AGRICULTURA E COLETA NA PRÉ-HISTÓRIA BRASILEIRA

Consultando obras de cronistas, principalmente do século XVI, pode-se observar que, embora a maioria dos grupos indígenas encontrados no Brasil na época do descobrimento já fizessem uso do cultivo, a coleta de vegetais ainda era extremamente importante em sua dieta alimentar. E que em momento algum a coleta foi totalmente substituída pelo cultivo, o que só ocorre após o aculturamento indígena pelos portugueses.

   
No entanto, para os europeus, a idéia da utilização da agricultura estava tão colada à evolução humana que o gosto pela coleta de vegetais em detrimento da intensificação do cultivo representava mais uma prova da ignorância indígena.
   
Mesmo muito depois do contato, já no século XIX, Saint-Hilaire relatava que no tempo da seca, os índios botocudos, para desagrado dos portugueses, espalhavam-se pelas matas para colher sapucaia e cocos, abandonando o trabalho nas fazendas.
   
Tudo isso reforça a observação de Lévi-Strauss a partir de dados etnográficos que revelam que, na América do Sul, a agricultura incipiente e a exploração de vegetais silvestres tendem antes a se associarem do que a se excluírem mutuamente. O que vem contra o proposto para outras partes do mundo onde a introdução das técnicas agrícolas teria surgido como uma grande invenção em função da existência de uma grande crise alimentar.
   
Tudo indica que, no Brasil, na pré-história, os vegetais silvestres permitiam um abastecimento tal, que as técnicas agrícolas foram adotadas apenas com uma função de complementar a dieta alimentar e não como uma solução a uma possível escassez de alimentos.
   
Embora existam, na África, evidências que podem ser relacionadas ao consumo de vegetais com uma antiguidade de 49.000 anos e seja aceito que o homem, muito antes de dispor do conhecimento da agricultura, garantia parte de sua dieta alimentar com a coleta de vegetais silvestres, apenas recentemente a arqueologia americana tem se preocupado com a atividade da coleta em larga escala e sua importância na estruturação das sociedades. Até o presente, a grande preocupação havia sido detectar o início da agricultura e as causas de sua implementação.
   
A pouca importância dada à atividade da coleta deve-se à baixa capacidade de preservação dos restos florísticos, mas também à idealização do pré-homem agricultor como caçador, já que a coleta era vista como uma atividade inferior ou mesmo uma atividade feminina, o que na história dos "homens" foi sempre menosprezada.
   
No ano de 1968 realizou-se na cidade de Chicago, nos Estados Unidos, uma reunião científica intitulada Men the Hunter (O homem, o caçador). Embora a temática fosse a caça, foi constatado que em sociedades indígenas atuais, apesar de seus indivíduos se considerarem caçadores, a coleta de vegetais era responsável por mais de 60% da dieta alimentar.

A passagem do caçador\coletor para o agricultor

A intensificação da coleta de vegetais normalmente é associada às transformações ambientais ocorridas na era neotérmica, iniciada há dez ou doze mil anos, quando o ambiente adquiriu as características atuais. No hemisfério norte, esse período é bem definido pelo momento em que as geleiras continentais deram início a sua regressão final, havendo também um lento e desigual aumento da temperatura, o que fez com que as florestas invadissem as pastagens das renas, caça predominante no paleolítico, obrigando grupos pré-históricos a desenvolverem novas modalidades adaptativas. Na Europa, o impacto dessas modificações ambientais na subsistência e tecnologia, deu origem às culturas mesolíticas.
   
De maneira geral, o mesolítico é definido como um período de transição, quando grupos de caçadores especializados são obrigados a diversificar sua dieta alimentar em função do escasseamento da megafauna. É também caracterizado como um período de crise, a qual só seria sanada pela descoberta da agricultura.
   
Nas Américas, relacionado a esse período intermediário entre caçadores/coletores e agricultores, temos o arcaico, que além de não possuir uma indústria de microlíticos (lâminas de pedra utilizadas para cortar), não é considerado como um período de crise alimentar, pois a escassez da caça de grande porte foi contornada pela intensificação da coleta de moluscos e vegetais.
   
É na Mesoamérica, no vale de Tehuacán, onde pode ser observada a passagem de grupos arcaicos para agricultores. Inicialmente, no VIII milênio a.C., esse vale era ocupado por pequenos grupos cuja economia baseava-se na caça e na coleta.
Posteriormente, entre 7200 e 5200 a.C., os habitantes do vale passaram a ter sua dieta baseada, principalmente, em plantas selvagens, tendo a caça um pequeno papel na economia. Nessa época, apareceram as primeiras plantas cultivadas, a abóbora e a pimenta. Mais tarde, na fase Coxcatlán (entre 5200 e 3400 a.C.),a população torna-se semi-sedentária e a coleta ainda é maior do que o cultivo, porém há um acréscimo nos elementos cultivados com a introdução do milho, outra espécie de abóbora e uma espécie de feijão. Entre 3400 e 2500 a.C., o milho passou a ser o elemento mais cultivado, porém a coleta ainda era mais importante do que o cultivo. Apenas entre 2500 e 1900 a.C. os produtos cultivados passaram a predominar na alimentação. Nessa época apareceu a primeira cerâmica, praticamente cinco mil anos depois do início do cultivo.
   
