A GLÓRIA DOURADA DO AÇAFRÃO
Originária das montanhas da Asia Menor, essa magnífica especiaria é um prazer para os olhos e para o paladar.No planalto Navelli, uma região varrida pelos ventos nas cercanias de L'Aquila, bem agasalhados devido ao frio cortante do outono, os robustos camponeses dos Abruzzi caminham silenciosamente pelos campos, repetindo um ritual que tem 600 anos; colhem pequeninas flores cor de lilás, que surgem de manhãzinha no solo molhado. São flores do Crocus sativus, uma espécie de croco que contém açafrão, uma especiaria apreciada pelo homem desde tempos imemoriais.
Nas montanhas da Ásia Menor, de onde é originária, essa planta era usada para tingir os véus das noivas, e de suas flores teciam-se grinaldas, usadas pelos sacerdotes nas cerimônias. Sua utilização como medicamento está descrita nos papiros egípcios. Diz-se que o orador grego Isócrates perfumava seus travesseiros com açafrão, a fim de dormir melhor; foi trazido para o sul da França a bordo dos navios fenícios. Os romanos usavam-no para perfumar o ambiente nos teatros, temperar comida e como sombra para pálpebras. Com pas ar do tempo, viajantes e comerciantes alargaram seu prestígio ao norte da Africa; por volta do ano 900, os árabes já haviam trazido «Al Zafaran» para a península Ibérica, onde a planta se deu muito bem. O que torna a espécie sativus diferente dos outros membros da família dos crocos são os três importantíssimos estigmas de viva cor vermelha que se encontram dentro das flores pois eles são o próprio açafrão. Essa variedade de croco não se dá bem em qualquer lugar. A planta aprecia os solos gredosos da Espanha, da Grécia, do Irã e da Caxemira. O mau tempo, os solos pobres e as doenças das plantas, e mais recentemente as mudanças na economia, tornaram as tentativas de cultivo na Itália, na Inglaterra, na Alemanha e na Áustria verdadeiros fracassos. Ainda é cultivada por algun produtores na França, para seu uso particular.
Apesar disso, em meados do século XIII, os campos da Toscana estavam cobertos ele pequenas flores roxas, que alguns consideravam tão lucrativas quanto as vinhas. Os mercadores de tecidos de Prato, por exemplo, cujo poder estava em vias de expansão, precisavam cada vez de maior quantidade de açafrão para tingir suas lãs e linhos naquela tonalidade amarelo-avermelhada, que estava então muito na moda. Em Florença, o açafrão era usado para pagar dívidas, e como garantia de empréstimos. Um famoso livro de culinária da época, "Il Libro della Cucina del Secolo XIV"; continha 70 receitas nas quais o açafrão era utilizado; os farmacêuticos receitavam-no para doenças como olhos injetados, enjôo marítimo, cabelos espigados e, mais tarde, para dores do parto e epidemias.
Enquanto isso, no outro lado da Itália, os aquilanos começavam um florescente comércio com os alemães, que vinham ao sul comprar o açafrão para usá-lo na tintura de sedas e lãs. No início, era-lhes fornecido apenas um açafrão de qualidade inferior. Essa situação melhorou muito em finais do século XV, quando um padre dominicano chamado Santucci trouxe da Espanha para o planalto Navelli, onde havia nascido, bolbos saudáveis de croco.
O açafrão produzido nos Abruzzi era muito apreciado, e não se toleravam imitações. Um desgraçado comerciante alemão, Jobst Finderer, apanhado vendendo açafrão falsificado, foi queimádo na fogueira em 1344, juntamente com o falso açafrão. Na Lombardia, no século XIV, o açafrão deu um toque espetacular ao casamento de Violante Visconti com Lionel, duque de Clarence, em Milão. Os 30 pratos de carne e peixe do festim nupcial foram «dourados» com uma mistura de gema de ovo, açafrão, farinha e ouro de verdade.
