DEUSDETE E MANÉ - "ESTAÇÃO CARANDIRU"
ESTAÇÃO CARANDIRU
DEUSDETE E MANÉ
Quando cheguei no pavilhão Quatro, o sol batia forte na gaiola do térreo. O Pequeno conversava com um funcionário na beira da escada. Perguntei se o elevador estava funcionando. Respondeu com o erre arrastado na língua presa:
- Para variar, não. Doutor, o senhor já viu os corpos?
Num banheiro do térreo improvisado como necrotério, jaziam os corpos de dois rapazes. Um deles, de bermuda, estava horrivelmente queimado. As bolhas ocupavam o corpo todo, principalmente o rosto e o tórax; algumas haviam rompido expondo a derma profunda, escura e úmida. O outro, de camiseta do Baú da Felicidade, estava todo esfaqueado.
Os corpos eram de Deusdete e Mané de Baixo, criados na mesma vizinhança, amigos inseparáveis até os catorze anos, quando Mané de Baixo arranjou emprego num ferro-velho e saiu da escola. Na mesma época, o pai de Deusdete perdeu a vida num trem de subúrbio. Orfão, Deusdete foi trabalhar de dia e estudar à noite. Mané de Baixo envolveu-se com o crime e desinteressou-se pela vida esforçada do amigo.
Uma noite, Francineide, irmã do meio de Deusdete, na volta da padaria, foi molestada por dois marginais da vila. Um disse que queria chupar o sexo dela; ofendida, ela o mandou chupar a mãe, vagabundo. Apanhou, chegou em casa com o vestido rasgado e a boca inchada. Ao ver a irmã naquele estado, Deusdete correu para a Delegacia. Esperou mais de duas horas para ouvir o escrivão dizer que ficaria louco se registrasse todas as queixas de agressão da vila.
Uma semana após o incidente, no ônibus, um vizinho o avisou de que os agressores souberam da ida dele à delegacia e queriam pegá-lo. Deusdete pediu adiantamento na firma e saiu pela vila atrás de um revólver. Não demorou para encontrar. Apesar da arma, mudou de itinerário. Não adiantou, eles o acharam na volta da escola, sozinho, por uma rua escura.
- Aonde pensa que vai o estudante dedo-duro?
- Não quero briga. Deixa eu ir para casa.
- Você vai para a casa da mamãe, veado, só que antes a gente vai te fazer uns carinhos, que nem nós fez para a tua irmãzinha.
O primeiro que se aproximou tinha uma barra de ferro na mão. Abusado, não percebeu que Deusdete havia sacado o revólver. Tomou dois tiros e caiu morto. O companheiro saiu correndo com a faca. Deusdete atirou, errou e seguiu no encalço. Três, quatro esquinas depois o fugitivo entrou num bar. Deusdete esperou agachado atrás do muro de uma casa em frente, até que o inimigo saiu, olhou ao redor desconfiado e cruzou a rua bem na direção em que ele se encontrava. Levou as três últimas balas do tambor, para espanto do gordo de bermuda e do barbudo que jogavam sinuca no alpendre do botequim e mais tarde testemunharam contra ele, no julgamento.
Quando Deusdete chegou na Detenção foi acolhido por Mané de Baixo, proprietário de um xadrez no pavilhão Cinco, cumprindo oito anos e seis meses por roubo de carga e formação de quadrilha. Com a ajuda do amigo, Deusdete, condenado a nove anos por homicídio duplo, fez ambiente com a malandragem. Dava aula na escolinha do pavilhão, escrevia cartas para os menos letrados e batia petições para anexar aos processos dos companheiros.
A harmonia, entretanto, foi abalada quando Mané de Baixo conheceu o crack. De nada adiantaram os conselhos do amigo, tudo o que Mané conseguia evaporava na fumaça das pedras.
Na noite da tragédia, apareceu o Fuinha no guichê da cela:
- Mané, trouxe umas pedras da melhor para nós fumar.
Deusdete perdeu a paciência:
- Chega! Você não vai fumar comigo aqui dentro. Quer se matar, foda-se, mas fuma amanhã, depois que eu sair! Fuinha preferiu se retirar:
- Deixa quieto, Mané, amanhã nós fala.
Mané de Baixo, diminuído na presença de Fuinha, não disse uma palavra. De madrugada, enquanto o companheiro de infância dormia, encheu um tacho com cinco litros de água, uma lata de óleo, um quilo de sal e acendeu o fogareiro. Quando a mistura levantou fervura, despejou-a em cima do outro. Deusdete morreu na enfermaria do Pavilhão Quatro nas primeiras horas da manhã. Ao meio-dia, os companheiros revoltados reuniram-se com a Faxina do Cinco, num "debate", como eles dizem, que envolveu mais de quarenta pessoas. Resolveram que um grupo aguardaria nas imediações da entrada do pavilhão e outro bloquearia a escada no primeiro andar. Quando Mané entrou, o grupo de baixo subiu atrás. Seu corpo foi levado para o Quatro num carrinho de transportar comida. Lá, um detento o agarrou pelos braços, outro pelas pernas e o depositaram deitado de lado, no espaço do corredorzinho que sobrou entre Deusdete e a parede. O braço inerte de Mané caiu sobre a cintura do amigo.
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