CONIMBRIGA, A COIMBRA ROMANA


1.  INTRODUÇÃO

  «A Durio Lusitania incipit: Turduli veteres, Pæsuri, flumen Vagia, oppidum Talabrica, oppidum et flumen Aeminium, OPPIDA CONIMBRICA, Collipo, Eburobritium [...]». 

A cidade romana foi instrumento da cultura imperial, foi instrumento de romanização. No decorrer do século I d.C., foi feita a urbanização dos oppida célticos acelerando desta forma as trocas culturais. Realizadas por decreto pelas leis que visavam antes de tudo trazer esses povoamentos indígenas para as malhas políticas do império romano, feitas por Augusto e reelaboradas pelos Flavios.

Estudamos Conimbriga, uma cidade romana da Lusitânia, que inicia sua urbanização no século I d.C. A Lusitânia foi uma das inúmeras províncias que no século I d.C., se tornaram portadoras do direito latino, o chamado Latium Minus, no ano 73, através de Vespasiano, da dinastia Flavia. Vasco Gil Mantas  identifica as bases dessa interação cultural de forma mais intensa dos romanos para com os oppida celtibéricos quando afirma:

[...] o processo de criação destes municípios era simples: os oppida cujos notáveis se comprometessem a gerir a autonomia municipal de acordo com a lei romana ascendiam à categoria de município e os magistrados recebiam a cidadania no termo do seu mandato, sendo inscritos na tribo Quirina, que era a da família imperial. [...]
[...] os novos municípios incluíam na sua designação o epíteto Flavia ou Flavium. [...]
[...] e numerosos oppida entretanto romanizados, como Flavia Conimbriga [...].

Neste ponto cronológico se delimitou nosso trabalho, pois foi nesta época que o status de oppidum céltico, de “barbárie” sofre uma alteração social profunda na Lusitânia, fazendo com que cidades como Conimbriga, um oppidum rústico, se tornasse Flavia Conimbriga, possuindo habitantes indígenas com direito a cidadania romana, uma alteração sobretudo política, cultural.

É nosso objetivo perceber esse diálogo cultural entre celtas e romanos, onde se permite verificar os elementos indígenas mesmo depois do direito latino ter sido imposto, revelando características locais nessa que foi uma cidade indígena romanizada. A partir de meados do séc. I d.C., Conimbriga inicia um processo de reconstrução do espaço interno do antigo oppidum e desenvolve aptidão de cidade com característica romana. Ela passa a fazer parte do mundo colonial romano e vai sofrendo em seu espaço urbano alterações culturais aceleradas; os muros crescem, as inscrições em latim aparecem, surge um fórum imponente, termas são construídas. O indígena participa desta construção em pedra, modelada pelo estilo clássico romano, mas levantadas pela mão nativa. Nesta forma de relação, uma modalidade social do “ser-para-o-outro”, percebemos uma tentativa do “agir céltico,” conimbricense, se aproximando do estilo de vida romano. É nesta tentativa de aproximação que às vezes percebemos o que eles tinham de cultura céltica/ indígena, por não possuírem um know how profundo acerca dos métodos de construção extraídos sobretudo de Vitruvio, com base no qual construíram os mosaicos de Conimbriga. Estas observações nos trouxeram inúmeras perguntas à urbanização de Conimbriga, entre as quais destacamos as seguintes:

Por quê existiu o predomínio de um repertório de motivos geométricos indígenas nos mosaicos, não tem estilo romano com em Itálica e África do Norte?

Por quê o traçado da planta da cidade não é ortogonal, e sim poligonal, não vitruviano por excelência?
por quê justamente o fórum é 100% vitruviano com 38,10 x 25,35 m. de planta, e a largura é igual a dois terços do comprimento e a lateral ocupada por nove tabernae?

Desta forma, para abarcar estas questões percebemos a importância em explorar como foi o processo de romanização que aconteceu em Conimbriga, um oppidum de traçado ortogonal irregular verificado na planta e nos seus diversos bairros povoados. Estas perguntas nos intrigaram e nos incentivaram ao aprofundamento da pesquisa, buscando analisar e identificar os diferentes instrumentos utilizados pelos romanos para empreender a prática imperial. Dentre eles, delimitamos nesta monografia a análise da cidade em seu aspecto de romanização levando em consideração os seguintes objetivos:

1. verificar a interligação entre as mudanças no espaço urbano do oppidum de Conimbriga e a mudança de status jurídico-administrativa durante o processo de romanização;
2. identificar o padrão de construção pública romana de acordo com o contexto do sistema urbano local e regional;
3. relacionar este contexto político-econômico com sua economia envolvendo sistemas de produção, distribuição e consumo na sociedade como um todo;
4. verificar a sociedade local de Conimbriga em suas relações de poder dentro da província Lusitana.
Para identificar a mudança no padrão de construção da cidade, nos utilizamos de mapas, gráficos e documentação material obtida através das escavações arqueológicas do parque de Conimbriga. Deste modo, os mosaicos, as estelas, estátuas, o fórum, a insulae, as termas, serão observados como veículos de romanização, obedecendo a um padrão cultural latino. Dentro deste contexto, estudamos o processo que levou o oppidum de Conimgriga a atingir o status de Municipium. Porém, primeiramente é fundamental historiar sobre a lenta chegada dos romanos na Lusitânia, antes da sua anexação efetiva ao domínio romano, como veremos a seguir.

2.  CONQUISTA E ANEXAÇÃO DA LUSITÂNIA PELOS ROMANOS

Em 218 a. C., os romanos alcançam o território peninsular. Isso ocorreu devido à segunda guerra púnica com Cartago, na África do Norte, que levou ao desvio de cena dos romanos para esta região, que continha inúmeros povoados, portos e fortes cartagineses, principalmente no período de Hanibal Barca. Os romanos vencem a guerra em 202 a. C., e já nesta época se levarmos em consideração Posidônio, Estrabão, Políbio e Plínio – o naturalista , que fazem uma narração geográfica da região, esta seria habitada por duas grandes populações indígenas: os celtas, celtiberos, iberos, vetones e os cónios.

Em 197 a. C., a península foi dividida em duas províncias: a Citerior, dos pirinéus ao rio Almanzora e daí para o oceano ao sul seria a Ulterior. Em 194 a. C. ocorre o contato com a sociedade tribal dos lusitanos, por causa dos freqüentes ataques as lavouras. Públio Cornélio Cipião, governador da Ulterior, os vence. Lúcio Emílio Paulo, que assumiu o imperium proconsulare  em 191 a. C., da Ulterior, é derrotado pelos Lusitanos em Lycon, onde relata ter perdido 6000 soldados.