Mais ao sul, em Florença, o açafrão era, de forma menos extravagante, empregado para pintar afrecos. Cennino Cennini, pintor e notável historiador da técnica da pintura, afirmava: "uma cor que é feita de uma especiaria chamada açafrão é o amarelo, trata-se de uma bela cor.Para se conseguir a mais perfeita cor possível, na pintura de um relvado, deve-se misturar um pouco de verdete com um pouco de açafrão." A família Visconti, de Milão, e os pintores florentinos da Renascença não foram os únicos a considerar de belo colorido o açafrão. Até mesmo as donas-de-casa inglesas, na Cornualha e no Devon, não resistiram a enfeitar certas sobremesas de aspecto pouco convidativo com açafrão; assim nasceu o bolo de açafrão. Segundo uma receita medieval, o pão de gengibre também ficava mais bonito se levasse uma generosa pitada dessa especiaria. Ontem como hoje, o cultivo do Crocus sativus nos Abruzzi segue um ciclo rígido. Durante a segunda quinzena de agosto, os pequenos bolbos brancos, dentro de suas cascas acastanhadas com cerca de 20 mm a 30 mm se medidos na transversal, são plantados quando ainda se encontram em hibernação. No devido tempo, surgem finas folhas verde-escuras. No fim de outubro, quando murcham as demais flores, surgem os botões cor de lilás. Os fazendeiros entram em ação. Eles devem ser colhidos em 20 dias, antes que a umidade e o frio dêem cabo deles. Quando a colheita acaba, a planta fica no solo, onde passa o inverno. O bolbo enterrado se subdivide, e por alturas de março surgem novos sinais de vida - umas folhinhas surgem do solo. Essa folhagem é cortada e usada para alimentar os animais. Quando agosto chega novamente as plantas são cuidadosamente retiradas do solo, com raízes e tudo, o «filho» é separado da «mãe». As raízes são cortadas, o invólucro exterior é descascado; os bolbos que não prestam são jogados fora. Como esses bolbos retiraram da terra os nutrientes necessários à produção de futuras plantas com até três flores cada uma, novos campos são necessários para o replantio, em meados de agosto. Os bolbos são levados de campo em campo, até que, cerca de 10 anos depois, os primeiros campos já estão novamente prontos para receber de volta essa plantinha cigana. Infelizmente, estão exaustos os solos dos campos de crocos da Toscana e da maioria das outras regiões italianas, e o cultivo no planalto Navelli, perto de L'Aquila, está atualmente reduzido a apenas uns seis hectares. No último verão, prejudicada pela seca, a colheita produziu apenas 50 kg, em comparação com os 4.500 kg da de 1830, que constituiu o maior recorde de sempre.
Sob a supervisão de Silvio Sarra, esse posto avançado dos Abruzzi mantém-se firme, com 74 produtores reunidos numa cooperativa em Civitaretenga, no planalto Navelli, desde 1971. Todos os dias, quando acaba a colheita, eles se reúnem em torno de mesas redondas, para arrancar os estigmas centrais das flores· Após cerca de uma hora, quando já juntaram uma boa quantidade no centro das mesas, pegam nos estigmas e colocam-nos numa peneira redonda, emoldurada de madeira e suspensa de um gancho sobre as brasas de uma lareira. Passadas cerca de 10 minutos, quando já estão completamente secos, os estigmas, transformados em filamentos, são colocados em pequenos vidros ou saquinhos, ou são triturados e o pó é metido em pacotes de 10 centigramas.
São necessárias de 120 mil a 180 mil flores para se obter um quilo de açafrão seco. Este é um ingrediente mágico num sem-número de receitas no mundo inteiro: pães doces na Inglaterra e na Suécia, pilafs exóticos na Índia e no Paquistão, um prato marroquino de frango, a famosa bouillabaisse, na França, a zarzuela e a paella na Espanha. Na Itália existem as pardulas, pastéis recheados com ricota e açafrão, muito populares na Sardenha; em Palermo, os sicilianos preparam um prato de massa e sardinhas temperado com açafrão. Milão é uma cidade famosa pelo seu sublime risotto.
Texto de Alexandra Wasiquilah, publicado na revista "Seleções do Reader's Digest" tomo XXXII, n. 193, junho de 1987. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
0 Response to "A GLÓRIA DOURADA DO AÇAFRÃO"
Post a Comment