tudo leva a crer, na China, remontando pelo menos ao século XVI, de acordo com a literatura consultada. Boulay (1984, pp. 125 e 164), ceramógrafo da Christie’s, apresenta a reprodução de três destes recipientes, uma peça única e um par, por ele designados como chadou ou leys jar, definidos em seu glossário como “vasos globulares com pescoço em forma de corneta, utilizados como escarradeiras”, pertencentes ao período Zhengde (1506-21). Essas peças têm em média 15cm de diâmetro e não possuem alças.

Já no século XVIII, esses vasilhames estavam sendo intensamente fabricados pelos chineses para exportação. Scheurleer (1974, p. 216) apresenta um pequeno recipiente de forma muito semelhante aos mencionados, definido como escarradeira (spitoon), com 8,2cm de altura e 10,5cm de diâmetro, datado da primeira metade do século XVIII. Teixeira Leite (1986, p.85) mostra duas peças com alça, Família Rosa, Qing, Qianlong, de meados do século XVIII, com dimensões aproximadas. Howard (1994, p. 228) reproduz uma pequena cuspideira (cuspidor) sem alça, com 12,7cm de diâmetro, recuperada na embarcação Geldermalsen, naufragada nos mares do sul da China em 1752, referindo-se ainda à presença de uma versão um pouco maior, com alça. As formas são todas bastante semelhantes e, segundo este mesmo autor, permanecem essencialmente as mesmas desde cerca de 1700.

Ainda nessa publicação (idem, pp.228-9), é mostrado um par de potes de vômito (vomit pots) Qianlong, de 1750, com a forma de pequenos urinóis (13cm de diâmetro). Esses artefatos, no entanto, tiveram vida breve: o hábito de comer em excesso e vomitar em seguida não durou mais que cinco anos e os europeus começaram a proibir sua importação em meados do século XVIII. A documentação referente à carga do Geldermalsen menciona a presença desses objetos, no que pode ter sido uma das últimas remessas para o Ocidente.

Artur de Sandão (1985, p.28) refere-se às cuspideiras fabricadas em Portugal, nas fábricas de Viana, Porto e Gaia, como sendo “semelhantes às que vinham com as baixelas de porcelana da Companhia das Índias, para o insólito uso de nelas cuspir caroços”.

As escarradeiras em voga no século XIX, com um diâmetro médio de 25cm, entretanto, têm o dobro do tamanho dessas peças e apresentam uma forma intermediária entre os potes de vômito, verdadeiros urinóis de pequenas dimensões, e as cuspideiras chinesas originais.

Considerando que as emissões de catarro e saliva são feitas normalmente em pequenas quantidades, ao contrário da urina e das matérias fecais, são surpreendentes as dimensões que esses objetos assumiram no século passado. Desproporcionais para a função a que se destinavam, somente uma utilização contínua e por várias pessoas ao mesmo tempo justificava o seu porte, o que mais uma vez sinaliza um comportamento obsessivo. O fato de serem em sua grande maioria destituídas de alças, ao contrário dos urinóis, sugere que não eram removidas do chão, onde ficavam pousadas, com a mesma freqüência que aqueles para fins de despejo e lavagem, o que decerto devia provocar mau cheiro no ambiente.

No entanto, foi recuperada nas escavações do Solar Grandjean de Montigny, no Rio de Janeiro, em um depósito de lixo do final do século XIX, uma pequena escarradeira em faiança branca que reproduz, na forma e nas dimensões, as pequenas cuspideiras chinesas do século XVIII. Sem marca de fabricação, com apenas uma asa e o típico orifício central, apresenta a peculiaridade de não possuir as aberturas laterais para escoamento dos fluidos, existentes nas peças maiores, de chão, o que devia dificultar bastante sua limpeza. Suas características apontam não para um uso coletivo, mas individual, possivelmente para fins medicinais, servindo a pessoas acamadas.

