O PERCURSO DO GADO E A SUA COMERCIALIZAÇÃO NAS FEIRAS DO NORDESTE BRASILEIRO
Muito já se escreveu sobre a importância do gado para a ocupação territorial e para a fixação da população no interior do Nordeste, assim como para a origem de algumas cidades. Nas palavras de Câmara Cascudo: “os velhos ‘currais de gado’ foram os alicerces pivotantes das futuras cidades. As fazendas coincidem como denominadoras das regiões povoadas.” (Cascudo, 1970, p.84).
Sabemos que as primeiras estradas dos sertões do Nordeste foram os denominados “caminhos das boiadas”. Câmara Cascudo, ao falar dos caminhos das boiadas pelo interior do Nordeste, destaca duas estradas que “resistiram séculos”:
A Estrada das Boiadas, clássica, depois de També, limite de Pernambuco-Paraíba, pegava Mamanguape e trazia gadaria para os brejos, na divisão das vendas. A mais antiga das estradas partia a oeste do Espinharas, ribeira de Santa Rosa, Milagres, tocando depois na lagoa do Batalhão (Taperoá), seguia-se o rio, descendo a Borborema até Espinharas e daí a Patos, Piranhas (Pombal), Souza, São João do Rio do Peixe (um ramal recebia a contribuição de Cajazeiras) ia-se ao Ceará pelos Cariris Novos, Icó, Tauá, atingindo-se Crateús, inesquecível pelo encontro de centenas de vaqueiros que demandavam o Piauí.
(Cascudo, 1956, p.6).
Note-se que as estradas citadas pelo autor ligavam muitas cidades do interior paraibano, todas pertencentes à região semi-árida ou ao sertão paraibano, à área de pecuária. Esses caminhos que deram passagem ao gado propiciaram o surgimento de vilas e povoados. Conseqüentemente, algumas dessas nascentes cidades situadas em posições favoráveis, “tornavam-se ativos centros de comércio de gado.” Deste modo, escreve Elza Souza, “inúmeras cidades do interior tiveram sua origem em primitivas feiras, como Pedras de Fogo na Paraíba.” (Souza, 1975, p.172). Essas cidades tinham, além das feiras gerais, a sua feira de gado que podia ser de pequeno porte ou estar acoplada à feira geral, mas que igualmente ocorria uma vez por semana, no mesmo dia da feira. Os bois vendidos, nas feiras e mercados das cidades, eram aqueles selecionados durante as apartações, proporcionadas pelos fazendeiros da região. Irenêo Joffily, no ano de 1883, escreve uma crônica a respeito do município de Campina Grande, em que destaca o mercado de gado como um dos fatores responsáveis pela visível proeminência da cidade no contexto regional. A respeito desta cidade, redige o autor:
[...] é o primeiro mercado de gado, procurado por todos os negociantes e fazendeiros que partem desde as margens do Parnaíba, na Província do Piauí. Aqui estacionam eles parte do ano, recebendo boiadas e vendendo-as aos negociantes conterrâneos. O negócio de gado portanto liga esta cidade a todos os centros mais produtores da indústria pastoril nas províncias criadoras do norte do Império.” (Joffily, 1977, p..389).
Algumas cidades do interior do Nordeste tornaram-se conhecidas por causa das suas feiras de gado: Quixadá e Baturité, no Ceará; Itabaiana e Campina Grande, na Paraíba; Itambé, Goiana e Arcoverde, em Pernambuco; Feira de Santana, na Bahia, esta última sendo o maior centro comercial de gado da região.
Neil Strauch, em excursão realizada em 1948 ao Nordeste brasileiro, escreveu sobre as feiras de gado nas cidades de Feira de Santana (BA) e Arcoverde (PE). Esse autor observou que as maiores feiras se achavam situadas no contato do sertão com a zona da mata e do litoral e as feiras de gado, no Nordeste brasileiro, constituíam-se como uma forma de comércio tradicional, por ser “ainda uma exigência das condições da pecuária naquela região, sobretudo no sertão.” (Strauch, 1952, p.101).
