UM CAPUCHINHO E A NUDEZ DOS ÍNDIOS TUPINAMBÁS

.Não há nação, por mais bárbara que seja, que não tenha procurado, em dado momento, cobrir o corpo com vestimentas ou enfeites, a fim de esconder a nudez. Pois os tupinambás, por mais estranho que pareça, andam sempre nus como ao saírem do ventre materno; e não demonstram em absoluto a menor vergonha ou pudor.
Segundo as Escrituras, logo que os nossos primeiros pais comeram o fruto proibido, abriram-se os seus olhos e eles perceberam que estavam nus e lançaram mão de folhas de figueira para cobrir a nudez de que se pejavam.
Como se explica que os tupinambás, compartilhando a culpa de Adão e sendo herdeiros de seu pecado, não tenham herdado também a vergonha, conseqüência do pecado, como ocorreu com todas as nações do mundo?
Pode-se alegar, em sua defesa, que em virtude de ser velho costume seu viverem nus, já não sentem pudor ou vergonha de mostrar o corpo descoberto e o mostram com a mesma naturalidade que nós as mãos.
Eu direi entretanto que nossos pais só sentiram a vergonha e ocultaram sua nudez quando abriram os olhos, isto é, quando tiveram conhecimento do pecado e perceberam que estavam despidos do belo manto da justiça original. A vergonha provém, com efeito, da consciência da malícia do vício ou do pecado, e esta resulta do conhecimento da lei. Peccatum non cognovi, diz s. Paulo, nisi per legem. Como os maranhenses jamais tiveram conhecimento da lei, não podiam ter, tampouco, consciência da malícia do vício e do pecado; continuam com os olhos fechados em meio às mais profundas trevas do paganismo. Donde não terem vergonha de andar nus, sem nenhuma espécie de vestimenta para esconder a nudez.
Pensam muitos ser coisa detestável ver esse povo nu, e perigoso viver entre as índias, porquanto a nudez das mulheres e raparigas não pode deixar de constituir um objeto de atração, capaz de jogar quem as contempla no precipício do pecado.
Em verdade, tal costume é horrível, desonesto e brutal, porém o perigo é mais aparente do que real, e bem menos perigoso é ver a nudez das índias que os atrativos lúbricos das mundanas de França. São as índias tão modestas e discretas em sua nudez, que nelas não se notam movimentos, gestos, palavras, atos ou coisa alguma ofensivos ao olhar de quem as observa; ademais, muito ciosas da honestidade no casamento, nada fazem em público suscetível de causar escândalo. Se tivermos ainda em conta a deformidade habitual, até certo ponto repugnante, concluiremos que essa nudez não é em si atraente, ao contrário dos requebros, lubricidades e invenções das mulheres de nossa terra, que dão origem ao maior número de pecados mortais e arruínam mais almas do que as índias com sua nudez brutal e desprezível.
Índios e índias tornam-se tanto mais horríveis, quanto mais pintam o rosto e o corpo, na convicção de se embelezarem. Trazem alguns a face rajada de vermelho e negro; outros pintam apenas uma metade do corpo e do rosto e deixam a outra metade com sua cor natural. Outros cobrem o corpo inteiro de figuras, da cabeça aos joelhos, e assim ficam como se estivessem vestidos com uma roupa de Pantalon, de cetim preto estampado. Quanto às mãos e às pernas, pintam-nas com o suco do jenipapo.
Nem sempre entretanto andam pintados; assim o fazem quando querem. E são as raparigas que mais comumente o fazem, comprazendo-se em se pintar e enfeitar o corpo segundo sua fantasia. Nem sempre, tampouco, se pintam a si próprios; enfeitam-se e pintam-se uns aos outros. As raparigas, mais destras, é que se encarregam o mais das vezes de fazê-lo. E embora jamais tenham aprendido a pintar, são em verdade admiráveis os desenhos que fazem nos corpos.