Acredita-se que, no Brasil, antes da introdução das técnicas de cultivo, teria existido um período no qual a coleta era extremamente importante, havendo um conhecimento intenso sobre os vegetais, já existindo inclusive algumas experimentações, incentivadas não só pela própria capacidade de invenção inerente à raça humana, como também por causas acidentais, pois, a partir da criação de técnicas de processamento, os vegetais passaram a ser trazidos às habitações. Em conseqüência, suas sobras (sementes, galhos) germinaram acidentalmente nas proximidades.
   
Existem informações sobre acumulações naturais de vegetais muito consumidos na pré-história, à volta dos assentamentos de grupos caçadores coletores. No litoral do Estado do Rio de Janeiro é bastante comum encontrar pés de pitanga (Eugenia pitanga) próximo a sítios arqueológicos, como também um coquinho chamado vulgarmente de guriri ou buri(Polyandrococos caldescens), muito apreciado pelos indígenas brasileiros.
   
Uma coleta planejada poderia ter sido também uma forma de domesticação de plantas, caso existisse um remanejamento de vegetais silvestres. Como exemplo desta atividade, temos o caso dos caiapós atuais, que costumam transportar elementos silvestres para as margens de trilhas que costumam percorrer certas épocas do ano, garantindo seu abastecimento durante o trajeto. Essas trilhas chegam a se estender a 500km. Numa só trilha de 3km entre aldeias foram identificadas 1.500 plantas medicinais e 5.500 plantas alimentícias. Infelizmente, este tipo de atividade dificilmente seria identificada nos sítios arqueológicos.

A coleta de vegetais no Brasil e sua influência no desenvolvimento da experimentação da domesticação de plantas

No Brasil, a ampliação da atividade da coleta deu início a um processo de sedentarização que fez com que vegetais trazidos para os assentamentos para processamento se convertessem em hortas acidentais. estas teriam permitido a observação e a experimentação com o cultivo muito antes de serem identificadas, pelos arqueólogos, as primeiras evidências da atividade de cultivo.
   
Dada a umidade do clima, são poucos os vestígios de vegetais encontrados nos sítios arqueológicos brasileiros. Nos sítios localizados no litoral é que poderemos encontrar mais dados sobre a dieta alimentar, pois além de terem sido objeto de um grande número de pesquisas arqueológicas, essas ocupações são características por apresentarem grande quantidade de restos alimentares, como restos de coquinhos calcinados. Também é comum a presença de quebra-coquinhos e instrumentos para moer.

Os mais conhecidos instrumentos para moer encontrados nos sítios arqueológicos são os almofarizes, as mãos de mó e os quebra-coquinhos. Os almofarizes são blocos de pedra, normalmente seixos grandes, onde aparece uma reentrância polida ou picoteada na qual era moído o alimento. Como esses instrumentos apareceram muito antes dos primeiros indícios de cultivo, não se sabe ainda que vegetais seriam processados. As mãos de mó são peças cilíndricas ou redondas utilizadas para macerar o alimento. Os quebra-coquinhos são seixos ou blocos menores do que os almofarizes, com pequenas mossas no centro.
   
Além dos instrumentos de pedra, as valvas de moluscos trabalhadas ou portadoras de desgaste encontradas em sítios arqueológicos também podem ser associadas ao processamento de vegetais. Gabriel Soares de Sousa relata sua utilização por indígenas para rasparem mandioca. Essa utilização também foi observada entre índios do Alto Xingu.
   
Infelizmente ainda é difícil a identificação dos restos de coquinhos encontrados nos sítios arqueológicos, porém desta relação já foi possível a identificação de restos de “jeraivá” ou “jerahuva”, provavelmente do coqueiro jerivá (Arecastrum romanzoffianum), de “iri” ou “airi”, brejaúna (Astrocaryum auri) e de frutos de palmeiras do gênero Attalea. Ao mesmo tempo, foram encontrados, no sítio Piaçaguera, no estado de São Paulo, restos de um coquinho utilizado pelos guaiaquis, grupo que atualmente habita a floresta do Paraguai, para a elaboração de uma farinha gomosa. Se essa utilização puder ser também confirmada na pré-história, saberemos, finalmente, sobre um dos materiais que teriam sido processados nos instrumentos encontrados nos sítios arqueológicos, como também poderá ser constatado o consumo da farinha vegetal antes da introdução do cultivo no Brasil.

Texto de Maria Cristina Tenório baseado em pesquisa desenvolvida no projeto “O aproveitamento ambiental das populações pré-históricas no estado do Rio de Janeiro“. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. 

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