ANCHIETA - DOS COSTUMES DO BRASIL EM 1584


Desde o rio do Maranhão, que está além de Pernambuco para o norte, até a terra dos carijós, que se estende para o sul desde a Alagoa dos Patos até perto do rio que chamam de Martim Afonso, em que pode haver 800 léguas de costas, em todo o sertão dela que se estenderá com 200 ou 300 léguas, tirando o dos carijós, que é muito maior e chega até às serras do Peru, há uma só língua.     Todos estes ordinariamente andam nus, ainda que os carijós e alguns dali para avante, por ser terra muito fria, usam de peles de veados e outros animais que matam e comem, e as mulheres fazem umas como mantas de algodão que cobrem meio corpo.      Todos os da costa que têm uma mesma língua comem carne humana, posto que alguns em particular nunca comeram e têm grandíssimo nojo dela. Entre os tapuias se acham muitas nações que não a comem, nem matam os inimigos senão no conflito da guerra.

A maior honra que têm é tomar algum contrário na guerra e disto fazem mais caso que de matar, porque muitos dos que os tomam os dão a matar a outros, para que fiquem com algum nome, o qual tomam de novo quando os matam, e tantos nomes têm quantos inimigos mataram, posto que os mais honrados e estimados e tidos por mais valentes são os que os tomam. Naturalmente são inclinados a matar, mas não são cruéis; porque ordinariamente nenhum tormento dão aos inimigos, porque se os não matam no conflito da guerra, depois tratam-os muito bem, e contentam-se com lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito mais fácil, porque às vezes os matam de uma pancada ou ao menos com ela perdem logo os sentidos. Se de alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com o exemplo dos portugueses e franceses.

Casamentos de ordinário não celebram entre si e assim um tem três e quatro mulheres, posto que muitos não têm mais do que uma só e, se é grande principal e valente, tem dez, doze e vinte. Tomam umas e deixam outras: verdade é que em muitos há verdadeiros matrimônios in lege naturæ, e assim muitos mancebos até que casem, por ordem e conceito de seus pais servem ao sogro ou sogra que há de ser, antes que lhe dêem a filha, e assim quem tem mais filhas é mais honrado pelos genros que com elas adquirem, que são sempre muito sujeitos a seus sogros e cunhados, os quais depois dos pais têm grandíssimo poder sobre as irmãs e muito particular amor, como elas também toda a sujeição e amor aos irmãos com toda a honestidade. Todos os filhos e filhas de irmãos têm por filhos e assim os chamam; e desta maneira um homem de 50 anos chama pai a um menino de um dia, por ser irmão de seu pai e por esta ordem tem grande reverência a todas as mulheres que vêm pela linha dos machos, não casando com elas de nenhuma maneira, ainda que sejam fora do quarto grau. Às sobrinhas, filhas de irmãos e deinceps, têm por verdadeiras mulheres, e comumente casam com elas, sine discrimine.

Os de uma nação são muito pacíficos entre si, e de maravilha pelejam senão de palavra e às punhadas, e se alguma hora com a quentura demasiada do vinho vai a cousa muito avante, as mulheres logo lhes escondem as flechas e outras armas, até os tições de fogo, para que não se matem e firam, porque de uma morte destas às vezes acontece dividir-se uma nação com guerra civil, e matarem-se comerem-se e destruírem-se, como aconteceu no Rio de Janeiro.

São muito dados ao vinho, o qual fazem das raízes da mandioca que comem, e de milho e outras frutas. Este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais. Deste enchem muitos e grandes potes, que somente servem disso e depois de ferver dois dias o bebem quase quente, porque assim não lhes faz tanto mal nem os embebeda tanto, ainda que muitos deles, principalmente os velhos, por muito que bebem, de maravilha perdem o siso, ficam somente quentes e alegres. Com o vinho das frutas que é muito forte se embebedam muito e perdem o siso, mas deste bebem pouco, e somente o tempo que elas duram; mas o vinho comum das raízes e milho bebem tanto que às vezes andam dois dias com suas noites bebendo, e às vezes mais, principalmente nas matanças de contrários e todo este tempo cantando e bailando sem cansar nem dormir. Este vinho comumente o fazem grosso e basto, porque juntamente lhes serve de mantimento e quando bebem nenhuma outra cousa comem. E da mesma maneira quando comem não curam de ter vinho nem água para beber, nem têm trabalho nisso e algumas vezes acabando de comer, se não têm água em casa, se vão à fonte beber, e às vezes de noite com um tição de fogo na mão, principalmente os que não têm mulher, mãe, ou irmã que lhes traga água. E nisto nenhum trabalho têm, e quase não fazem diferença de boa ou má água, com qualquer se contentam. Os moços pequenos não bebem aqueles vinhos, e quando algum mancebo há de começar a beber, fazem-lhe grandes festas, empenando-os e pintando-os como que então começam a ser homens.

Nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões cuidam que são Deus, mas nem por isso lhes fazem honra alguma, nem comumente têm ídolos nem sortes, nem comunicação com o demônio, posto que têm medo dele, porque às vezes os mata nos matos a pancadas, ou nos rios, e para que não lhes faça mal, em alguns lugares medonhos e infamados disso, quando passam por eles, lhe deixam alguma flecha ou apenas outra cousa como por oferta.

O que mais crêem e de que lhes nasce muito mal é que em alguns tempos alguns de seus feiticeiros, que chamam Pagés, inventam uns bailes e cantares novos, de que estes índios são mui amigos, e entram com eles por toda a terra, e fazem ocupar os índios em beber e bailar todo o dia e noite, sem cuidado de fazerem mantimentos, e com isto sem tem destruído muita gente desta. Cada um destes feiticeiros (a que também chamam santidade) busca uma invenção com que lhe parece que ganhará mais, porque todo este é seu intento, e assim um vem dizendo que o mantimento há de crescer por si, sem fazerem plantados, e juntamente com as caças do mato se lhes hão de vir a meter em casa. Outros dizem que as velhas se hão de tornar moças e para isso fazem lavatório de algumas ervas com que levam; outros dizem que os que as não receberem se hão de tornar em pássaros e outras invenções semelhantes. Além disto dizem que têm um espírito dentro de si, com o qual podem matar, e com isto metem medo e fazem muitos discípulos comunicando este seu espírito a outros com os defumar e assoprar, e às vezes é isto de maneira que o que recebe o tal espírito treme e sua grandissimamente. De modo que bem se pode crer que ali particularmente obra o demônio e entre neles, posto que comumente é ruindade, e tudo por lhes darem os índios o que têm, como sempre fazem, ainda que muitos não crêem cousa nenhuma daquelas, e sabem que são mentiras.

Estes também costumam pintar uns cabaços com olhos e boca e os têm com muita veneração escondidos em uma casa escura para que aí vão os índios a levar suas ofertas.

Todas estas invenções por um vocábulo geral chamam “caraíba”, que quer dizer como cousa santa, ou sobrenatural; e por esta causa puseram este nome aos portugueses, logo quando vieram, tendo-os por cousa grande, como do outro mundo, por virem de tão longe por cima das águas. Estes mesmos feiticeiros e outros que não chegam a tanto costumam esfregar, chupar e defumar os doentes nas partes que têm lesas e dizem que com isto os saram e disto há muito uso, porque com o desejo da saúde muitos se lhes dão a chupar, posto que não os crêem. Outros agouros e abusões têm em pássaros e em raízes e finalmente em tudo, que são infinitos, mas tudo é cousa de pouco momento.

Têm alguma notícia do dilúvio, mas muito confusa, por lhes ficar de mão em mão dos maiores e contam a história de diversas maneiras. Também lhes ficou dos antigos notícias de uns dois homens que andavam entre eles, um bom e outro mau, ao bom chamavam Çumé, que deve de ser o apóstolo São Tomé, e este dizem que lhes fazia boas obras mas não se lembram em particular de nada. Em algumas partes se acham pegadas de homens impressas em pedra, máxime em São Vicente, onde no cabo de uma praia, em uma penedia mui rija, em que bate continuamente o mar, estão muitas pegadas, como de duas pessoas diferentes, umas maiores, outras menores que parecem frescas como de pés que vinham cheios de areia, mas se verá elas estão impressas na mesma pedra. Estas é possível que fossem deste Santo Apóstolo e algum seu discípulo.

O outro homem chamavam Maira, que dizem que lhes fazia mal e era contrário de Çumé; e por esta causa os que estão de guerra com os portugueses, lhes chamam Maira. Estes são os costumes mais de notar desta gente do Brasil, que para se fazer relação miudamente de todos era necessário um livro mui grande.

Texto de Padre Anchieta em "Notícia do Brasil". Série Leituras Brasileiras — Fundação Projeto Rondon — Ministério da Educação, pp. 8-11. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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