O SUBCICLO DO GADO NA HISTÓRIA DO BRASIL


O desvio do estudo da História Econômica do Brasil do caminho que normalmente devia seguir - isto é, pesquisa exaustiva dos dados informativos (em grande parte quantitativos); depois, síntese coerente destes dados; e finalmente outra síntese integrando a realidade econômica no conjunto da realidade cultural - esse desvio, queimando as etapas e passando diretamente para o terceiro estágio do caminho normal, foi, sem dúvida, em grande parte, obra das escolas materialistas, estruturalistas e outras semelhantes que enfatizaram demasiadamente o aspecto social e institucional - os problemas das classes sociais, dos sistemas, das estruturas, dos regimes, das instituições políticas, etc. É de estranhar que doutrinas que sublinharam até além dos limites lógicos a importância do fator econômico na evolução da Humanidade, contribuíram para a marginalização do estudo especificamente econômico na História.
Um caso típico é o estudo da evolução econômica do Brasil no período moderno até a Segunda Guerra Mundial. No prefácio do seu excelente livro ('Nova História e Novo Mundo') recentemente publicado no Brasil (1969) Frédéric Mauro escrevia: "Após essa fase colonial de nossas pesquisas históricas, sentimo-nos atraídos eventualmente pelos séculos XIX e XX, cuja economia os historiadores brasileiros negligenciaram em extremo". Entretanto, procure-se nos livros "clássicos" da história econômica do Brasil, e encontrar-se-á um número imenso de páginas dedicadas àquele período. Só uma perquirição mais atenta descobrirá o sentido, perfeitamente justo, das palavras de Mauro: é que, apesar da extensão dos comentários (todos, de acordo com uma certa filosofia política e social), a base informativa, o documento, a estatística não existem - o que torna extremamente precário - o respectivo comentário.
Ninguém pode minimizar a importância dos sistemas, das instituições, das classes, das forças políticas e sociais em jogo, e assim por diante. Entretanto, uma avaliação objetiva destes fatores, em termos econômicos, só pode ser feita depois da análise do processo econômico e dos seus efeitos. Para fixar-se bem, essa posição, talvez seja conveniente, mais uma vez, indicar os caminhos a seguir - mesmo se, às vezes, esta tarefa pareça repisar o terreno do óbvio.

CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA DO SUBCICLO DO GADO

Em artigo divulgado no 'Jornal do Commercio' de 6-4-1968, João Leães Sobrinho rebateu judiciosamente dois erros cometidos por uma publicação de conhecimentos gerais, que afirmava, em primeiro lugar, que a criação de gado bovino teria começado em São Vicente, com sete vacas e um touro vindos do Paraguai; em segundo lugar, que o início da criação de gado no Brasil se deveu à iniciativa de Duarte Coelho em Pernambuco. Ora, admitem, de forma geral, os historiadores que o primeiro gado vacum introduzido no Brasil aportou na Capitania de São Vicente, em 1534, por iniciativa de dona Ana Pimentel, esposa de Martim Afonso de Sousa.
Quando Capistrano de Abreu afirma que "a criação de gado primeiro se desenvolveu nas cercanias da cidade do Salvador" estendendo-se à margem do Rio São Francisco e que, paralelamente, porém menos forte, se verificou um "movimento idêntico partido de Pernambuco" ele não nega forçosamente a prioridade cronológica de São Vicente; aponta, apenas, os focos principais de expansão. Portanto, mesmo admitindo-se que Duarte Coelho, o donatário de Pernambuco, tivesse trazido, quando de sua instalação (1535), gado de Portugal (ou de Cabo Verde), a questão da prioridade cronológica fica estabelecida a favor de São Vicente. Quanto às sete vacas - as célebres "sete vacas de Gaete" - é ponto pacífico que, muito pelo contrário, não foram os paraguaios que as trouxeram ao Brasil, e sim, foram os brasileiros que as levaram para as planícies platinas.
O problema de saber exatamente o local que recebeu o primeiro boi importado é de menor importância. Interessa mais estabelecer as grandes linhas de expansão do gado vacum, a fim de que, desta forma, se chegue a uma compreensão mais profunda da história econômica do Brasil. Para isso, seguindo a lição do saudoso mestre Pierre Noailles, o grande romanista francês, é preciso fazer um levantamento dos documentos históricos e interpretá-los com espírito crítico e coerência. As lacunas residuais deverão ser preenchidas pela imaginação criadora. O próprio Noailles, apesar do seu rigor na interpretação dos textos, usou, com brilho, a intuição e a imaginação.
O primeiro texto a considerar é clássico. É de autoria do primeiro cronista do Brasil, primeiro não apenas em ordem cronológica, mas também em perspicácia e força de síntese: Pero Vaz de Caminha. A observação de que na terra descoberta não havia animais domésticos nem do tipo europeu, nem de outro tipo, correspondia à verdade não apenas para a pequena área, por ele perscrutada, mas para todo o futuro Brasil. Isso era em primeiro de maio de 1500.