Associando o hábito de escarrar a um dos problemas de saúde mais freqüentes à época — a tuberculose —, é bastante provável que essa prática tenha contribuído fortemente para a rápida disseminação do bacilo de Koch no século passado. Tendo em vista que este bacilo não tem sobrevida longa fora do organismo e só se mantém se penetrar rapidamente em outra célula, não eram propriamente as cuspideiras as responsáveis pela sua propagação, mas sim o ato de escarrar. Nos ambientes fechados, nas alcovas úmidas, abafadas, escuras, sem ventilação, gotículas dos escarros ficavam em suspensão, favorecendo a contaminação e a disseminação da doença. Para tísicos com tosse produtiva ou com hemoptises, escarradeiras individuais, portáteis, eram objetos não apenas necessários, mas indispensáveis. Embora desconheçamos a produção maciça, sistemática, desse tipo de artefato no século passado, é bem possível que tenham sido fabricados regularmente e a peça encontrada parece ser testemunho desta possibilidade.

As referências citadas por Elias (1990, pp. 155-8) demostram que, desde a Idade Média, a prática de escarrar era de tal forma intensa e ostensiva que os tratados de boas maneiras dos séculos XVI, XVII e XVIII precisavam instruir no sentido de se direcionar a emissão dos esputos para locais considerados adequados. Já no medievo, os textos recomendavam não escarrar sobre a mesa, dentro da bacia onde se lavava as mãos ou sobre as outras pessoas. A partir do século XVI, o aconselhamento era no sentido de se pisar imediatamente sobre as ‘coisas purulentas’ que eram cuspidas no chão, encobrindo-as com o pé para que não fossem vistas, de modo a não causar repugnância nas outras pessoas. Esta recomendação se manteve até o século XVIII. Também era vivamente estimulado o uso, a princípio, de pedaços de pano para recolher o produto das expectorações, sendo de todo inconveniente examiná-lo, uma vez expelido. Esses panos transformaram-se mais tarde nos conhecidos lenços, cujo uso se generalizou a partir de Luís XIV.

Os manuais de cortesia, unanimemente, condenavam a freqüência com que as pessoas escarravam e aconselhavam maior comedimento. As emissões deveriam ser reduzidas, moderadas, discretas, e nunca às refeições. Um texto anônimo de 1714, Civilité française, recomendava ainda que não se escarrasse nas brasas do fogo, pela janela, sobre as pessoas ou suas roupas, independente da sua categoria social, mas sempre por perto, de modo a permitir pisar o esputo com o pé. Segundo La Salle (1729), jamais em pisos encerados ou de parquê, e tampouco no chão das igrejas; a edição de 1774 aconselhava evitar também paredes e móveis.

Somente no século XIX é que foi finalmente domado este ímpeto ejetor, devidamente canalizado para um recipiente específico e elegantemente entronizado nos lares burgueses. Em 1828, o Nouveau dictionnaire de la langue française menciona cuspideiras (chachoirs) sendo utilizadas nas residências; em 1886, o Grand dictionnaire universel du XIXe siècle, de Pierre Larousse, ainda as descreve como artefatos existentes nos appartements para neles se cuspir. O mesmo tipo de referência pode ser encontrado no Noveau Larousse illustré, que, no entanto, já assinala limitações no seu uso, ao mencionar que “algumas pessoas” têm esses artefatos em seus appartements para aí cuspirem. Finalmente, La Grande Encyclopédie assinala, após descrevê-la, que a escarradeira, à época, já estava quase que completamente desaparecida das residências. Banida em definitivo na transição para o século XX, com a difusão das descobertas pasteurianas, perdurou ainda consideravelmente em universos periféricos e nas camadas mais baixas das populações.

Em Moeurs intimes du temps passé, Cabanès registrou, em 1910, a seguinte observação (Elias, 1990, p. 158):”Você já notou que hoje relegamos para algum canto discreto o que nossos pais não hesitavam em exibir abertamente? Por isso mesmo, certa peça íntima de mobiliário tinha um lugar de honra ... ninguém pensava em ocultá-la da vista. O mesmo se aplica a outra peça de mobília não mais encontrada em residências modernas, cujo desaparecimento alguém lamentará talvez nessa era de ‘bacilofobia’: estou me referindo à escarradeira.”

Ao contrário dos franceses, esse parece ter sido um hábito vigorosamente condenado pelos anglo-saxões, e nos dicionários e enciclopédias ingleses de época consultados (Rees’Cyclopaedia, de 1819, e The Encyclopaedia Britannica, de 1888) não constam os termos spitoon ou cuspidor, e tampouco chadou ou leys jar. O manual The habits of good society, de 1859, considera ser este um costume repugnante e “ruim para a saúde”, na contramão do que a esta altura se praticava abertamente na França e outros países da Europa Ocidental.