Os lusitanos vão se tornando um problema para os governos da Citerior e da Ulterior, em 186 a. C.. Neste mesmo ano lusitanos e celtiberos atacam Hasta na primavera. Os romanos os vencem, mas não em definitivo. Foi Lúcio Licinio Luculo, governador da Citerior em 151 a. C. que, auxiliado por Servio Sulpicio Galba, pretor da Ulterior, conseguiu vencer com relativo êxito os lusitanos. Diante da derrota, os chefes lusitanos negociam a paz. Galba finge aceitar e lhes convocam para doar terras. Divididos em três grupos, os abriga a entregar as armas e manda os soldados aniquilá-los. Os que não morreram foram enviados a Gália como escravos. Delatado como “ato desonroso”, Galba foi julgado em 149 a. C., mas absolvido. Foi um discurso de Catão a favor dos lusitanos neste episodio, que apesar de não ter conseguido a condenação de Galba, determinou a criação de um tribunal para julgar os abusos dos pretores.

Em 150 a. C., começam as “guerras viriatinas”. Viriato, chefe dos lusitanos, praticava o saque no sul do Tejo. Consegue fugir de Galba e três anos depois estava no vale do Guadalquivir em outro saque. Cercado por Vetilio, governador da Ulterior, foge para cidade de Urso, depois seguem para Barbesula, onde vence Vetilio.

Em 146 a. C., Viriato ataca Segóvia e Segobriga, cidades a favor dos romanos. Existiam porém, cidades revoltosas indígenas. São nestas cidades que em fuga os indígenas encontram alento. Em 143 a. C., as tribos dos Arevacos, Belos e Titos revoltam-se contra os romanos. Em 140 a. C., Viriato consegue sua mais importante vitória, sobre a legião de Fabio Maximo Serviliano, governador da Ulterior. Porém, negocia a paz com Serviliano e é reconhecido como “amicus populi romani” , mas o tratado dura pouco tempo. No mesmo ano, o governador da Ulterior Servilio Cepiao declara-lhe guerra. Desta vez, cercado, Viriato manda dois guerreiros seus negociar com o governador da Ulterior. Cepião os compra e na volta estes matam Viriato.

Sertório foi outro problema para Roma na região. Sendo cônsul em Roma, Gneu Papírio, em 83 a. C., Sertório foi nomeado pretor da Citerior. Quando tumultos aconteceram pela vitória de Sula sobre Cipião e Norbano, Carbão desconfia da fidelidade dos pretores nas duas províncias hispânicas. Sertório foi enviado para impedir que tropas dispersas apoiassem Sula. Quando Sula toma Roma em 82 a. C., Sertório estabelece nos Pirineus uma legião sob o comando e Livio Salinator, visando impedir o envio das tropas de Sula à Hispânia. Sertório é derrotado e foge para Cartagena. No ano  de 80 a. C., os lusitanos enviaram mensageiros a Sertório para uma aliança contra os romanos. Alguns episódios da guerra sertoriana no sul da Lusitânia são conhecidos. A cidade de Lacobriga foi palco de batalha. Cecílio Metelo Pio, governador da Ulterior em 79 a. C., sabe da base de Sertorio em Lacobriga. Metelo sabendo que a cidade dispunha de um único poço de abastecimento de água, faz um cerco para obter rendição pela sede. Sertório envia 6000 homens com provisões e o vence.

Sertório a esta altura, 77 a. C., dispunha de tropas indígenas, um enorme exercito aliado aos seus soldados romanos. Perpena, seu antigo conselheiro e oficial o assassina em 72 a. C. Aí chega o fim do longo período das resistências locais.

Ficou claro para nós que os romanos lutavam para se estabelecerem na região por variados motivos, sobretudo econômicos, mas também estratégicos e militares. Os romanos em outras partes do império, ainda sofriam o perigo de revoltas dos celtas e elas já duravam dois séculos. Os romanos inseriram como precaução o tumultus gallicus, em lei, como uma emergência admitida. O recrutamento em massa de soldados romanos contra os celtas ainda é mencionado como lei na cidade colônia Genetiva Julia na Hispânia em 44 a. C .

A pacificação dependeu de acordos com as oligarquias locais, que eram forças econômicas necessárias ao império, e sua assimilação merece nossa atenção. Durante esse mesmo período de pacificação, iniciou-se trocas comerciais entre os fortes militares romanos e os numerosos oppida da região. Os exércitos necessitavam de mantimentos e nem sempre as provisões podiam vir da itálica. A aproximação dos celtas e outros povos como os Cónios poderia advir deste cambio, destas trocas de provisões. Por outro lado, qualquer outro tipo de riqueza que não fosse produtos agrícolas, como minério, por exemplo, também necessitaria da aproximação das legiões  romanas. Por isso, existem registros da nomeação de inúmeros decuriões ou de deslocamento das legiões para vigiar as minas em toda a Hispânia, sobretudo Vipasca e Ajustrel na Lusitânia, ambas vigiadas por legiões. De qualquer modo, para se construir uma cidade, eram levados em consideração alguns aspectos fundamentais, como por exemplo, povoados altos em montanhas, eram interessantes para defesa militar.

Sabemos que estas motivações econômicas, fiscalizadas pelo império através das legiões militares aceleraram o aculturamento dos antigos oppida pelo incremento de sistemas de trocas e fisco como veremos adiante. A viabilidade econômica dependeu das garantias militares, sendo mesmo um de seus alicerces. Depois da pacificação, estes oppida se encontravam aptos a colaborarem com a coleta de produtos e riquezas da região. Devido aos emergentes postos de escoamento dos produtos agrícolas nos pequenos vici, estes seguiram rapidamente em direção da romanização e como conseqüência disso, modificaram seu antigo status político para municipium ou colônia. Explicando melhor, quando um vilarejo atingia um alto ponto de complexidade social, devido ao seu potencial econômico, seu status administrativo crescia igualmente para o governo da província Lusitânia, e Conimbriga seguiu este caminho, pois de oppidum, tornou-se municipium.

Alguns fatores podem explicar a importância econômica de Conimbriga para a Lusitânia. Sabemos que esta cidade era produtora de vidro, sobretudo o azul, não só da Lusitânia, mas de toda a Hispania. Além disso, dados arqueológicos nos dão a dimensão da produção de moedas em Conimbriga, comparável a outros grandes centros mineiros da Hispania . Produzia ainda cerâmica, também em grandes proporções, existindo várias olarias, como a ex oficina maelonis, e as nove lojas para vendê-las, margeavam o fórum.

3 . A PRÁTICA DA ROMANIZAÇÃO IDENTIFICADA NA  REELABORAÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM CONIMBRIGA

3.1.  A ROMANIZAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DE IDENTIDADE E  ALTERIDADE  

Para entendermos o processo de interação cultural que ocorreu em Conimbriga, procuramos sair do modelo binário presente na historiografia herdeira do séc. XIX. Buscamos então os pressupostos da teoria pós-colonial, amplamente discutida na historiografia inglesa, sobretudo nos Cadernos da University of Leicester .

Existe uma extensa e moderna bibliografia sobre o Império Romano, em sua maioria preocupada em traçar uma analogia entre o imperialismo romano e a experiência imperial moderna. Tais estudos baseiam-se numa posição centrista (expansão romana e sua motivação), mais do que num processo hegemônico, pelo qual o governo foi mantido e na integração entre dominado e dominador. Constituem-se em análises silenciosas sobre as percepções daqueles cujas vidas fizeram o Império à margem das condições de produção do conhecimento. Assim, a imagem da ação imperialista romana é descritiva, unilateral mais do que analítica. Muitas vezes, reduz o império Romano a uma entidade invariada e estática.

