HISTÓRIA DE INÁCIA HOMEM (de "Barretos de Outrora")


Osório Rocha
 Inácia, filha de Simão era conhecida pela alcunha de Inácia Homem, devido á sua estatura fora do comum, aos ossos salientes que lhe desengraçavam o corpo, aos pelos passíveis de rasoura frequente que ainda mais escureciam o seu rosto tisnado pelo sol e principalmente ás suas maneiras decididas e masculinizadas, que pediam meças ás mais vivas manifestações de atividade dos varões da época e da região.

Feia, naturalmente, mas o riso de sua boca rasgada mostrando os dentes miúdos e perfeitos, era um riso simpático. Tinha os olhos brilhantes, que nada deixavam escapar. Dirigia serviços de roça, corria os pastos em busca das vacas paridas e da tropa, e ninguém lhe disputava as lampas em desabaladas correrias atrás das antas e outras vítimas de suas façanhas venatórias. Mas possuía um coração de ouro.

Caçava em certa ocasião com Inocêncio nos cerradões da Fortaleza e do Monte Alegre. Um veadinho, perseguido pela matilha e a fogosa cavalgada, surgiu na clareira do S. Domingos e afinal veio cair exausto mesmo á porta da primitiva capelinha do arraial dos Barretos. Arquejante, os olhos em desesperados volveres de terror pareciam chorar e implorar misericórdia, no limiar da casa de Deus.

Inácia sentiu então a ternura da sua alma sertaneja e gritou ao irmão, que já levava a espingarda á pontaria certeira:

-Não atire, compadre Nocêncio! Coitadinho! Ele veio pedir piedade a N. Senhora e ao Divino! Não atire!

Porém Inocêncio foi inexorável, o tiro partiu, o animalzinho se agitou convulsivo em rápida agonia. A própria Inácia contava que depois desse dia foi como se todos os fados viessem á porfia contra o seu irmão. Primeiro, teve o desgosto da viuvez, depois os maus negócios, a doença, o desassossego na quadra cor de cinza do fim da vida. E então ela dizia:

— Eu bem lhe pedi, compadre, para não matar o coitado do veadinho na porta da Igreja! O Divino Espírito Santo castigou!

Inácia era dotada ainda de vários préstimos, como dona de casa e administradora de serviços de terreiro. Tinha uma especialidade que levava a sua fama além do Rio Pardo e para as bandas de Jaboticabal. Ninguém como essa Librina para preparar o anil e outros corantes, e para tingir um pano. Era chamada para esses misteres a todas as fazendas.

Um dia o capitão Chico (Francisco Marcolino Diniz Junqueira) palestrava na sala da fazenda Invernada com o dr. Alberto, filho do comendador Manoel Ananias Diniz Junqueira, e outras pessoas, quando chega Inácia Homem a quem mandara chamar, para tingir algumas peças de tecidos. Por essa. época, devido ao falecimento de d. Maria Carolina, viúva de Antonio Bernardino Franco. Inácia estava morando perto dali, na fazenda Espírito Santo, para tomar conta da casa da sede, pois Quinzote, filho mais velho da finada, e solteiro, passava o dia fora e os irmãos menores não podiam ficar sem uma boa companhia.

O capitão Chico apresentou Inácia ao hóspede:

— Esta é dona Inácia, Alberto. Uma senhora muito prestimosa, conhecida e estimada nestas redondezas. Mandei busca-la para preparar umas tintas.

O dr. Alberto cumprimentou-a respeitoso, com muito prazer em conhece-la. Inácia, desembaraçada, retribuiu a saudação. Vinha sem amazona, trajando calças de algodão azul, e sobre elas uma espécie de saia aberta, que a gente do tempo chamava "robe". Na cabeça um chapeirão de palha trançada, preso por barbela. Nos pés coturnos de revirados bordos e correinhas entrelaçadas.

Joaquim Garcia Franco, presente, dirige-se então á recém-chegada, em tom meio zombeteiro:

— Como vai, sía-Inácia Homem?