Vê-se muitas vezes um rapaz de pé, com as mãos nas ancas e a seu lado uma rapariga ajoelhada ou de cócoras, com uma cuia, ou cabaça, feita da metade de um fruto, na qual se coloca a tinta. Munida de um pequeno talo de pindó à guisa de pincel, cobre o corpo do rapaz com riscos retos como se fossem feitos com régua; e procede tão habilmente quanto o faria um pintor.
Também se encontram mulheres segurando um espelho com a mão esquerda e com a outra manejando a pindó, e se pintando sozinhas o rosto com o mesmo embevecimento das nossas mulheres nas suas pinturas. Riscam com jenipapo as sobrancelhas, previamente arrancadas, e assim passam grande parte de sua existência, muito satisfeitas com tal mister.
Os maiores e mais valentes guerreiros, para se tornarem mais estimados pelos seus companheiros e temidos de seus inimigos, têm por hábito picar e tatuar figuras no corpo (assim como fazemos em nossas couraças) por meio de um pedaço do osso da canela de certos pássaros, que afiam como navalhas. Mostram-se extremamente corajosos, pois logo esfregam as incisões com tinta preta em pó, ou feita de suco de plantas, a qual se mistura ao sangue e se introduz nas cicatrizes, tornando indeléveis as figuras tatuadas. Entre os seis índios que trouxemos para a França, havia um tabajara assim tatuado desde as sobrancelhas até os joelhos mais ou menos.
Quando os homens da terra desejam mostrar-se elegantes, como nos dias de cauinagem, de matança dos prisioneiros ou escravos, de perfuração dos lábios de seus filhos, de partida para a guerra ou de outras solenidades, enfeitam-se com penas e outros adornos feitos de penas vermelhas, azuis, verdes, amarelas e de diversas cores vivas que sabem admiravelmente combinar. Misturam-nas a seu bel-prazer de modo a que as cores se valorizem mutuamente; arranjam-nas então e as ordenam artisticamente, prendendo-as umas às outras com um fio de algodão bem grosso, tecido, por dentro, à maneira de redes de pescar de malhas bem pequenas. Por fora, entretanto, todas essas belas e ricas penas se misturam e se arrumam com gosto, a ponto de causar admiração.
Fazem assim barretes a que dão o nome de acangaop ou acã açoiave e que usam nas solenidades. Outros, em vez desses barretes, enfeitam a cabeça com as pequeninas plumas do papo das araras, dos canindés, dos papagaios e outros pássaros. Acertam-nas habilmente em sua cabeleira, com um pouco de cera ou de resina, e assim parecem ter a cabeça coberta com um barrete redondo e multicor. Só tiram essas plumas quando cortam os cabelos. Reúnem-nas então, e as acomodam do melhor modo possível em torno de uma vareta, para lavá-las mais facilmente e tirar-lhes a gordura com aquele sabão a que já me referi. Depois de secas, guardam-nas tão cuidadosamente quanto as senhoras as jóias mais preciosas, a fim de as utilizar oportunamente.
Confeccionam da mesma forma seus frontais, a que chamam acangetar e que usam como diademas. E, em lugar de gola, andam com um colar de plumas, tecido como já disse, e a que denominam ajuacará.
Tudo isso é admirável, porém nada em comparação com seus mantos a quem chamam acoiave; são tecidos com as mais belas penas e descem até o meio das coxas e às vezes até os joelhos. Usam-nos de quando em quando, não porque tenham vergonha da nudez, mas por prazer; não para esconder o corpo, mas sim como adorno, e para se mostrarem mais belos em seus festins e solenidades.
Usam também uma espécie de liga que denominam tabacurá. É feita com fio de algodão maravilhosamente bem tecido e tão unido que parece de uma só peça. Tem forma de cordão ou de anel e mais ou menos dois dedos de comprimento. É enfeitada com belas penas de diversas cores. Põem-na em torno da perna no lugar em que se usa a liga, e para que se veja melhor usam duas, uma sobre a outra, deixando um pequeno espaço entre elas, o que faz com que pareçam um duplo cordão bem enfeitado.
As moças usam comumente semelhantes ligas, porém sem penas, feitas exclusivamente de fios de algodão.