Atualmente se desenvolvem estudos que buscam desconstruir os específicos discursos e relações assimétricas de poder no Império Romano, defendem a ideia de que o Império Romano deve ser entendido como uma construção que foi usada para unir e dar simbolicamente sentido de coerência a numerosas experiências. Olhá-lo como uma construção não é negar a sua existência. É entender a forma pela qual esta existência foi criada e reproduzida historicamente. Questionam a noção de que o Império tenha sido sempre uma única realidade, uma totalidade cuja verdade pode ser reduzida a um conjunto básico de princípios organizacionais ou forma coercitiva. Os seguidores da teoria pós-colonial ressaltam, ainda, que não pretendem meramente trocar uma analogia por outra, quer dizer, aquela de um mundo colonial para um mundo pós-colonial. A principal preocupação não é comparar formas de imperialismo, mas os “discursos” que o tornam possível.

Paralelamente, tem sido objeto de reflexão historiográfica o conceito de romanização , entendido como modelo básico de mudança social das províncias romanas. Por um lado, a romanização é vista como um processo que envolve a adoção homogênea da cultura romana pela população indígena e como um forma de progresso moral e social, pois parte-se do suposto abandono da identidade nativa pela adoção da imagem romana como um ato positivo e deliberado. Tal ideia marcou os estudos arqueológicos e as escavações. O conhecimento e a metodologia de análise estavam baseados na oposição básica entre duas categorias: civilizado e primitivo.

Recentemente, esta postura tem sido criticada por aqueles que seguem os pressupostos teóricos pós-coloniais, os quais vêm a romanização como um processo que indica mudanças sócio-econômicas ou diferentes processos de interação. Nesta perspectiva fica implícito o reconhecimento de um contínuo desenvolvimento da cultura material nativa, aberta a processos interativos diferentes em épocas distintas e em resposta às escolhas e demandas locais, resguardando-se a alteridade.

Frente a isso, nossa problemática pretende desenvolver o estudo, com base na análise de documentação  textual e material, sobre as relações de poder entre Roma e a população dominada, ou melhor, considerar os aspectos criativos das práticas do poder e avaliar os resultados positivos do poder obtido pelos grupos indígenas através da “negociação colonial”. Consideramos que a lógica binária explorador/explorado, ou colonizador/colonizado, oculta a realidade das relações de poder, pois um certo grau de independência das cidade no mundo romano permitiu um desenvolvimento e originalidade diferentes. Objetivamos repensar o nosso conhecimento sobre as sociedades indígenas em contato com Roma, detendo nossa atenção no dinamismo da hegemonia romana e nos sinais locais de negociação e resistência. A resistência pode adotar múltiplas formas: violentas explosões de desobediência, episódio moderado de desobediência e atos de resistência cotidiana, em pequena escala e repetitivos, os quais não têm porque apoiarem-se, necessariamente, numa ideologia concreta. Manifestam-se através da transformação da cultura material, a cidade, dos grupos dominantes, preservando a identidade local.

Ed Said  defende a hipótese de que o imperialismo moderno desencadeou um processo cultural globalizado entre ocidentais e não-ocidentais, tornando-se impossível ignorar ou minimizar a experiência sobreposta de ocidentais e orientais, a interdependência de terrenos culturais, na qual colonizador e colonizado coexistiram e combateram um ao lado do outro por meio de projeções, geografias, narrativas e histórias rivais. Defende, desta forma, a existência de conexão entre o imperialismo e a cultura, na medida em que, compreende a experiência imperial como um processo ou,  a prática política de estabelecer e governar um território distante, a qual é sustentada e, talvez, movida por potentes formações ideológicas.

Utilizaremos a noção de “fricção interétnica” , para tornar inteligível as relações que envolvem grupos indígenas e a variedade de classes assim abrangente. Um estudo centrado no caráter antagônico dessas relações, com uma noção que supõe, desde logo, que o sistema interétnico constituído pelos mecanismos de articulação das unidades étnicas em contato se apresenta em permanente equilíbrio instável e que o fator dinâmico do sistema está no próprio conflito, seja manifesto ou seja latente.

O termo etnia, em geral é empregado para designar um grupo social que se diferencia de outros grupos por sua especificidade cultural. O conceito de etnia está ligado aos paradigmas que envolvem grupos étnicos e suas culturas .

O problema da etnia celta e do processo de mudança social através do contato latino, aqui definido como romanização, deve ser entendido como um processo de interação entre a alteridade céltica e identidade romana dentro de uma comunidade mista, inseridos num processo de fricção interétnica, baseado nas relações assimétricas de sujeição e dominação. Isto significa que as unidades étnicas em contato – romanos e celtibéricos – guardam relações de contradição.

A identidade étnica é quase sempre  o produto da interação de percepção interna e resposta externa, de forças que operam no interior do grupo étnico ou são impostas de fora. Por isso, dizemos “identidade e alteridade”. Segato  afirma que um contexto colonial, onde nele existem etnias diferentes a seguinte afirmação:

É por isso que, nesse contexto, multiculturalismo e pluralidade étnica são fenômenos que se superpõem e, por outro lado, as categorias a que dão lugar são intercambiáveis. Elas tem uma raiz de uma história particular, um mesmo referente sociológico.
                     
Essas trocas culturais claramente percebido em Conimbriga, pela sua relação dialógica entre indígenas e romanos, tido aqui como agente ou fator externo. Situações de contato entre grupos étnicos diferentes trazem à tona um contato entre símbolos, que manifestam suas experiências divergentes lado a lado. Identificar as bases culturais de uma etnia, nos levou a entender a estratificação social que existiu na cidade de Conimbriga. Já foi identificado na epigrafia de Conimbriga, referencias à vários estratos étnicos diferentes, sobretudo célticos. Abaixo, inscrição que identifica um destes estratos urbanos indígenas:

Lares Lubanci Dovilonicorum – representando o culto aos lares familiares desta gentilitas da tribo dos Lubanci. É bom se ter em conta que esta tribo fazia parte da gens dos Dovilonicos.

A organização das gentilitates  (sem esquecer que esses termos gens e gentilitas têm um sentido um pouco impreciso porque foram usados pelos autores romanos para descrever uma organização social diferente à sua) sobreviveu à romanização. Identificamos portanto estes diferentes estratos sociais, entre os habitantes de Conimbriga antes dos romanos:
1. Dovilonici
2. Lubanci
3. Pentonici
4. Conios (expulsos pelas tribos acima e que fez derivar o nome Conim – briga . um sufixo céltico). Esta tribo apresentava uma espécie de escrita particular. Eregiam pedras tumulares com esses caracteres indígenas litográficos. O fato de Conimbriga apresentar estelas em latim, demonstra o nível de romanização que os povos indígenas sofreram. Isto é “identidade e alteridade”.