Cento e vinte e sete anos mais tarde, Frei Vicente do Salvador registrou o resultado de um longo processo: "Criam-se no Brasil todos os animais domésticos e domáveis de Espanha, cavalos, vacas...” E foi, sobretudo o gado vacum que se tinha desenvolvido muito. Quase na mesma época (1618), os 'Diálogos das Grandezas do Brasil" consignavam: "Há nesta terra quantidade grande de gado vacum", especificando que em Pernambuco havia "criações sem conta de gado vacum" e que São Vicente era "muito abundante em carnes".
Entretanto, Brandônio, apesar de mercantilista por origem e função, considerava insuficiente a 'economia de subsistência no Brasil e achava que a população devia dedicar-se mais a outras atividades que não ligadas ao açúcar, entre as quais a criação do gado: “... Se não dispõem o fazer criações de gados e outras, e se algum o faz, é em muito pequena quantidade, e tão pouca que a gasta toda consigo mesmo e com a sua família". São escassas as informações entre as duas extremidades fixadas, 1500 e 1627. E entre elas, algumas duvidosas, outras confusas. Poder-se-ia admitir a afirmação do cônego João Pedro Gay que, em 1530, havia no Brasil muito gado vacum? É impossível, pois então não se explicaria a ênfase dada à introdução de bois e vacas, em 1534-1535, nas capitanias de São Vicente, Porto Seguro e Pernambuco.
Uma primeira constatação é que a introdução de gado coincidia com a organização da Colônia e o início das atividades econômicas de caráter mais estável. A nova organização política da Colônia, Com a formação do Governo Geral, na futura cidade de Salvador, foi acompanhada pela introdução de novas levas de gado. Gabriel Soares de Sousa relata que a segunda armada de Tomé de Souza, em 1550, trouxe vacas e éguas "para que se repartissem pelos moradores (da cidade) e que pagassem o custo por seus soldos e ordenados". No mesmo ano houve o episódio da caravela ‘Galga' que trouxe outra leva de bois e vacas. Entretanto, já havia gado na Bahia no momento em que desembarcou a comitiva de Tomé de Souza. Assim se explica a ordem dada, em 1549, ao tesoureiro Gonçalo Ferreira para adquirir bois necessários às obras de edificação da cidade.
No mesmo ano, o padre Nóbrega assinalava os progressos da criação de gado na Capitania na Bahia. Em torno de 1570, no seu "Tratado da Terra do Brasil" Pero Magalhães Gandavo, referindo-se aos bois e vacas, já podia escrever que havia "muita abundância em todas as Capitanias". Alguns anos mais tarde, na sua "História da Província de Santa Cruz", confirmava; "do vacum há muita abundância" Vale sublinhar, contudo, que no primeiro livro o gado não é citado entre os animais da terra, mas sim separadamente, quando se fala das fazendas e das atividades agrícolas. O gado é ainda artigo de importação, não integrado na paisagem local. Em segundo lugar, Gandavo não cita a criação de gado entre as principais riquezas da Colônia: fala em açúcar, algodão, pau-brasil, mas não em gado.
Em terceiro lugar, quando Gandavo apresenta a fórmula de enriquecimento na Colônia - arranjar quatro ou seis escravos que farão todos os trabalhos necessários - ele indica, entre estes trabalhos, a caça, a pesca, o cultivo na roça - mas não a criação de gado. Finalmente, deve-se atentar ao fato de que, na descrição das Capitanias, no "Tratado da Terra do Brasil", a única referência específica que Gandavo faz ao gado é quando declara que em Pernambuco alguns engenhos são movidos por bois. Admite, entretanto, a expansão do setor: "por serem muitos os pastos, (o gado vacum) vai sempre a grande crescimento".

