DEUSDETE E MANÉ - "ESTAÇÃO CARANDIRU"
ESTAÇÃO CARANDIRU
O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.
DEUSDETE E MANÉ
Quando cheguei no pavilhão Quatro, o sol batia forte na gaiola do térreo. O Pequeno conversava com um funcionário na beira da escada. Perguntei se o elevador estava funcionando. Respondeu com o erre arrastado na língua presa:
- Para variar, não. Doutor, o senhor já viu os corpos?
Num banheiro do térreo improvisado como necrotério, jaziam os corpos de dois rapazes. Um deles, de bermuda, estava horrivelmente queimado. As bolhas ocupavam o corpo todo, principalmente o rosto e o tórax; algumas haviam rompido expondo a derma profunda, escura e úmida. O outro, de camiseta do Baú da Felicidade, estava todo esfaqueado.
Os corpos eram de Deusdete e Mané de Baixo, criados na mesma vizinhança, amigos inseparáveis até os catorze anos, quando Mané de Baixo arranjou emprego num ferro-velho e saiu da escola. Na mesma época, o pai de Deusdete perdeu a vida num trem de subúrbio. Orfão, Deusdete foi trabalhar de dia e estudar à noite. Mané de Baixo envolveu-se com o crime e desinteressou-se pela vida esforçada do amigo.
Uma noite, Francineide, irmã do meio de Deusdete, na volta da padaria, foi molestada por dois marginais da vila. Um disse que queria chupar o sexo dela; ofendida, ela o mandou chupar a mãe, vagabundo. Apanhou, chegou em casa com o vestido rasgado e a boca inchada. Ao ver a irmã naquele estado, Deusdete correu para a Delegacia. Esperou mais de duas horas para ouvir o escrivão dizer que ficaria louco se registrasse todas as queixas de agressão da vila.
Uma semana após o incidente, no ônibus, um vizinho o avisou de que os agressores souberam da ida dele à delegacia e queriam pegá-lo. Deusdete pediu adiantamento na firma e saiu pela vila atrás de um revólver. Não demorou para encontrar. Apesar da arma, mudou de itinerário. Não adiantou, eles o acharam na volta da escola, sozinho, por uma rua escura.
- Aonde pensa que vai o estudante dedo-duro?
- Não quero briga. Deixa eu ir para casa.
- Você vai para a casa da mamãe, veado, só que antes a gente vai te fazer uns carinhos, que nem nós fez para a tua irmãzinha.
O primeiro que se aproximou tinha uma barra de ferro na mão. Abusado, não percebeu que Deusdete havia sacado o revólver. Tomou dois tiros e caiu morto. O companheiro saiu correndo com a faca. Deusdete atirou, errou e seguiu no encalço. Três, quatro esquinas depois o fugitivo entrou num bar. Deusdete esperou agachado atrás do muro de uma casa em frente, até que o inimigo saiu, olhou ao redor desconfiado e cruzou a rua bem na direção em que ele se encontrava. Levou as três últimas balas do tambor, para espanto do gordo de bermuda e do barbudo que jogavam sinuca no alpendre do botequim e mais tarde testemunharam contra ele, no julgamento.
Quando Deusdete chegou na Detenção foi acolhido por Mané de Baixo, proprietário de um xadrez no pavilhão Cinco, cumprindo oito anos e seis meses por roubo de carga e formação de quadrilha. Com a ajuda do amigo, Deusdete, condenado a nove anos por homicídio duplo, fez ambiente com a malandragem. Dava aula na escolinha do pavilhão, escrevia cartas para os menos letrados e batia petições para anexar aos processos dos companheiros.
A harmonia, entretanto, foi abalada quando Mané de Baixo conheceu o crack. De nada adiantaram os conselhos do amigo, tudo o que Mané conseguia evaporava na fumaça das pedras.
Na noite da tragédia, apareceu o Fuinha no guichê da cela:
- Mané, trouxe umas pedras da melhor para nós fumar.
Deusdete perdeu a paciência:
- Chega! Você não vai fumar comigo aqui dentro. Quer se matar, foda-se, mas fuma amanhã, depois que eu sair! Fuinha preferiu se retirar:
- Deixa quieto, Mané, amanhã nós fala.
Mané de Baixo, diminuído na presença de Fuinha, não disse uma palavra. De madrugada, enquanto o companheiro de infância dormia, encheu um tacho com cinco litros de água, uma lata de óleo, um quilo de sal e acendeu o fogareiro. Quando a mistura levantou fervura, despejou-a em cima do outro. Deusdete morreu na enfermaria do Pavilhão Quatro nas primeiras horas da manhã. Ao meio-dia, os companheiros revoltados reuniram-se com a Faxina do Cinco, num "debate", como eles dizem, que envolveu mais de quarenta pessoas. Resolveram que um grupo aguardaria nas imediações da entrada do pavilhão e outro bloquearia a escada no primeiro andar. Quando Mané entrou, o grupo de baixo subiu atrás. Seu corpo foi levado para o Quatro num carrinho de transportar comida. Lá, um detento o agarrou pelos braços, outro pelas pernas e o depositaram deitado de lado, no espaço do corredorzinho que sobrou entre Deusdete e a parede. O braço inerte de Mané caiu sobre a cintura do amigo.
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