A sociedade céltica não apresentava um conjunto de leis, mas sim normas de conduta estabelecidas pela ancestralidade mantenedora de uma longa tradição. A solidariedade no trabalho e na guerra e o respeito dos costumes ancestrais era obrigação de todos os membros de uma tribo, mas não com as tribos vizinhas, como em um sistema de federação. Ficou claro para nós que as tribos podiam ficar amigavelmente ao lado dos romanos sendo classificados como amicus populi romani , “amiga do povo romano”. Isso permitiu o avanço romano através de negociação não só na região de Conimbriga como também no sul da Gália, vide os fatos relatados pelo romano Julio Cesar , como veremos a seguir:

XXXVII – Na mesma ocasião em que esta resposta se transmitia a César, chegavam-lhe embaixadores não só dos Héduos, mas também dos Trevicos. Queixavam-se os Héduos, de nem ainda reféns poderem comprar a  paz de Ariovisto, pois estavam as suas fronteiras sendo assoladas pelos Harudes, recentemente transportados à Gália.

A esta negociação romana chamamos de negociatio. Isso ocorreu na Gália, na Hispania, particularmente na província Lusitânia, no caso de Viriato, chefe guerreiro nativo.

Depois desse antigo estrato social ter se estabilizado desde o ano 500 a. C., quando da chegada dos Celtas de classificação antropológica “Hallstaat Tipo - C “, Conimbriga recebe a cultura romana, combinam suas culturas, sobretudo no séc. Id. C., gerando o hibridismo estudado neste trabalho. Exatamente estas diferenciações culturais – a região, os costumes, a linguagem, instituições; fizeram com que o elemento híbrido, de oppidum passando à municipium.

A princípio poderíamos afirmar que isso foi realizado devido a um preocupação constante com o poder de defesa do império, sendo necessário consolidar a conquista e controlar os indígenas. O passo seguinte foi a criação da municipalização dos  oppida, realizada com a coopitação das elites locais que reclamaram um novo status jurídico para suas cidades. Isto significou a concessão de privilégios em troca da assimilação do direito romano na gestão pública da cidade com a renúncia das fórmulas administrativas próprias.

Paralelamente a esse processo de romanização, observamos a sobrevivência de determinadas estruturas indígenas nas populações, e em Conimbriga não foi diferente. Percebemos isso no projeto urbano da cidade, muito divergente de uma concepção vitruviana para uma cidade romana. Na Lusitânia, apenas Aqua Flaviae apresenta uma planta regular, com a observação do cardus e decumanus, ou seja, o planejamento assimétrico vitruviano. Conimbriga e as outras continuaram com o antigo traçado do oppidum céltico, bastante diferenciado. A ausência de uma planta vitruviana, sem cardus ou decumanus, implica uma utilização do espaço utilizado pelos indígenas, em habitações anteriores, o que percebemos como um estado híbrido de culturas, uma permanência.

Na verdade a planta da cidade não é quadrada, mas um polígono muito irregular. Sabemos da importância para os romanos da sacralidade na construção da cidade, repleta de ritos e de conformidades, e que Vitruvio explica detalhadamente em seu tratado “Os dez livros de Arquitetura”. Diria que a regra vitruviana tinha que ser observada como uma lei, pois estava inserida na tradição romana. O fato de Conimbriga apresentar um urbanismo bastante irregular faz considerarmos sua planta como híbrida, celto-romana, mantendo sua identidade depois da alteridade.

Neste sentido gostaríamos de relatar algumas considerações feitas pelo romano Marco Lúcio Vitruvio  em sua obra “Os dez livros de Arquitetura”, onde percebemos sua visão em relação às construções dos indígenas celtas da Lusitânia, na qual exprime uma ideia de “primitivo”, de “rudimentar”.
[...] no princípio plantaram árvores e entrelaçaram seus ramos, levantaram paredes que cobriram com barro; outros edificaram com palhas secas, sobre os quais colocavam madeiras cruzadas, cobrindo com canas e ramos secos para resguardar-se das chuvas e calor; mas para que semelhantes artefatos pudessem resistir as chuvas invernais, os rematavam na ponta e as cobriam com barro para que, por causa dos galhos inclinados, escorresse a água [...] Podemos explicar que isso se passou em suas origens (dos homens), como temos dito, porque hoje mesmo os vemos em algumas províncias, como na Gália, na Hispania, na Lusitânia e na Aquitânia, cujas construções ainda seguem cobertos com palhas e gravetos [...]

Nestas palavras escritas por Vitruvio, verificamos um ponto importante, a imagem de região primitiva que os romanos tinham dos indígenas lusitanos, espelhados em suas construções rudimentares, que segundo o autor, remetia aos tempos dos homens selvagens do passado remoto. É importante ressaltar que este tipo de construção modesta existia em Conimbriga, expressa no bairro indígena que permaneceu habitado mesmo depois da cidade ter construído o centro político romano, o fórum de Augusto. Isso exemplifica o cuidado que o romano tinha no lidar com culturas diferentes à sua, fazendo-se adaptarem paulatinamente aos novos hábitos, permitindo uma razoável acomodação da  cultura nativa.

Aqui não podemos deixar passar a ligação estreita de Vitruvio com o culto imperial a Augusto, e conseqüentemente, o urbanismo augustano bem ao gosto de Vitruvio. Em Conimbriga, podemos observar esta ligação no busto de Augusto encontrado na mesma cidade. O busto de Augusto aqui encontrado faz parte das inúmeras obras dedicadas a este imperador em Conimbriga como retrato do culto imperial. Conimbriga apresenta ainda um templo dedicado a ele bem como inúmeras estelas votivas e aras do mesmo imperador.

Analisando a obra de Vitruvio, podemos verificar que a mesma visava exaltar o Império Romano. As políticas imperiais pós Julio César, mostram o quanto a arquitetura vitruviana foi veículo para tanto, como podemos perceber no trecho de sua obra “Os dez livros de Arquitetura”, a seguir:

Na longitude pelo lado paralelo do Fórum, ou praça pública, incluindo as dos ângulos, existem oito; mas no lado oposto, incluindo com os ângulos, não há mais que seis, porque neste lado foi suprimido as colunas do meio por temor que bloqueassem a vista do templo de Augusto, que precisamente está situado no meio da fachada, no centro da praça pública e do templo de Júpiter [...]

Por isso em Conimbriga existe um pequeno templo dedicado a Augusto. Por isso também foi encomendado a seu busto, um retrato imperial em si, e tantas outras aras dedicadas a ele.

Observamos que na medida que Vitruvio critica a “primitiva cultura selvagem da Lusitânia”, ele esboça a função do seu projeto urbano: ressaltar a potestas de Roma; saldar o Imperador. Aí ele se torna veículo da propaganda do Império Romano com sua arquitetura voltada para este tipo de poder, como bem expressa em sua obra, quando diz:

[...] oh César! Sinto-me apoiado com a autoridade dos grandes homens e fazendo uso de seus próprios sentimentos e opiniões, tenho escrito estes livros .

Há também algumas inscrições, em dialeto local, nas estelas votivas com o paralelo nome em latim. Existe uma resposta indígena ao projeto municipalizador de Roma, o nosso principal objeto na pesquisa, escolhendo Conimbriga como local de estudo para estas transformações sociais. Isto porque o Império Romano estruturado num sistema hierárquico de províncias, civitates e municípios, teve como instrumento mobilizador da experiência imperial, a cidade.