Tudo isto sugere que a atividade criadora era ainda esparsa e marginalizada, e que, onde existia, estava ligada às atividades açucareiras. A pouca extensão das atividades criadoras numa época um pouco anterior, mas já muito depois das entradas de gado em São Vicente, Pernambuco e Porto Seguro - e depois das constatações entusiastas do padre Nóbrega - resulta de um texto menos citado, do relatório de Jean de Léry “Viagem à Terra do Brasil, referente ao ano de 1557”. Diz Léry textualmente: "Direi desde logo, ao iniciar este capítulo, que não existe no Brasil nenhum quadrúpede em tudo e por tudo semelhante aos nossos".
Evidentemente, Léry refere-se apenas à pequena faixa de terra que ele percorreu e conheceu. O que se desprende da sua afirmação é que até aquele ano o gado não tinha se alastrado tanto para aparecer na região do Rio de Janeiro. Atende-se, ainda, para o fato de que naquela época também não havia atividades açucareiras na região. Nas próprias áreas onde o gado havia sido introduzido em maior quantidade e onde ele começara a expandir-se, as informações são algo contraditórias. Em 1565, a Câmara de São Paulo fez uma representação a Estácio de Sá alegando que não havia ao longo da costa pastos "em que pudesse pastar o muito gado vacum que há nesta capitania", mas, no mesmo ano, o padre Baltasar Fernandes afirmava que o gado se multiplicava muito por haver grandes áreas de pasto.
De qualquer forma, as informações coincidem em designar a capitania de São Vicente como um dos núcleos das atividades criadoras. Mais tarde, em 1587, Gabriel Soares de Sousa fornece outras valiosas informações que merecem exame atento. Na descrição geral que ele faz do Brasil, no seu "Tratado Descriptivo", a criação de gado não aparece como atividade de primeiro plano - o que não é de estranhar numa economia já totalmente voltada para o ciclo do açúcar. Consta, entretanto, que a atividade criadora tinha se espalhado e crescido, mas ela parece assumir um caráter independente só na Bahia e em São Vicente. Gabriel Soares foi um excelente observador, e as suas anotações merecem fé. No seu tempo, o gado já é abundante, mas apenas em algumas regiões e somente numa faixa costeira.
Ele não encontra gado na região do Rio São Francisco (em compensação fala muito da riqueza piscícola). Assinala as grandes fazendas de Garcia d'Ávila, na Bahia, para a criação de vacas e éguas, bem como outras menores, à beira dos rios Jacuípe, Joanne ou das Caravelas, mas todas ao longo da costa ou com uma penetração de, no máximo, três ou quatro léguas. Assinala, também, grandes criações de vacas em São Vicente. É a respeito de São Vicente que Soares faz uma observação que merece especial atenção. É o trecho em que ele confirma a anterioridade da criação de gado em São Vicente. Mas atente-se em que termos ele o faz: "... a qual vila (São Vicente) floresceu muito nestes primeiros anos, por ela ser a primeira em que se fez açúcar na costa do Brasil, de onde as outras capitanias se aproveitam de canas-de-açúcar para plantarem e de vacas para criarem".
Outra vez, uma ligação direta entre a expansão da produção açucareira e a do gado vacum. Aliás, a mesma ligação é feita por Frei Vicente do Salvador quando assinala o sucesso da região de São Vicente nas atividades criadoras e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da indústria açucareira. Inversamente, o mesmo autor observa que a fundação de engenhos não foi possível na Capitania de Porto Seguro por falta de bois - esta falta explicando-se, como Gabriel Soares já dissera, pela presença de uma erva nociva. Voltando para Gabriel Soares, diz ele que as primeiras vacas da Bahia chegaram de Cabo Verde e de Pernambuco. Isto confirmaria a ordem cronológica da introdução do gado: São Vicente - Pernambuco - Bahia. Mas, na época de Gabriel Soares, são, sobretudo Bahia e São Vicente que têm uma atividade criadora específica.