Ina von Binzer, a preceptora alemã que viveu entre nós alguns anos no século XIX, queixava-se com freqüência e muita repugnância, em cartas à sua amiga alemã, dos “pretos” que tanto no centro do Rio de Janeiro como nas fazendas do interior viviam fumando e cuspindo continuamente no chão (1991, pp. 54 e 60). Em uma delas, datada de 20 de março de 1882, contava que “o brasileiro considera a abundante salivação em volta de si como um fato inofensivo, possuindo em suas casas um completo equipamento para esse fim: dos dois lados dos seus incômodos sofás de palhinha vêem-se as mais lindas e coloridas escarradeiras, sempre aos pares, tão grandes e vistosas que a princípio pensei que fossem vasos para flores...” (idem, pp. 73-4).

Em sua vasta obra, Machado de Assis não faz referência alguma a este hábito entre seus personagens. Apenas registra, no conto “Almas Agradecidas” publicado em março de 1871, no Jornal das Famílias (1944b, p. 129), a presença de uma escarradeira no gabinete de Magalhães, suposto suicida; nela seu amigo Oliveira despejou o conteúdo de um copo, que acreditava ser o veneno a ser por ele ingerido, o que a confirma como uma peça sempre presente mobiliário dos gabinetes masculinos da década de 1870.

No Brasil, esses utensílios parecem ter se mantido por mais algum tempo, após desativados na Europa, e no início do século XX ainda podiam ser encontrados em uso nas residências. Pedro Nava, nascido em 1903, em Minas Gerais, descrevendo sua casa de infância em Baú de ossos (1947, pp. 235 e 253), assim se refere: “Da sala de visitas guardei a arrumação patriarcal do sofá ladeado pelas cadeiras de braço e pelas escarradeiras litúrgicas de louça florida”, o que significa que ainda na primeira década do século XX as escarradeiras estavam ativas, presentes nas salas de visitas mineiras. Entrevistas pessoais com octogenários e nonagenários ainda lúcidos confirmam essa perduração.

Cuspideiras foram também utilizadas em espaços públicos, como igrejas, e nestes casos consistiam em caixas rasas de madeira, geralmente forradas com areia ou serragem, para uso dos fiéis. Esta prática adentrou o século XX e até hoje tais caixas ainda podem ser vistas em cinemas, teatros, sanitários públicos, museus e outros locais, com a função de recolher restos de cigarros, lixo miúdo etc., ou então redesenhadas, com formas e materiais modernos.

Originários da China, portanto, esses antigos artefatos de louça destinados a aparar matérias cuspidas, fossem elas caroços, vômitos ou quaisquer outras, foram adotados na Europa Ocidental no século XVIII. Suas formas foram readaptadas, assumindo um perfil morfológico muito semelhante ao dos urinóis, suas dimensões foram ampliadas, e com um novo design foram maciçamente introduzidos nas residências do século XIX, com a função específica de receber humores mucosos. Excepcionalmente foram reproduzidos em sua forma original, ao que parece relacionados a funções medicinais.

Ao entrar em desuso a prática de cuspir, essas peças perderam a função e passaram a ser utilizadas simplesmente como adornos, tornando-se, ao longo do século XX, muito disputadas e valorizadas no mercado de antigüidades.

No que diz respeito à excreção pela cavidade nasal, aparecem nos registros arqueológicos vestígios das chamadas tabaqueiras, pequenas caixas destinadas a conter tabaco em pó. Normalmente feitas em metais nobres, como ouro e prata, em porcelana, faiança fina, chifre, madeira, tartaruga, osso etc., demonstram a sofisticação do hábito de se aspirar o rapé (do francês râpé = raspado), uma prática social freqüente e também muito elegante à época, que associamos da mesma forma ao humorismo hipocrático. De acordo com Brancante (1981, p. 189), a Manufatura de Porcelanas Meissen, próxima a Dresden, fabricava grandes quantidades de caixas de rapé desde o século anterior. Sua finalidade básica era a de provocar prazerosos espirros que desobstruíssem as vias respiratórias, favorecendo dessa forma a eliminação dos humores mucosos.