Existe ainda outra espécie de ligas chamadas auai. São feitas como as precedentes, porém mais largas, e, em vez de penas, com fios de algodão retorcido, de um dedo de comprimento, ligando certos frutos do tamanho de nozes, de casca muito dura quando sêca. Costumam esvaziar esses frutos de seu conteúdo e enchê-los com pequenas pedras, ou ervilhas duras, de modo que assim se tornam barulhentos quando os índios dançam.
Fazem também braceletes a que chamam mapuí-cuai-chuare. São feitos com fios de algodão em torno do qual se colocam longas penas tiradas da cauda das araras. Costumam usar esses braceletes, em suas festas, um pouco acima do cotovelo, do mesmo modo que os cortesãos usam os presentes ou as armas de suas damas.
Possuem também grandes penachos em forma de ramalhetes, feitos com as maiores penas do avestruz e de outros pássaros; usam-nos apensos ao traseiro, pendurados numa cinta fixada em torno dos rins ou nas espáduas por meio de um cordão a tiracolo. Dão a esses penachos o nome de iandu-ave.
Encontram-se nas praias muitas conchas ou caramujos que quebram em pedacinhos e pulem, com pedras duras, muito habilidosamente, em círculo ou em quadrado ou mesmo em quadriláteros proporcionais uns aos outros. Furam os quadrados nos quatro ângulos e os amarram com um fio de algodão finíssimo à moda dos nossos joalheiros e ourives; ou os colam sobre uma rede com resina, e fabricam cintas e braceletes muito bonitos a que chamam mino.
É admirável vê-los polir e furar esses pedaços de conchas com a destreza que lhes é peculiar. Trabalham tão bem que suas cintas e seus braceletes parecem de madrepérola.
Com os pedaços redondos procedem de outro modo. Furam-nos no centro, enfiam-nos à maneira de rosários, para que as mulheres os usem ao pescoço e nos braços, em lugar dos colares ou braceletes de plumas. Assim fazem as damas francesas com as suas pérolas. Algumas índias usam tantos colares em torno do pescoço, que cobrem inteiramente o peito. Essas jóias são as mais preciosas; delas se servem como adorno e lhes dão o nome de boíre.
Também se enfeitam com rosários de contas de diversas cores, que muito apreciam, e que recebem dos franceses em troca de outras mercadorias.
Para enfeitar os filhos apanham caramujos, pulem-nos nas pedras, como já disse, e fazem pequenos braceletes a que chamam de nhaã, tão brancos e polidos como o marfim. Enrolam algumas vezes de três a quatro nos braços das crianças, ou em torno do pescoço como colares.
Esses são os mais belos adornos e enfeites dos índios tupinambás. Usam-nos, entretanto, somente como ornamentos, pois tanto homens como mulheres e crianças têm por hábito andar inteiramente nus.
Alguns, porém, usam atualmente roupas que os franceses lhes dão em troca de gêneros. É cômico vê-los assim vestidos, porquanto alguns usam apenas um chapéu, outros uma ceroula sem gibão nem barrete; outros apenas uma jaqueta até a cintura, como se fosse uma saia. Alguns ainda usam apenas a camisa e nada mais; mas existem alguns que se vestem completamente, se lhes dá na telha, o que não dura, porém, muito tempo, quando muito meio dia ou um dia inteiro. No dia seguinte, tudo abandonam e se põem nus.
É verdade que todos os homens casados, e principalmente os velhos, costumam em geral cobrir suas vergonhas com pedaços de pano vermelho ou azul, que prendem ao redor da cintura por um fio de algodão; o resto do pano cai-lhes até os joelhos ou o meio da perna, sendo tanto mais belos quanto mais baixo alcançam. Denominam essa espécie de adorno carajuve. Meninos e solteiros não o usam de modo nenhum. Somente os adolescentes se contentam com amarrar o prepúcio com um fio de algodão ou uma pequena folha de pindó.

Texto de Claude d’Abeville em "História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas". primeira edição de 1614,. tradução de Sérgio Milliet, Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte/São Paulo, 1975, excertos pp. 216-221.Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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