A RELIGIÃO DOS ESCRAVOS


Todos os escravos no Brasil seguem a religião dos seus amos, e não obstante o abuso que existe na Igreja Católica dessa região, tais são os efeitos benéficos da religião cristã, que esses filhos adotivos são por ela melhorados em grau infinito, e o escravo que atende à estrita observância do cerimonial religioso é, invariavelmente, um servidor ótimo. Os africanos importados de Angola são batizados em lotes, antes que deixem suas praias, e quando chegam ao Brasil ensinam-lhes as orações da igreja e os deveres da religião à qual pertencem. O signo da Coroa Real que trazem no peito indica que já passaram pela cerimônia do batismo e que também os direitos reais foram pagos por eles.

Os negros importados de outras regiões da costa d’África chegam ao Brasil pagãos, e antes da cerimônia do batismo é preciso ensinar-lhes algumas orações, para o que é dado o prazo de um ano a um professor, depois do que é obrigado a apresentar o escravo na igreja paroquial. Essa lei não é estritamente cumprida quanto ao tempo mas não é, de forma alguma, esquecida. A religião do amo ensina que ele será extremamente culpado consentindo que seu escravo permaneça herético, e os brasileiros e portugueses têm profundo sentimento religioso para que negligenciem um dos mandamentos da igreja. O próprio escravo deseja ser cristão porque seus companheiros em cada rixa ou pequenina discussão com ele terminam seus insultos com oprobriosos epítetos, com o nome de pagão! O negro não-batizado sente que é um ser inferior e, mesmo não podendo calcular o valor que os brancos dão ao batismo, deseja que o estigma que o mancha seja lavado, ansioso de ser igual aos camaradas. Os africanos há longo tempo importados estão imbuídos do sentimento católico e parecem esquecer que já tiveram eles próprios posição semelhante. Os escravos não são convidados para o batismo. Seu ingresso na Igreja Católica é tratado como uma cousa em curso. Não são considerados como membros da sociedade mas como animais brutos, até que sejam levados em massa a confessar seus pecados e receber os sacramentos. Os escravos possuem sua Irmandade como as pessoas livres, e a ambição que empolga geralmente ao escravo é ser admitido numa dessas confrarias, e ser um dos oficiais ou diretores do conselho da sociedade. Às vezes, da própria soma de dinheiro que o escravo habilidoso está reunindo para comprar sua liberdade, retira um pouco para a ornamentação de um Santo, para ser elemento de importância, como doador na associação em que figura. Os negros têm uma invocação da Virgem (eu quase diria, Uma Virgem) que lhes é particularmente votada. Nossa Senhora do Rosário é mesmo, algumas vezes, pintada com a face e as mãos negras. É essa a maneira do escravo fixar sua atenção num objeto, tomando todo interesse, sem que lhe traga prejuízo pessoal que se reflita nos seus donos. Essas idéias mudam as lembranças dos costumes do seu país e o conduzem para o caminho de uma nova natureza, separando-o completamente das práticas de outrora. A eleição do rei do Congo, pelos indivíduos provindos desta região africana, parece tender a recordar-lhes as tradições da terra natal, mas os reis do Congo brasileiros invocam Nossa Senhora do Rosário e são vestidos como vestem os brancos. Conservam, é verdade, a dança do seu país, mas nessas festas são admitidos pretos africanos de outras nações, crioulos negros e mulatos, e todos dançam da mesma maneira e essas danças são mais danças nacionais no Brasil do que na África. O idioma português é falado por todos os escravos e sua própria linguagem é de uso tão diminuto que muitos a esquecem totalmente. Nenhum recurso compulsório foi posto em prática para resolvê-los a usar os hábitos dos seus senhores, mas suas idéias são insensivelmente levadas a imitá-los. Os amos, ao mesmo tempo, são influenciados e o superior e o subalterno se tornam interdependentes. Não duvido que o sistema de batizar os negros recém-importados provenha mais do primitivo fanatismo português do que de algum plano político, mas tem produzido efeitos benéficos. Os escravos se tornaram mais tratáveis, melhores homens e mulheres, servos mais obedientes. Ficaram sob a direção do clero, e embora não hajam retirado maiores vantagens com sua adesão ao grêmio da igreja, que é um grande elemento de poder sobre a escravaria.