Na Bahia, além das fazendas de Garcia d'Ávila, assinala os currais do Conde de Linhares, de Sebastião da Ponte e outros, na costa, entre os rios Paraguaçu e Jaguaripe. Fora destes currais, o gado é mencionado em ligação com os engenhos do açúcar: currais de vacas nos engenhos de Cristóvão de Aguiar de Altero ou de João de Barros Cardoso, ou engenhos movidos por bois, de Francisco de Aguilar, Vasco Rodrigues Lobato, Gaspar Dias Barbosa e tantos outros. Fora dos engenhos ou dessas grandes fazendas situadas ainda nas zonas dos engenhos - a criação do gado é considerada, na época de Gabriel Soares, uma produção algo marginalizada. Alguns trechos do seu "Tratado" são expressivos. Falando na região do Rio Jaguaripe até no nível da Ilha da Pedra, diz que está povoada "de currais de vacas e fazendas de gente pobre, que não plantam mais que mantimentos de que se mantêm". E, depois, que se trata de “terra muito fraca, que não serve senão para vacas e roças de mantimentos’”.
Estas observações, entretanto, mostram que a criação de gado começava a atrair, por necessitar menor investimento pequenos cultivadores fora da área da produção açucareira. Juntando as poucas informações disponíveis, parece que o gado foi introduzido, em primeiro lugar e em maiores quantidades nas regiões de São Vicente, Pernambuco e Bahia, mas esta implantação verifica-se ligada aos planos da indústria açucareira e à própria expansão desta indústria. Se a criação do gado começou em São Vicente, é porque lá se iniciou também, a produção de açúcar; se progrediu em Pernambuco e na Bahia, é porque lá se expandiram o ciclo do açúcar. De fato, o boi representava um elemento indispensável para o setor açucareiro: era fonte de energia para os engenhos, era meio de transporte para a cana-de-açúcar e para o produto fabricado.
Subsidiariamente, era alimento para os donos do engenho e os seus agregados, e matéria-prima para o artesanato do couro que, além da exportação, encontrava seu mercado principalmente nos engenhos, únicos núcleos de expansão econômica. O crescimento da criação de gado aparece, nos documentos, ligado à expansão do ciclo açucareiro. Mesmo em São Vicente, onde a produção açucareira, depois de um início auspicioso, não pôde mais acompanhar o ritmo de Pernambuco e Bahia, o gado parece Um reflexo da economia açucareira. Entretanto, dois fenômenos apresentam-se, conferindo certa autonomia às atividades criadoras: um é a adoção destas atividades por pequenos cultivadores e criadores (fato confirmado por Gabriel Soares e Brandônio - embora este último ache insuficiente a produção); outro é a expansão da atividade criadora, desligando-se, pelo menos territorialmente, do setor açucareiro.
Uma expansão normal, uma vez que, face à imensidade da área disponível, a forma extensiva da pecuária se impunha como a mais fácil. Os efeitos desta expansão foram complexos. Sem falar dos políticos - ligados à conquista territorial - foram positivos e negativos sob o ângulo econômico. Mas de qualquer forma, a expansão deu ao subciclo do gado um certo caráter autônomo, contribuindo para a interiorização das atividades econômicas e o seu desligamento do processo cíclico.

Por Mircea Buescu no livro “História Econômica do Brasil - Pesquisas e Análise", APEC Editora, Rio de Janeiro, 1970, p.74-80. Digitado, ilustrado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.


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