Ela responde desabrida, ao pé da letra:
— Vou bem. E vacê, sêo Joaquim Muié? E vira as costas, vai cuidar dos seus afazeres, sem dar mais importância aos circunstantes.

No dia seguinte aqueles Nemrods convidaram-na para a caçada. Aceitou. No momento em que arreava o cavalo, o dr. Alberto entende também de gracejar a respeito das calças de azulão de Inácia. E ela retruca, com duas pedras na mão:
— Tenho calças, sim! Porque sei tecer. Azuis, porque sei tingir! tá ouvindo?

Joaquim Franco e o dr. Alberto não mexeram mais com caixa de marimbondos, não quiseram mais saber de piadas com aquela desabusada que não respeitava caras.

Quando se procedia á divisão de certa fazenda da margem do Rio Pardo. Inácia havia sido chamada para durante os trabalhos da diligência dirigir os serviços da casa da aposentadoria.

Aos hóspedes foram distribuídos os vários dormitórios, cabendo ao agrimensor cel. Jesuíno da Silva Melo uma das alcovas com porta para a sala de jantar.

Naquele tempo as audiências no imóvel se repetiam por muitos dias, e nas horas vagas havia caçadas, pescarias, alegres tertúlias entre os presentes e café “de duas mãos“, isto é, acompanhado de biscoitos, bolos, doces, leite e outras guloseimas abundantes. As refeições, sobretudo, eram principescos banquetes.

Uma noite, depois de várias horas de palestra agradável, variada, entremeada de pilhérias e anedotas de todas as qualidades, como era próprio dessas ocasiões em que se encontravam nas fazendas dividendas pessoas cultas — o juiz, advogados, engenheiros, louvados, escrivão e outros auxiliares da justiça, o cel. Jesuíno. já com sono, deu as boas noites aos companheiros e foi se deitar.

Enganou-se, porém e entrou na alcova de Inácia Homem, que se esquecera de fechar a porta e estava de pé em cima, catando as pulgas junto ao mancebo em que espetara o garavato da candeia de azeite, acesa. Não se confunda o leitor: Mancebo era a haste, o pau fincado no cepo e com furos em cima, a diversas alturas, para o gancho da candeia.

Vexado, o agrimensor exclama:
— Oh! Desculpe-me. d. Inácia. Errei a porta do meu quarto...

E ela, aos berros:
— Que desculpe o que! Puxa daqui p’ra fora! Puxa! Pois se errou a porta é só virar nos pés e sumir! Não é preciso ficar ai, nhén-nhén-nhén- nhén-nhén-nhén, e aproveitando para ver a gente em fralda de camisa! Puxa, atrevido!

Houve então, e depois, muitos comentários e risadas, em todos os quartos, e o cel. Jesuíno. cavalheiro de fino trato e raros dotes intelectuais, contava sempre o incidente com a graça que lhe era peculiar.

Inácia dizia-se casada e separada do marido, um Generoso de Freitas, que sem generosidade alguma lhe infligira muitas vezes maus tratos. Certa vez, levando-a a uma pescaria, ao chegar á beira da corrente atirou-a dentro d' água, procurando faze-la morrer afogada. Como Inácia se esforçasse para sair a nado á margem, ele empurrava-a para o fundo com uma vara de cipó grosso da mata. Mas afinal ela conseguira sair, pegara aquele cipó e com ele aplicara ao esposo ingrato formidável taréa. Tempos após, ele lhe desfechara pelas costas uma paulada, deixando-a ensanguentada e sem sentidos, estendida no chão. Essa crueldade covarde determinara a sua definitiva separação.

Inácia Bernarda Cândida da Conceição era filha de Simão Antonio Marques, o Librina, aposseante da fazenda Monte Alegre, vizinha a de Francisco Barreto. A família foi também, juntamente com a família de Francisco Barreto, doadora do patrimônio que deu origem a cidade de Barretos

Texto de Osório Rocha publicado em "Barretos de Outrora", Edição do Autor, São Paulo, 1954, pp.33-36. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. 

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