A MEDICINA DAS SANGRIAS


No século XVIII, de acordo com Luz da medicina (Roma, 1726, pp. 93 e 127), se considerava a existência de
dous remédios grandes na medicina, dos quais se não deve usar sem grande necessidade: os quais são sangria e purga. ... Comecemos pela sangria, como mais principal. O uso geral e universal da sangria é evacuar os humores, que estão dentro das veias; em primeiro lugar, diminuindo-os evacuando; em segundo lugar, movendo-os de um lugar para outro; em terceiro, refrescando e ventilando o corpo. Dentro das veias estão todos os quatro humores, sangue, fleuma, cólera e melancolia. Perguntará alguém se a sangria se faz a respeito de evacuar o sangue, se a respeito dos mais humores. Doutrina verdadeira é em toda a medicina, que na sobejidão de sangue se deve sangrar, e na sobejidão dos outros humores se há de purgar; porque nem o sangue se pode minorar purgando, nem o excesso dos humores alheios do sangue se pode evacuar todo pela sangria ... .
      Quando o sangue for muito dentro das veias, a que os médicos chamam pletora, há-se de evacuar copiosamente por sangria ... . Há outros modos de diminuir o sangue com menos eficácia, ou menos dispêndio, principalmente quando faltam forças ... : sanguessugas, a aperção das almorreimas (hemorróidas), a provocação dos meses (menstruação), as ventosas sarjadas e o sarrafar sem ventosas”.

      No século seguinte, em decorrência da forte penetração dessa teoria, as sangrias estavam de tal forma disseminadas que só na França os físicos chegaram a importar, em apenas um ano, cerca de quarenta milhões de sanguessugas para sua execução. Esses vermes anelídeos, aquáticos, vulgarmente conhecidos como “bichas”, tinham o corpo viscoso, escorregadio e elástico, provido de ventosas tanto na cavidade bucal quanto na extremidade posterior. A espécie comumente utilizada nas sangrias era a Hirudo medicinalis, com cerca de 15cm de comprimento. Sua boca, provida de lâminas serrilhadas nos bordos, fazia incisões na pele das vítimas para sugar-lhe o sangue, e a grande demanda desses invertebrados no século passado, seguida de uma forte rejeição, tornou-os relativamente raros hoje em dia.

   
 Eram conservadas em recipientes com água, recebendo pouco alimento, de modo a assegurar sua avidez no momento da aplicação. No local da sangria a pele era limpa, esfregando-se em seguida um pouco de leite ou açúcar, gema de ovo ou carne fresca, para estimular o processo de sucção. Eram fartamente anunciadas nos periódicos para venda ou aluguel, por atacado ou a varejo, tendo mais valor as maiores e mais novas, “chegadas pelo último paquete”, recém-importadas da Europa, tendo em vista que aqui não havia culturas.
      As sangrias podiam ser feitas nas artérias, veias ou vasos capilares. Nos dois primeiros, eram feitas com bisturis, lancetas ou flebótomos. No último, com lancetas, sanguessugas ou ventosas sarjadas. Os barbeiros, geralmente negros ou mulatos, eram os encarregados da sua execução, atendendo tanto em casa quanto nas chamadas “lojas” (ver descrição desses estabelecimentos em Santos Filho, 1947, I, p. 146). No Rio de Janeiro, o Almanaque Laemmert anunciava, em 1866, uma relação de 118 desses profissionais em atividade, fazendo escarificações, aplicando purgas e sangrias, sarjando, deitando bichas, o que dá bem uma medida da intensidade dessas práticas à época.
      Também na área rural a prática era freqüente: em Vassouras, conforme consta da conta apresentada pelo barbeiro Francisco José Martins a José Maria Frederico de Sousa Pinto, em 27 de março de 1856, foram aplicadas em sua família 287 sanguessugas em 25 ocasiões diferentes, realizadas duas sangrias, dois cortes de cabelo e uma extração de dentes, além do aluguel de 32 dessas bichas, cobrado em conta à parte (Stein, 1985, p. 229).
      Personagem de um dos mais famosos contos de Machado de Assis, “O alienista”, o barbeiro Porfírio vê crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas no hospício de Simão Bacamarte. À luz da magistral crônica de costumes machadiana, vomitórios e sangrias constituíam a terapêutica habitual  dos médicos em meados do século passado (1944e, p. 43), assim como suadouros (idem, p. 138; 1944d, p. 236), sendo os sangradores chamados até mesmo em casos de acidentes (1944c, p. 17). Porém, já em julho de 1888, outro personagem — o Conselheiro de Aires — se interrogava melancolicamente, atestando o declínio da prática (1944d, p. 108): “Que pode valer a loja de um barbeiro que eu via por esse tempo, com sanguessugas à porta, dentro de um grosso frasco de vidro com água e não sei que massa? Há muito que se não deitam bichas a doentes; elas, porém, cá estão no meu cérebro, abaixo e acima, como nos vidros. Era negócio dos barbeiros e dos farmacêuticos, creio; a sangria é que era só dos barbeiros. Também já não se sangra pessoa nenhuma. Costumes e instituições, tudo perece.”
      O vidro de sanguessugas mencionado era, aparentemente, presença constante em vitrinas, como mostra a reprodução de uma prateleira de farmácia do século XIX, feita por Stieb (1985, p. 4), onde ele pode ser visto ao lado de outras substâncias, medicamentos e reclames.
      Prática também freqüente era a aplicação das ventosas, pequenos vasos cônicos de vidro ou metal que, sobrepostos à pele, provocavam irritação local, com a finalidade de debelar inflamações ou congestões existentes em outra parte do corpo. Supunha-se que este efeito revulsivo derivava os humores de um ponto a outro do organismo, atenuando o processo inflamatório. Aplicadas igualmente pelos barbeiros, não se tem notícia da sua presença em lixos domésticos do século passado, decerto por se tratar de atividade desempenhada mais intensamente nas “lojas”. Debret dedicou duas pranchas a cirurgiões-barbeiros negros, sendo que uma delas reproduz a aplicação de ventosas em plena rua (1940). Não há referência à sua presença em registros arqueológicos até o momento.


Texto de Tânia Andrade Lima em “Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX”. In: História, ciências, saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, vol.II, nº3, nov.1995 — fev.1996 — pp.74-76. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



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