A introdução da religião cristã entre os escravos não prestou maior serviço do que modificar o homem relativamente ao tratamento da mulher e à conduta dessas últimas. Um escritor de alta reputação nos assuntos das Índias Ocidentais, tratando da adoção da cerimônia do casamento entre os escravos nas colônias por ele conhecidas, disse que “seria absolutamente impraticável para qualquer bom resultado”, e ajunta que aqueles que o concebem como remédio contra a poligamia, “pela introdução entre a escravaria da lei matrimonial, estabelecida na Europa, ignora totalmente seus costumes, inclinações e superstições”. Não são unicamente os amos que consideram esse ato como de pouca importância e indigna de tomar-lhes tempo? [...] Todos os homens em estado de barbárie tratam as mulheres da mesma maneira. O mal não provém dessa raça humana, mas da situação amargurada em que ela se encontra reduzida. Por que então não se tenta melhorar e elevar os indivíduos que a compõem?

Os escravos no Brasil são regularmente casados de acordo com as fórmulas da Igreja Católica. Os proclamas são publicados como se fossem para pessoas livres. Tenho visto vários casais felizes (tão felizes quanto o podem ser os escravos) com grande número de filhos crescendo ao redor deles. Os senhores estimulam os casamentos entre seus escravos porque o número dos crioulos só pode aumentar por meio dessas uniões legais. O escravo não pode casar sem o consentimento do seu amo nem o vigário publica os banhos sem essa autorização formal. É igualmente permitido que os escravos casem com pessoas livres. Se a mulher é escrava o filho permanece cativo, mas se o homem é escravo e a mulher é forra, o filho é também livre. O escravo não pode casar sem saber as orações exigidas, feita a confissão e recebida a eucaristia. O senhor ou o feitor, percebendo a predileção dos escravos um pelo outro, e se certificando, determina o casamento e esse procedimento irregular é legítimo. Nas cidades há mais libertinagem entre os negros que em todas as outras classes humanas. O amor como sentimento é suposto existir somente nas sociedades que já atingiram um certo grau de civilização, mas essa conclusão não pode ser aceita sem, ao mesmo tempo, declararmos que os negros sejam incapazes de uma longa dedicação, sem supor também que a atração dos dois sexos é um mero desejo animal, incompatível com a simpatia. Essa espécie de afeição em que todo egoísmo pessoal é esquecido, indubitavelmente não pode existir nos seres humanos que estão em estado de barbárie. Mas, o negro pode ser dedicado a um objeto, preferindo-o a todos os demais. Esse sentimento existe e o posso afirmar. Tenho visto e sabido dos exemplos em que as punições e outros perigos foram afrontados por uma visita ao objeto amado; empreender jornadas noturnas depois de um dia de fadiga, mostrando a maior constância e a determinação de não deixar vencer o sentimento do seu coração.

A grande maioria masculina em muitas propriedades produz necessariamente perniciosas conseqüências. O suprimento devia ser tomado correspondidamente ao número de trabalhadores. As mulheres são mais sujeitas a má vida e os homens adquirem hábitos de inconstância. Se um número conveniente de mulheres for disposto nas propriedades e os escravos forem ensinados a portarem-se da maneira que se usa nos domínios bem-dirigidos, serão os negros tão corretos em sua conduta como outra qualquer espécie humana. Pode mesmo acontecer que a sua conduta seja menos irregular que de muitos homens que, tendo menos em que ocupar seu tempo, possuam educação infinitamente superior. Que homens e mulheres sejam licenciosos está na própria natureza humana e não é pecado peculiar à raça sofredora de que estou falando.

Texto de Henry Coster publicado em "A escravidão no Brasil". Série Leituras Brasileiras — Fundação Projeto Rondon — Ministério da Educação, pp. 4-6. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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