Excetuando-se Salvador, o grande centro consumidor era Olinda – Recife, e para lá convergiam as estradas e as mercadorias provenientes dos sertões de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Nesse trajeto, a primeira feira de gado surgiu em Igaraçu – PE, que depois foi transferida para Goiana – PE. Sobre esse fato, encontramos referência na obra Viagens ao Nordeste do Brasil, escrita pelo viajante Henry Koster, ao percorrer terras de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte no início do século XIX. Koster, ao conhecer Igaraçú, afirma que a “sua prosperidade era devido antigamente a semanal feira do gado, que se reunia num plaino vizinho mas, há poucos anos, mudaram-na para os arredores de Goiana.” (Koster, 1942, p.79). Uma outra alusão a essa feira, encontra-se em uma outra descrição feita desta vez em 1839, por Daniel Kidder, um pastor norte-americano. Após viajar da Paraíba ao Recife, esse viajante relata sua excursão na obra Reminiscências de viagens e permanência no Brasil. Nesses escritos, Kidder registra a ocorrência de uma feira de gado, nas proximidades do “Guarassu”. Descreve o viajante:
[...]. Defronte à casa onde paramos, havia uma feira de gado que atraía grande número de curiosos. Parecia fazer parte da feira semanal que se realizava em Pedras de Fogo, localidade situada sete léguas além de Goiana. Nesse lugar havia forte afluência de povo às quartas e quintas-feiras, para comprar, vender e barganhar mercadorias que provinham do sertão ou para lá se destinavam. Para avaliar a quantidade de gente que aí se reunia basta dizer que, segundo nos informaram, é comum abaterem sessenta ou setenta bois para o seu sustento. (Kidder, 1839 In: Riedel, 1959, p.97).
Posteriormente, essa mesma feira de gado é novamente transportada para outro lugar, como bem explicou o historiador Irenêo Joffily: “recuando em seguida para a povoação de Pedras de Fogo nos limites da Paraíba com Pernambuco, onde permaneceu por muitos anos, até que, recuando sempre, foi ter às margens do rio Paraíba, onde é feita atualmente na cidade de Itabaiana, nas terças-feiras de cada semana.” (Joffily,1977, p.226). Esse acontecimento confirma-se nos escritos de Gustavo Barroso (1912). O referido autor, ao falar das transações comerciais do alto sertão cearense, explica que todas elas escoavam pelo Recife e outras cidades de Pernambuco. E ainda que o gado era conduzido à clássica e concorrida feira das Pedras de Fogo, nos limites de Paraíba com Pernambuco.
O criador cearense enviava suas boiadas à feira paraibana; vendia-as, e com o Produto comprava fazendas e objetos de fácil venda no sertão. Muitos fazendeiros levavam em pessoa os seus bois; outros – o que era mais corrente – tinham homens especialmente encarregados desse árduo serviço. (Barroso, 1912, p. 110).
Segundo Elza Souza, o comércio de gado no Nordeste era quase todo feito nas feiras, “que em dias certos da semana se realizavam em determinadas cidades e vilas que, por sua posição como entroncamento de estradas, pela proximidade dos mercados consumidores ou, então, das zonas de criação, apresentam-se como centros propícios a tal comércio.” (Souza, 1975, p. 174). A realização da feira de gado em cidades interioranas provocava intenso movimento naqueles espaços, normalmente de vida pacata e tranqüila. Descreve a autora supracitada:
Cidades pequenas, calmas e quietas, vivem elas horas de intensa agitação, movimento e balbúrdia nos dias de feira. Das fazendas de toda a vizinhança chegam as boiadas, guiadas pelos vaqueiros, às vezes pelo próprio fazendeiro ou, então, por homens contratados especialmente para tal fim e que no Ceará são chamados “passadores de gado”. [...]. E no dia da feira, o gado todo destinado à venda é reunido numa praça, às vezes aberta, outras vezes rodeada com cerca de arame farpado ou de madeira, que separam pequenas divisões para os diferentes tipos de gado. Embora nestas feiras predomine, geralmente, o gado bovino, também cavalos, burros, carneiros, cabras e porcos são aí vendidos. (Souza, 1975, p174-175).