Uma das mais requintadas e delicadas formas de consumo do tabaco, o rapé era obtido, no século XIX, através de um lento e dispendioso processo de fabricação, que durava de 18 a vinte meses. Começava pela seleção das folhas, que em seguida eram molhadas, picadas e levadas a fermentar em temperaturas elevadas. Uma vez fermentada, a massa era reduzida a pó, peneirada, quando então se selecionavam os grãos mais finos, desprezando-se os mais grosseiros, novamente molhada com água salgada e posta a fermentar pela segunda vez. Ao final, o tabaco pulverizado era embalado em tonéis e distribuído aos entrepostos para comercialização. Essas sucessivas fermentações é que garantiam ao pó escuro o sabor pronunciado, o aroma ativo e a força, ou seja, a capacidade de estimular fortemente as mucosas nasais, principais atributos para os que desejavam “tabaquear o bom rapé”. O pó ou “areia preta” produzido no Brasil era basicamente proveniente da Bahia, embora os periódicos anunciassem fábricas e depósitos também no Rio de Janeiro e em Niterói, com as marcas Princesa da Bahia, Princesa do Rio, Princesa da Guanabara, Princesa Carioca, entre outras. Segundo Lobo (1978, p. 192), o Relatório geral e Relatório dos júris da Exposição Nacional de 1861 assinala a existência de três fábricas de rapé estabelecidas no Rio de Janeiro a essa época. Os de melhor qualidade eram importados da Europa.

Apesar de se tratar de uma prática disseminada em inúmeros países, era tida como perniciosa, especialmente pelos ingleses, que evitavam abertamente o tabaco em todas as suas variedades. A Ree’s Cyclopaedia, de 1819, chegava mesmo a responsabilizar o rapé pela formação de pólipos no esôfago, que acabavam por matar o usuário, aniquilando-o pela fome, uma vez que lhe tirava a capacidade de engolir.

Machado de Assis referiu-se a ela em vários romances, contos e crônicas, fazendo de muitos de seus personagens, sempre masculinos, consumidores habituais do confortador rapé. Muito ricas, as diversas referências permitem reconstituir os gestos, o ritual e, em especial, as circunstâncias em que ele era consumido.1

Em “O caminho de Damasco” (publicado no Jornal das Famílias, novembro de 1871, 1944b, pp. 145-7), enquanto duelava no gamão, o padre Barroso, assoando-se ruidosamente com um lenço encarnado, resmungava: “Isto sem rapé não vai.” Ao que seu parceiro, Silvestre Aguiar, retrucava. “Não sei que descuido foi este meu de não ter comprado ontem.” Salvos ambos pela chegada do médico da família, precipitaram-se aflitos. “Chega a propósito, disse o padre. Traz a caixa?” Diante da resposta positiva, respondeu: ”Graças a Deus; venha de lá uma pitada.” “Duas, duas”, emendou Silvestre. ... Ambos os gamonistas esfregaram os dedos no lenço, e sacaram da boceta do dr. Marques duas grossas pitadas. O padre inseria a sua em ambas as ventas, e com o lenço sacudia o pó que lhe caíra na camisa, enquanto o comendador, carregando com o dedo polegar na venta direita, introduzia toda a pitada na venta esquerda.”

Apesar de limitada, na crônica machadiana, ao universo masculino, a aspiração do rapé era compulsivamente praticada tanto por homens quanto por mulheres, em casa e na rua, em lugares públicos e privados, seculares e sagrados, em áreas urbanas e rurais, como se constata no diário de Helena Morley (1971, p. 151), filha de pai inglês, no ano de 1893:

“Há na família um vício de todos e eu também gosto, e estou aflita para crescer e tomá-lo, apesar de meu pai dizer que é feio. É o rapé. Quando eu estou endefluxada com o nariz entupido e mamãe me dá uma pitada, eu gosto muito. Acho também bonito uma pessoa encontrar com outra, abrir a caixa de rapé e oferecer uma pitada. Na família só Dindinha e tio Geraldo têm caixa de rapé, de ouro. A de tio Conrado é de prata. A dos outros é de uma coisa preta parecendo chifre.
Já notei que Dindinha não perde ocasião de oferecer uma pitada aos outros só para mostrar a caixa de ouro e por isso quase a perdeu ontem na bênção do Santíssimo. Ela tirou-a para tomar uma pitada. Se havia de guardá-la no bolso, pôs no chão. Na hora de levantar o Santíssimo, quando Dindinha estava muito contrita batendo no peito, uma mulher que estava perto jogou um lenço em cima e puxou-a para si, sem Dindinha dar por fé. Acabada a bênção, nós já íamos entrando na casa de tio Geraldo, quando chegou Juca Boi com ela na mão e entregou a Dindinha. Ele tinha visto a mulher fazer aquilo e tomou-a para entregar.
Já pedi a Dindinha me deixar de herança a caixa de ouro porque sei que vou tomar rapé como as tias. Mamãe e minhas tias outro dia ficaram pasmas da minha inclinação por estas coisas de entupir o nariz. Estávamos todos na chácara e eu perto de vovó, na pedreira. Seu Procópio ia passando, e sabendo que vovó sempre gosta de uma pitada de pó, ele tirou do bolso a cornicha de chifre, abriu a tampa com um estouro e ofereceu a vovó uma pitada. Eu também pedi uma e espirrei muito, porque rolão é mais forte que rapé.
Meu pai sempre diz que é feio ter vício de fumo e que meu avô não admitia nem cigarro. Por isso minhas tias inglesas não tomam rapé, mas ele mesmo toma sua pitada de vez em quando. Eu já disse a meu pai que vou tomar quando crescer e não acho que faça mal. O vício que eu acho horrível é mascar fumo como as negras da chácara. Generosa está cozinhando está mascando fumo e cuspindo para os lados. Faz o estômago da gente embrulhar. Não sei como vovó consente.”
   
Weber (1989, pp. 43-4) também faz referência ao seu consumo por mulheres, na França, a pretexto de purificar a cabeça. Lá, no entanto, entrou em desuso ao final do século, por ser considerado pouco higiênico e antiquado, não obstante estar em voga o hábito de mascar o fumo, tão ou mais anti-higiênico, como observou Helena Morley.

Além do uso social, o rapé era empregado, desde o século anterior, também para fins especificamente medicinais. Ao discorrer sobre a “sufocação da madre” (útero), Roma (1726, p. 299) recomendava que em muito ajudava “provocar espirros, como diz Hipócrates, e confirma Galeno, o que se fará aplicando aos narizes pós de pimenta, de mostarda, civandilha e de tabaco”. No Oitocentos, as fontes consultadas mostram-no ora aliviando dores de dente, ora atuando como poderoso descongestionante.

Os espirros provocados e voluptuosamente desfrutados pelos rapezistas requeriam o uso contínuo e anti-higiênico dos chamados “lenços de tabaco”, para assoar o copioso fluxo nasal. Gilberto Freyre (1948, p. 234) descreve-os como sendo de cores vivas e escandalosas, com muitas ramagens, o que é confirmado por Machado de Assis, em ‘O relógio de ouro’ (1942, p. 212): o sr. Meirelles limpava sua testa com um grande lenço encarnado, assim como o padre Barroso, já referido, se assoava, ao fungar o rapé, com um da mesma tonalidade. Só posteriormente, por influência dos ingleses, esses lenços berrantes foram substituídos pelos brancos.

Texto de Tânia Andrade Lima em “Humores e Odores: Ordem Corporal e Ordem Social no Rio de Janeiro, Século XIX”. publicado em "História, Ciências, Saúde", Manguinhos. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, vol.II, nº3, nov.1995 — fev.1996 — pp.66-74. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

1 Ver ‘As bodas de Luís Duarte’ (1942, p. 99); ‘O empréstimo’ (1944a, pp. 235-6); Helena (1946, pp. 86-7); ‘Encher tempo’ (1944b, pp. 417-9); ‘Quem conta um conto...’, ‘Luiz Soares’, ‘Um homem superior’, ‘História de uma fita azul’ e ‘Dívida extinta’ (1944g, pp. 75-9, 89, 99, 252-3, 331-4, respectivamente); ‘Sem olhos’, ‘Um almoço’, ‘O imortal’ (1944f, pp. 100, 131 e 236, respectivamente)



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