Jorge de Alarcão, um arqueólogo português, com diversos trabalhos sobre a província Lusitânia e particularmente sobre Conimbriga, creio que avança mais no problema dos oppida romanizados. Este autor percebe uma interação cultural, e identifica o problema das divindades celtas na Lusitânia. Nesse ponto afirma:

[...] a designação Latina a par da indígena demonstra, da parte das populações nativas, o conhecimento dos deuses romanos; e não somente isso, mas o reconhecimento de que os seus deuses e os latinos afinal se equivaliam [...] não nos deixemos, porem, enganar. Quando uma ara é dedicada ao deus Mars ou ao deus Mercurius, é verdadeiramente o Romano que se adora? [...]; tais inscrições serão portanto ofertas a divindades indígenas que se mencionam pelo nome Latino, não pelo nativo .

O curioso é observar, com o passar de centenas de anos, que o contato com os romanos fez estes povos “absorver latinidades”, entretanto construindo uma grande releitura da cultura romana, produzindo diferenças que se revelam de forma divergente de uma latinidade por excelência. A essas trocas entre atores sociais divergentes, damos o nome de interpretatio. Estes aspectos de sincretismo podem ser analisados na sua cultura material, por exemplo. Um mosaico com um motivo tipicamente romano – o da caça ao veado – é apresentado como absorção da latinidade em sua plenitude.

Neste sentido, a cidade de Conimbriga receberá no presente estudo um olhar que irá enfatizar suas construções urbanas que muito pode nos dizer de sua vida cotidiana, seus costumes, suas crenças, num contexto de que a própria cidade foi instrumento da cultura imperial.

Não estamos aqui afirmando que as hostes de guerreiros celtas migraram do centro da Europa, mais precisamente na atual região austríaca, a antiga Panonia, no vale de Hallstaat, estabelecendo-se na Lusitânia e conseqüentemente, os contatos com os romanos. Isto porque as migrações ocorreram por volta de 500 a. C., o que proporcionou aos celtas, contatos culturais diversos – fenícios, gregos, cartagineses, íberos, etc. - o que também aponta para um aspecto contrário ao discurso de autores clássicos que aludem aos celtas como “selvagens montanheses”.

Em nosso trabalho pretendemos analisar o que realmente permaneceu de indígena, de céltico, durante a romanização, buscando redimencionar o olhar que traz uma idéia de “passividade” por parte dos indígenas frente ao Império Romano, que muitas vezes encontramos na literatura quando trata deste diálogo indígeno-romano.

3.2.  A CIDADE ROMANA COMO VEÍCULO DA ROMANIZAÇÃO – CASO DE CONIMBRIGA.

A cidade romana foi o  instrumento de poder da cultura imperial. No decorrer do século I d. C., houve a urbanização artificial dos oppida romanizados, digo “artificial” porque foram realizadas por decreto antes das obras começarem. Essas leis, como a  Lex Municipalis, começaram a ser colocadas em prática no período augustano e se solidificaram no período flaviano. Conimbriga sofreu diretamente o impacto dessas leis “civilizatórias”que tornaram o oppidum rusticus em municipium flavia conimbriga.

De fato, a importância da cidade no império romano por razões estratégicas e econômicas mobilizava inúmeros destacamentos das legiões, para garantir o tranqüilo escoamento das riquezas produzidas nela, ao mesmo tempo que era palco do “agir civilizatório”. Podemos considerar a cidade romana como a maior construção cultural que o império produziu.

Desta forma, os oppida indígenas foram transformados em cidade, em município, e dezenas de outras unidades administrativas de menor tamanho. Percebemos que foram instituídos com o intuito de descentralizar o governo da província, possibilitando desta forma melhor fiscalização realizada pela capital da província Lusitânia, Emerita Augusta. Através de uma extensa malha burocrática, a Lusitânia tinha sua riqueza controlada, com o fiscus, o census e a contribuição stipendiaria se necessária.

Numa sociedade verticalizada, profundamente hierarquizada como a romana, nada mais natural que se classificasse os povoamentos de acordo com o seu tamanho e envergadura geográfica, além de interesse econômico e militar. Desta forma seria interessante demonstrar de maneira ampla, pela ótica romana, a verticalização na organização provincial, nos moldes como foram demarcados na província da Lusitânia, relacionadas abaixo:

1. Conventus - subdivisão de província; a Lusitânia tinha três: o pacense, o escalabitano e o emeritense. Um conventus podia ter onze ou mais civitates. Sua função era a de garantir a presença da máquina administrativa romana no interior e era na cidade capital de um conventus habitada sobretudo por cidadãos romanos da itálica ou mesmo de Roma. Por isso sua importância era sobretudo jurídica e ali existia os tribunais para se julgar litígios e delitos cometidos no interior. Sem esses conventus, Roma perderia o controle do império vasto como era. Agregado a esses valores, ou talvez por eles mesmos, a riqueza produzida na província era contabilizada ali mesmo, sendo responsável que era pelo comercio e pela defesa. Também era denominada de conventus civium Romanorum.

2. Civitate - subdivisão de cada conventus; um conventus podia ter vários civitates. A civitate era uma divisão territorial onde se levou em consideração seus componentes étnicos, seus povos, porque os romanos praticando a hospitalidade, preferiam negociar tribo a tribo comercialmente, e com um representante romano em cada uma delas. Isso evitava conflitos entre tribos rivais aumentando o controle sobre elas.

3. Coloniae - uma cidade totalmente romana construída sem a ajuda de indígenas; por exemplo, Emerita Augusta, mandada erguer pelo próprio Augusto através da mão de obra das legiões desmobilizadas por um longo período de paz.

4. Municipium - segundo tipo de cidade romana, uma cidade média, várias vezes citada por Vitruvio, mas que aproveitou a geografia do oppidum e de sua população nas obras. Existem poucos cidadãos romanos de fato, os magister e questores. Esta era a situação de Conimbriga.

5. Civitas - pequena cidade sem importância política e que dependia da infra-estrutura econômica/administrativa de uma capital regional, chamada “capital de civitas”. Conimbriga era uma capital de civitas. Nesta capital de civitas existia um precioso documento, o tabularium, um livro de leis e regras da política romana para a região. Os governadores em viajem sempre ali iam para fiscalizar ou pernoitar quando em viagem.

6. Republica - quando em Roma assumia um Imperador de um tribo diferente da anterior, era comum se mudar o epíteto das cidades do Império. Por isso Conimbriga muda sua legislação para Respublica Conimbrigensis, quando o Imperador era da tribo quirina.

7. Populi - cada conventus tinha vinte e quatro populi ou mais; as populi eram vilarejos indígenas rústicos e de pequenas dimensões. Os romanos preferiram governar as regiões pelos Conventus e não diretamente pelos populi.

8. Miliario/centum - fortificação militar geralmente situada nos limites de fronteira entre civitates. Eram assim denominados porque os romanos construíam este forte militar com base no sistema quilométrico romano, a chamada milia pasum, ou centrum. Era similar ao sistema de contagem por estádios.