Quando entrevistamos um antigo vaqueiro, atualmente habitante da pequena cidade de São José de Espinharas, no interior da Paraíba, ouvimos seu relato a respeito da feira de gado da cidade de Patos. Sr Antônio Sueca contou-nos que todas as semanas levava cerca de 100 bois da fazenda onde trabalhava para a feira de gado em Patos:
Levei muito aqui pra Patos. No tempo de Dr. Clóvis, né? Pra Patos, pra vender! Aí também foi o tempo que mudaram essas feira, né? Mudaram essas feiras de Patos...! Aqui tinha muito gado em Patos...! Hoje em dia não, acabou-se! Aqui tudo acabou-se...! Não matam mais um [...] hoje em dia! Não matam mais o que dá pra uma feira...! Antes era tudo pra feira! Pra feira de Patos! Hoje em dia, é cá fora, mas de primeiro era ali em São Sebastião, ficava mesmo dentro da rua. Na rua São Sebastião. Olhe, certo dava gado, dava... tinha feira que dava dois mil bois, mais de dois mil bois...! Tinha feira de lá de fora ficar qualhado de boi porque não cabia nos currais...! Era! Não cabia nos currais...! Era, dois repartido em um, era dois repartimentos de curral, num salão só. Grandão! E os outros eram tudo, aquele outro salão, tudo repartido de curraizinhos. Agora, os curraizinhos, cabia, cabia quase cem bois! Cada curral daquele...! Cada curral daquele cabia quase cem bois! Era! Cem bois! Nós levamos muitas boiadas de cem bois e cabia tudo num curral só! Toda semana! Aqui teve tempo olhe, do Doutor vender dois mil bois por ano! Dois mil bois! Por ano! E ficava boi aí, como diabo! Tinha dia que ficava aqueles bois novos, ele mandava tudinho! (Antônio Sueca, São José de Espinharas, 28/02/98).
As palavras do Sr. Antônio mostram bem a forma como se dava o abastecimento das cidades: através das suas áreas circunvizinhas. No exemplo citado por ele, a cidade de Patos era abastecida pela produção pecuária de áreas vizinhas, a exemplo do município de São José de Espinharas. Podemos também extrair desse depoimento a dinâmica existente nesses municípios interioranos, onde o incremento da feira de gado fomentava a feira semanal da cidade, bem como as atividades comerciais de um modo geral. Como Elza Souza, Câmara Cascudo e Gustavo Barroso afirmaram anteriormente, os vaqueiros, os sertanejos ou mesmo os fazendeiros, ao se dirigirem às feiras de gado, aproveitavam para abastecerem-se dos mais diversos artigos, nas feiras das cidades como também para “fazer uma consulta médica, comprar algo na farmácia, ou mesmo se consultar com o “farmacêutico”. Outros se encontram na barbearia e, enquanto o barbeiro ganha também o seu pão, conversam sobre os mais variados assuntos.” (Vieira, 1986, p.16). O dia da feira pode ser também o dia para ir ao correio ou mesmo receber notícias de parentes e amigos distantes através de terceiros e ainda o dia da conversa com os políticos locais, de se cobrar a “passagem da máquina na estrada” ou outros “favores” ainda não recebidos. Assim, apesar de acontecerem em locais distintos, havia uma sintonia entre as duas feiras, a de produtos agrícolas e a de animais. Mesmo os animais sendo expostos em currais, eram dispostos nas ruas da cidade, onde se aglutinavam os negociantes, os fazendeiros, ou simplesmente curiosos.
