ABELHAS NATIVAS, SEM FERRÃO
Talvez você nunca tenha notado que a zoeirinha ao redor das flores de manjericão do seu jardim tem muitas asas. Não se preocupe, pode não ser falta de vocação para o olhar. Estamos mais acostumados a curtir abelhas listradas em preto e amarelo do que perceber ao vivo essas criaturas nativas. Pequenas, translúcidas, quase invisíveis, elas estão entre nós desde de tempos remotos.
Não que sejam discretas.Uma boa caricatura de abelha jataí (Tetragonisca angustula) seria um inseto com crocs amarelos ou sacos de pesos de pólen amarrados à canela. Nem são tão mansas. Na hora de defender a colmeia de abelhas exóticas, leia-se Apis mellifera, se atracam aos pares às asas das inimigas até arrancá-las. Mas de fato não despertam a atenção e não têm ferrão.
As jataís, como as diversas espécies de abelhas indígenas, têm outras armas, apontadas para fungos, bactérias, formigas e outros inimigos naturais. Daí as propriedades medicinais do mel, com poderes bactericidas. Tenho em casa três caixas de jataís repousadas sobre o telhado da lavanderia. As abelhas não me dão trabalho algum, não exigem ração, água ou carinho e não fazem sujeira. Se viajo, não choramingam e seguem a mesma rotina de sempre sem um pio, só no farfalhar das asinhas. E,o melhor, são autossuficientes.
Alimentam-se às custas de jardins alheios sem serem notadas pelos vizinhos. Em troca, polinizamas flores e perpetuam o próprio alimento. E o nosso. Essas jataís vieram de Porto Alegre, presentes de amigos que se mudaram,e a maior alegria foi acordar no outro dia, depois da longa viagem de ônibus, e descobrir que haviam se norteado facilmente, um bando delas já reconhecendo as flores, outro no empenho para construção de um novo canudo de entrada.
Mas você pode conseguir a sua colmeia montando armadilhas para capturar abelhas enxameadas. Para ver como isso pode ser feito,procure na internet ou escreva para mim que eu mostro. Ou, quem sabe, poderá conseguir uma colmeia já povoada em algum meliponário. Em lojas que trabalham com produtos apícolas,há modelos bem decorativos de caixas que podem ser instaladas até na varanda, desde que haja luz e uma janela aberta.
Proibido.
Agora, quanto ao mel produzido por essas abelhas, infelizmente você não vai conseguir comprá-lo com facilidade e não é só por causa da produção pequena. A dificuldade está no fato de que esse néctar mais fluido não pode ser vendido como mel. Isso porque, pelos parâmetros nacionais e internacionais, o mel deve ter uma determinada concentração de açúcar e um determinado grau de acidez, só aplicáveis àquele produzido pela Apis. Sem isso, não é considerado mel.
O irônico é que produtos industrializados e importados têm uma ampla margem de interpretação sobre forma e composição e no caso deste mel,um produto não manipulado, de uso ancestral, a legislação impõe restrições desta ordem. Aos poucos, não só jataís mas também tiúbas, jandaíras, mandaçaias, uruçus, canudos e outras tantas abelhas nativas começam a se impor contra essa padronização que desrespeita as particularidades de cada tipo de mel.
Produtores já andam animados e cozinheiros, mais ainda. Enquanto isto,você vai encontrar o produto pasteurizado ou desidratado para atingir a concentração do mel de Apis. Já é alguma coisa.Mas bom mesmo é começar adotando uma caixa de jataí no seu quintal. Logo você vai querer saber das tantas outras espécies, conhecer seus produtores, provar o mel in natura e fazer receitas com ele – tempero para carne de porco, uma gotinha sobre um cubo de queijo canastra, na calda do sorvete, no molho da salada – e nhac!
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Sem nunca ter tirado mel da colmeia, tive a sorte de encontrar um especialista para ajudar. Jerônimo Villas-Bôas, como eu, participou do Paladar – Cozinha do Brasil. Autor do "Manual Tecnológico do Mel de Abelhas sem Ferrão", deu uma aula sobre mel de abelhas nativas. O mais indicado é tirar o mel logo depois da fase de maior acúmulo, pouco depois do fim da primavera, no começo do ano.
Mas não é toda hora que se tem um Villas-Bôas por perto – ele também coordena o projeto Meliponicultura no Parque Indígena do Xingu e, incrivelmente, não tem parentesco com os irmãos. A extração não é rápida, mas é fácil e não oferece riscos. É só tirar a tampa da caixa, achar o ninho para protegê-lo e ir tirando, do entorno, os pequenos potes – cápsulas finas de cerume, mistura de cera e resina, do tamanho de cerejas, cheias ou de mel ou pólen. Há dois métodos de tirar o mel em casa: com uma seringa ou prensando os potes num espremedor de batatas – foi assim que fizemos.
Das três caixas, saiu cerca de um quilo de mel, um bem valiosíssimo, não só porque é caro, mas porque foi produzido aqui e isso não tem preço. Deixamos um tanto para a provisão de inverno das jataís. A massa de pólen foi tirada das cápsulas com uma colher de café e posta para secar em um saco de papel pendurado à sombra. Quando estava seco, passei por peneira para formar grãos e usar em saladas ou sobre frutas.
Esse pólen, ao ser armazenado nos potes pelas abelhas, é processado com enzimas para melhor conservação. Por isso, no caso das abelhas nativas, tem outro nome: é o saburá ou samburá, com sabor levemente doce e ácido com notas de flores. Fica uma delícia com banana assada. E produto de jataís não é só de comer. Podemos ainda ter um pouco de cerume. Grande parte pode ser devolvido à caixa – as jataís reaproveitam. Lavado, o cerume pode virar bolinhas. Flexível e modelável, pode ser guardado para serviços diversos de reparos e grude natural.
Por Neide Rigo no suplemento "Paladar" do jornal "O Estado de S. Paulo" do dia 30 de agosto de 2012, com o título de "Mel das Fadinhas do Jardim". Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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