9. Vicus - a tradução literal seria bairro. É um tipo de forte militar. Foi aproveitado o antigo assentamento indígena para construí-lo. De tamanho bem menor do que uma coloniae ou um municipium, o vicus era na verdade dependente deste; por exemplo, o vicus Baedoro, (hoje Miranda do Corvo), pertencia a Conimbriga, inclusive estava incluso no território deste municipium. Tinha uma função militar.

10. Terminus - cada terminus podia possuir cerca de setecentos castrum ou mais. Significa linha de fronteira. Com o culto de Augusto foi erigido, nas linhas de fronteira, monumentos dedicados ao seu culto de forma que se passou a chamar esses pilares marcadores de termini augustales.
 
11. Castelum - na verdade, este tipo de povoado foi concebido pelos romanos aproveitando-se os oppida anteriores, e reorganizando-os como posto militar. É errôneo considerá-los como simples oppida. Pode se considerar como um acampamento militar. É o mesmo que castrum ou castro.

12. Territoria - demarcação das civitates por meio dos padrões termini augustales, realizada por Articuleio Regulo, no século I d. C., ano V, à mando de Augusto, num total de quatro territoria.

13. Castrum - ou castro. O mesmo que castelum.

14. Villae - um povoado rural, agrícola, que podia abrigar uma ou dezenas de famílias do interior, era constituído por uma pars rústica e uma pars urbana. Anca era uma villae pertencente a Conimbriga e distava dela cerca de 30 km. As villae tinham uma especialização em singulares produtos agrícolas, tais como o vinho, o garum, o oleum.

15. Mansio - ou mansiones; pequeno povoamento rural, menor que uma villae.

16. Vici - era um povoado não romanizado localizado em áreas remotas. Apresentam nomes não latinos. Como exemplo temos o Dercinoassedenses vicani Cluniensium.

17. Pagi Suburbanus - subúrbios ou distrito rural de uma cidade romana e que tinham importância comercial por apresentarem um grande mercado. Existiram vários pagi famosos pela riqueza ou por disputas judiciais. Entre estes destacamos o pagus de Emerita Augusta, que a arqueologia ainda não nos trouxe o nome, o Pagus Rivi Larensis na costa atlântica, o Pagus Carbulensis situado em Carbula. Ali, o comércio era regulado por leis como a ius nundinandi que garantiam a feira de oito dias.

18. Cidades peregrinas/ou itinerantes – nome dado às povoações não romanizadas por opção própria ou por acordos de guerra e por isso, pagavam impostos vultuosos.

19. Oppida rusticus - eram os antigos povoamentos indígenas que por se situarem em montanhas afastadas, não tinham sido alvo de romanização, certamente por falta de interesse econômico em sua região. Pagavam o alto imposto de cidade stipendiária.

3.3.  O ESPAÇO URBANO DE CONIMBRIGA – SUPORTE DO DISCURSO ROMANO DE PODER: UMA MENSAGEM.

A romanização esta intrinsecamente ligada ao urbanismo romano. Monumentos, estatuária, mosaicos, estelas funerárias, inscrições votivas; tudo realizado com um mesmo propósito, a mesma motivação: romanizar por meio das construções da cidade.

Para podermos entender as obras arquitetônicas de Conimbriga no período de Augusto, nos orientaremos pela obra de Martine Joly  “Introdução à análise da imagem”, que explora a análise da mensagem visual fixa, as diversas significações da imagem e as resistências que a imagem pode suscitar, bem como as funções que pode cumprir. A imagem é universal e é produzida pelo homem desde a pré-história até os nossos dias. Ela traz em seu bojo uma significação, uma “mensagem”. Qual a mensagem que o imperador Augusto desejava passar aos habitantes de Conimbriga, através das construções e como elas revelam a relação identidade/alteridade?

Ao trabalharmos com a análise da imagem precisamos dar um tratamento diferenciado a ela, pois a imagem é um documento, a imagem do Imperador é o seu retrato. Lidaremos  com a percepção da imagem e sua interpretação. Neste sentido, em nosso trabalho, trataremos da análise das construções arquitetônicas produzidas durante o período de Augusto e também na época flaviana.

A obra de Joly mostrou-se vigorosa como instrumento teórico no estudo do espaço urbano daquela cidade. Reconhecer uma ou outra imagem não indica que se está à compreendê-la. Observar, por exemplo, certos motivos geométricos nos mosaicos de Conimbriga não nos informam diretamente sobre a significação precisa e detalhada da imagem. Existem muitas possibilidades entre a imagem e a realidade que ela supostamente deveria representar.

Quando se analisa as imagens, temos que decifrar as significações que a “naturalidade” aparente – e muitas vezes enganosa – das mensagens visuais implica. A imagem é antes de tudo uma produção de mensagem, uma construção. Um dos problemas que nos interessam em Conimbriga é o modo como as imagens foram produzidas. Sabemos que uma imagem é antes de tudo uma mensagem visual. Nela, elementos percebidos, descobertos por permutação, onde elementos indígenas são mesclados a latinos, encontram sua significação não apenas por sua presença ali no fórum, ou no bairro indígena, mas também pela ausência propositada de certos elementos. A imagem é uma mensagem para o “outro”, como por exemplo o busto de Augusto em Conimbriga. Devemos então levar em consideração o estudo da função da imagem e o seu contexto de surgimento, ou seja, o processo de municipalização. Consideraremos a imagem como uma mensagem visual e portanto, sua linguagem, como uma ferramenta de expressão e de comunicação.

Qualquer mensagem exige, em primeiro lugar, um contexto, também chamado de referente ao qual se remete. Em seguida, exige um código pelo menos em parte em comum ao emissário e ao destinatário, algo comprovado pelo fato das imagens exibirem textos em latim e as vezes em língua local, mesmo nas divindades indígenas.

Pensamos ser importante, tal como Kevin Lynch , estudar as imagens públicas, as figuras mentais comuns que um grande número de habitantes de uma cidade possui: áreas de acordo, cujo aparecimento pode ser verificado na interação de uma realidade física única, uma cultura comum. Os habitantes de uma cidade, incluindo Conimbriga, possuem  numerosas relações com determinadas partes dela, e a sua imagem está impregnada de memórias e significações, que transmitem uma mensagem, falam de algo. A cidade é uma construção no espaço, feita em grande escala, o que exige tempo para o habitante percebê-la. A mensagem necessita de um contato, canal físico entre os habitantes que permita estabelecer e manter a comunicação, como por exemplo, o trajeto diário do habitante do bairro indígena em direção ao fórum. Neste caso, a mensagem produzida pela imagem, foi produto de arquitetos romanos que de modo constante alteraram a estrutura de Conimbriga por razões particulares, ou seja, destacar a cultura romana sendo veículo de propaganda dela própria.