Percebemos, portanto, que as feiras de gado de maior destaque se encontravam na região semi-árida, caracterizada pela produção pecuária, ou nas “regiões de transição” entre o litoral e o sertão, como é o caso de Feira de Santana, na Bahia e Campina Grande, na Paraíba. Todavia, os “marchantes”, faziam-se presentes onde tivesse comércio de gado e eram eles os principais responsáveis pelo abastecimento de carne a abatedouros das cidades litorâneas que, por sua vez, correspondiam aos maiores centros consumidores da região.
O vaqueiro Antônio Sueca, ao qual nos referimos anteriormente, costumava semanalmente conduzir boiadas para a feira de Patos. Nessa feira, ele encontrava tanto negociantes, como animais de várias procedências. Nas palavras do Sr. Antônio Sueca:
Esse gado todo era pra açougue. Era! Campina vinha comprar aqui. Vinha comprar aqui. Porque de primeiro ia gado daqui pra Campina, né? Aí, ficou [...] não ia boi pra Campina. Vinham comprar aqui. Tinha muito marchante...! Olhe, tinha Giló, João Duré, Severino [...], tinha como diabo! Marchante! Vinha muito boi, como de Campina como do resto daqui de Cajazeiras, desse mundo todo vinha boi pra Patos. Era! (Antônio Sueca, São José de Espinharas, 29-02-98).
Atualmente, as boiadas já não abrem e nem traçam caminhos. Às vezes, encontramos algumas boiadas que transitam nas estradas, mas que fazem curtos percursos. No presente, o mais comum é que elas sejam transportadas em caminhões para os abatedouros e também para as feiras de gado. Nesse processo, há, por conseguinte, uma ruptura no processo de trabalho do vaqueiro que também era o condutor das boiadas.§§§ Com a introdução do caminhão-gaiola, o vaqueiro é destituído dessa antiga tarefa, que se expressa nas palavras do vaqueiro supracitado: “nada se compara ao prazer de se tanger o boi”. (Antônio Sueca, 20-02-99). Além disso, o tempo que se gastava para o transporte do gado era longo. Mais uma vez, faremos uso das memórias do vaqueiro Antônio Sueca para melhor elucidarmos essa idéia:
O gado gordo anda até depressa, mas o gado magro demora como diabo! Gado magro levamais de uma semana, agora o gordo tira depressa, numa semana ele está aqui. Porque gado não viaja muito não, agora... o maior [...] de gado é cinco léguas...! Gado anda devagar...! Muito devagar...! E deixando ele ir devagar, ele fura o mundo daquele jeito! Mas se apertar ele, aí ele anda pouco..., apertando ele é pior, e deixando ele andar devagarzinho, naquela pisada dele, olhe, uma só [...] nesse mundo...! (Antônio Sueca, São José de Espinharas, 29-02-98).
Com as grandes mudanças no sistema de transporte, o tempo de condução do gado, como de todas as mercadorias, foi reduzido, aumentando o lucro do fazendeiro e do negociante. Por outro lado, as feiras deixaram de ser o espaço do comércio de gado, até mesmo porque a facilidade com que se traz a carne já abatida em caminhões frigoríficos de terras mais longínquas provocou uma queda no comércio de gado regional. Aquela dinâmica das feiras de gado existente, até os anos cinqüenta do século XX, já não existe mais. Contudo, as feiras de gado semanais continuam acontecendo, constituindo-se em pontos que reúnem negócios e homens rurais na cidade.
Excerto do texto de Doralice Sátyro Maia com o título de "A Feira de Gado na Cidade: Encontros, Conversas e Negócios", publicado na Revista Formação n. 14 volume 1 (texto integral disponível em http://www4.fct.unesp.br/pos/geo/revista/artigos/Maia.pdf). Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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