A remodelação da cidade com diversas insulae, domus, termae, não foram construídas de modo aleatório.  Essas demarcações territoriais foram feitas levando em consideração o status do habitante de Conimbriga.  O bairro indígena (ver figura 1, anexo III) certamente era habitado por moradores sem a cidadania romana ou pelo menos sem integrar o senado local. O fato de podermos constatar a permanência de um bairro indígena em meio as insulae de Conimbriga já em pleno processo de romanização, nos indica uma certa permissividade de convivência entre aspectos divergentes entre as duas culturas. Por cuidado, o fórum foi construído ao lado da estrada de acesso ao bairro indígena, indicando-lhe superioridade.

Por outro lado, as enormes insulae e termae foram construídas levando em consideração as novas necessidades de Conimbriga, de se adaptar ao agir romanus, protagonizado pelo expressivo número de mais de sessenta homens integrantes do senado desta cidade . As insulae, foram construídas no momento em que os indígenas da cidade adotaram o tipo itálico de domus. Era recheada de vendas comerciais de artesanato. As termas augustianas, obtinham água canalizada à cinco Km da cidade extramuros através de um aqueduto irrigavam o caldarium de águas quentes e o frigidarium  de águas frias. Pensamos que são estes cidadãos romanos que discutem a política do império no fórum, usufruem de termas particulares, moram em casas particulares com jardins sultuosos. Temos como exemplo a domus de Cantaber, o maior de Conimbriga (80 x 40 m) e um dos mais amplos em todo o mundo romano ocidental.

Ao habitante conimbriguense, de cultura indígena mais ou menos preservada, resta freqüentar as termas públicas, ao anfiteatro, ou ainda habitar o seu próprio bairro indígena.

Existe um forte motivo para a consolidação deste modo de vida romano que determinará sua realização – o culto imperial. O culto imperial a Augusto foi responsável por inúmeras obras que mudaram definitivamente a face do antigo oppidum, a principal delas possivelmente foi a do fórum de Conimbriga. O fórum, unificador dos poderes políticos religiosos, comerciais e militares, trouxe a lei romana para mais perto do cotidiano da cidade. O fórum augustano de Conimbriga apresenta um criptopórtico e uma cripta para o culto imperial a Augusto, além de nove pontos de comércio, além da cúria, de função política (vide anexo X). A cidade pode e é veiculo de romanização e como centro político, alterou a situação social vigente anterior a chegada dos romanos. Isto é identidade/alteridade.

A mudança estrutural do oppidum muda sua cultura, identidade, alterando o significado social de seus valores indígenas, tribais. O culto aos lares, gênios ou penates romanos foram utilizados pelos indígenas de Conimbriga como forma de cultuar seus antigos deuses do sincretismo religioso. Para não omitir alguma divindade que pudesse ofender a romanos ou celtas, o artesão realizava a inscrição sob o nome genérico de gênio conimbriga ou lares conimbriga. Sabendo da importância dos cultos populares, o Imperador Augusto se auto-diviniza justamente nestes cultos sob o nome de lares augusti com  a finalidade de trazer à sua figura a adoração dos cultos mais populares. No  de Augusto temos a clara percepção dessa alteração, passo a passo. As divindades indígenas são deixadas de lado, deixando somente uma divindade domestica, os Lares Conimbrigensis para dar conta de qualquer manifestação religiosa. Nestes “lares” foi incluído todo e qualquer tipo de divindade familiar, isso dito de qualquer etnia de Conimbriga, acredito que inclusive “extramuros”, ou seja, nas formas religiosas adoradas nas vicus das redondezas da cidade. Ocorre um sincretismo religioso. Neste período do séc. I d. C., vão aparecendo um leque enorme de construções para o culto de Augusto, sejam elas aras, lápides, pequenos templos, bustos, etc... Todos estes achados foram descobertos na arqueologia do período augustiano no parque de Conimbriga.

Whittaker , percebe que a cidade romana foi veículo da cultura imperial, ao mesmo tempo que ressalta a importância dos valores religiosos romanos como instrumento poderoso nesse processo de romanização. Inscrições dedicadas ao culto de Augusto indicam por vezes serem divindades populares, caso por exemplo dos Lares. Augusto se apropria do mito de que o imperador possui mérito divino, possuindo espírito protetor. Ele mistifica o poder imperial e essa será a essência da cultura imperial urbana nesse momento do século I d. C ; .

Num primeiro momento, poderíamos verificar a existência de uma ara religiosa com a inscrição “in arris martis augusti”, ara dedicada a Marte Augusto, encontrado em um pequeno anexo ao fórum, sendo um pequeno templo dedicado ao culto de Augusto. Num segundo momento, podemos levar em consideração a lápide divus Augustus (divus, “deificado”), também como indício de culto, pois foi erigido por um flâmine provincial em Conimbriga, ou provavelmente pelos seviri Augustales, sacerdotes especiais desse culto augustiano. Encontrar o busto de Augusto, nada mais é do que um “retrato imperial” da vida cotidiana conimbriguense, sendo objeto de culto que se soma a este contexto. Não podemos deixar de falar aqui que nas estátuas encontradas em Conimbriga de deuses inteiramente romanos, encontramos um Apolus Augustus; e um Pietas Augusta.

Uma estátua de Mars Augustus, encontra-se num pequeno templo situado na lateral do fórum. Tudo isso faz parte da crença de que o imperador Augustus, tinha mérito divino, sendo possuidor de um espírito protetor. Por isso suas estátuas foram adoradas, juntamente com um epíteto, pietas, apolus, etc.

A imagem de Augustus nesse caso, possui uma função normativa, muitas vezes dominante na imagem, numa dimensão de instrumento de conhecimento. Isto porque certamente fornece informações sobre os objetos, os lugares ou as pessoas, em formas visuais tão diversas quanto as ilustrações, painéis, estatuas, etc. A imagem é um instrumento de conhecimento porque serve para ver o próprio mundo e interpretá-lo. A imagem não é uma reprodução da realidade, mas o resultado de um longo processo onde foram utilizadas representações esquemáticas e correções. Quando uma imagem é copiada, não se trata da reprodução de uma experiência visual, mas da reconstrução de uma estrutura modelo.

A imagem dessas construções possuem mensagem. Interpretar uma mensagem, analisá-la, não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em compreender que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca um significado aqui e agora, ao mesmo tempo que se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo. Estudar as circunstâncias históricas da criação de uma obra para compreendê-la melhor pode ser necessário, bem como as intenções do autor. Para analisar uma mensagem devemos nos colocar do lado em que estamos, o lado da recepção, levando em conta a necessidade de estudar o conteúdo histórico dessa mensagem, tanto a nível de surgimento quanto a nível de recepção.

A análise da imagem, inclusive da imagem artística, permite ler com maior eficácia mensagens visuais. Isto requer uma desconstrução artificial para quebrar os diversos mecanismos, caminhando para uma reconstrução interpretativa fundamentada. Vimos desta forma, que um dos veículos importantes na consolidação cultural de uma particular etnia são seus símbolos. Eles funcionam como veículos sociais, culturais, políticos ou religiosos para se identificar e para relacionar com os outros. Eles emergem justamente daí: - da necessidade de mostrar as diferenças entre dois ou mais grupos étnicos diferentes, sendo produto de percepção interna a uma resposta externa (caso dos indígenas conimbriguenses aos romanos que ali chegaram). Afirmamos que são reativos as forças de grupos que vem de fora da cultura nativa. Pode existir uma competição entre dois grupos étnicos, visando obter a hegemonia pelas vias de comunicação à população. Podemos perceber isso claramente nas inscrições votivas à deidades indígenas e romanas. O fato revela claramente um lugar de importância de culto destinado a diferentes extratos sociais, mesmo etnias diferentes. As inscrições são em latim, mesmo quando se referem a divindades com nomes indígenas. Nesse caso, o cognome latino sempre aparece me latim genitivo, geralmente usado para designar a filiação paterna do indivíduo.

Para ilustrar essa situação de hibridismo  cultural devemos relatar que em Conimbriga, 33% das inscrições de nomes, cognomina, escritos em lápides funerárias da população, apresentam nomes indígenas, mas se pensarmos em nomes gentilícios, nomen gentilicum, esse número subirá para 75% . Sabemos que essa presença filosófica indígena nos nomes representam de certa forma uma resistência cultural. Cantaber , um homem rico de Conimbriga era dono de inúmeras domus nos diversos bairros da cidade.

Como o nome dele está atestado por inscrições em pedra, podemos descobrir claramente que seu nome não é de origem latina.  Está muito mais aproximado de uma filologia céltica. O nome nas sociedades célticas era gentilício, ou seja, vinha da tribo, do ancestral, geralmente do pai; revelava honra geração após geração. O próprio nome Conimbriga deriva da tribo dos Conios, o que fez derivar o nome Conim (Conios) e -briga- (“fortaleza de montanha”), um sufixo céltico. O nome da cidade aparece duas vezes, com nomenclaturas diversas, sendo Coniumbriga, ou Conembriga no itinerário de Antonino  e em inscrições votivas de período mais antigo, cerca de I a. C.. Isto demonstra que Conimbriga nasce céltica, se romaniza aos poucos num continuum que passa todo o século I d. C., século que consideramos significativo pelas transformações urbanas de oppidum para municipium.

Escolhemos o século I d. C. pelas particulares mudanças que estavam ocorrendo no Império Romano. Pouco tempo antes do século I, em 15 a. C., o urbanismo augustano chega a esta cidade da Lusitânia, Conimbriga. A construção do fórum neste mesmo ano, introduz a cidade na vida pública romana, pois se estabelece uma relação mais estreita entre romanos e indígenas. Antes desse fato, Conimbriga não passava de um oppidum céltico, mantido pelos chefes dos Dovilonici, uma etnia indígena. O que aconteceu logo no início do período augustano é mais adentro no século I, sobretudo nos idos de 70 d. C., foi decisivo para a vida desta cidade. Esta data, 70 d. C., já no período flaviano de Vespasiano, dobra as construções arquitetônicas numa magnitude avassaladora – sobrou apenas um bairro indígena – e assume de vez o rosto de uma média cidade romana, o municipium, com todos os atributos do urbanismo latino, ou seja, fórum, cúria, aquedutos, basílica, e um anfiteatro. Aí se destroem as casas indígenas e os monumentos augustanos, substituindo o antigo fórum para erigir o fórum flaviano.

Temos como algo significativo, o fato do oppidum apresentar a presença da cúria, antes do oppidum entrar oficialmente na vida pública romana, através da nomeação de duúnviros e magistrados. Este fato nos faz crer que os chefes do oppidum já tentavam uma “aproximação” ao modo de vida romano, visando aumentar seu status dentro da província da Lusitânia. Por isso, a cúria – destinada para a reunião dos notáveis de uma cidade romana – já existia numa época em que por definição administrativa, ainda era um oppidum. Isto nos deu a ideia de “dominação por consentimento”, por aceitação das famílias e tribos locais ao agir romanus, a nova religião e conseqüentemente, uma nova concepção de cidade. Chamamos a isto de “práticas assistencialistas”, de cooptação das elites locais, de negociatio.

Outra face importante foi o fato de sempre no estudo de Conimbriga, nos depararmos com elementos celtas mesmo após a extensa romanização do período flaviano. O bairro indígena, mantido em suas características mesmo ao lado do fórum, uma lápide dedicada à uma divindade indígena, um mosaico com traços de arte céltica predominando motivos geométricos , em que pode ser observado os simbólicos padrões de cordas entrelaçadas, estilizadas em formato de pescoço de cisne, mais ou menos dessa forma e conhecidos  como “padrão dos cisnes”.  Aparece em metade das imagens de Conimbriga, sempre enfeitando as bordas da obra do mosaico, dando um  aspecto de iluminura. Certamente é uma arte inspirada no La Tène, arte desenvolvida pelas ondas migratórias da região da atual Suíça. Penso que delimitar o elemento céltico do elemento romano seria uma tarefa despropositada. Não cabe aqui tratar de “purismos” e sim de perceber a continuidade de elementos híbridos de culturas particulares, mas que já se mesclavam à três séculos.  
 


4.  CONCLUSÃO: NOSSA AVALIAÇÃO DO SENTIDO DE ROMANIZAÇÃO EMPREGADO E EXEMPLIFICADO EM CONINBRIGA. 


Se o problema étnico não fosse importante para os romanos, eles não teriam se preocupado em dividir para governar. A criação de organismos político-administrativos como os conventus, as civitates, os vici, as villae, foram criados com a intenção de dividir a administração romana em setores diferentes, o que foi dado o nome de vici, por exemplo, que significa “bairros”. A Lusitânia, incluindo Conimbriga, foi pacificada no final do século I a. C., quando as resistências cessaram por tratados de paz, conhecidos como pax romana e isso fez com que se iniciasse uma intensificação da cultura romana na região. O que nós quisemos demonstrar foi que a cidade romana serviu de veículo para a romanização e que nessas cidades provinciais ainda se mantiveram traços da cultura local, indígena, o qual foi verificado durante a análise das construções urbanas romanas que alteraram o padrão interno do antigo oppidum, “intramuros” mas que o mantiveram o traçado irrregular de oppida na topografia exterior, a planta e o “extramuros”.

Firmada a paz na Lusitânia, Augusto assumiu o governo dela em 25 a. C.. Funda a colônia Emerita Augusta que se torna capital da província mais tarde, em 15 a. C.. Foi através de Augusto, nesse período após Emerita Augusta ter sido edificada, que houve maior atenção e interesse em aumentar o controle sobre os oppida ainda levemente romanizados, impedindo possíveis revoltas. Os contingentes de soldados das legiões, agora desmobilizadas por falta de guerras, era motivo de preocupação em Roma, sendo esse inclusive o motivo central da ordem para a construção de Emerita  Augusta. Portanto, pelo menos inicialmente, a fundação de colônias aconteceu por razões de ordem estratégicas, para atenuar tensões sociais.

Conimbriga, nosso objeto de trabalho, não escapou muito desse quadro de modificações geopolíticas. Sendo uma cidade média, antes um simples oppidum, Conimbriga adentrando o século I d. C. se preparava para num primeiro momento, incorporar-se nessa vasta rede de cidades do Império Romano possuidoras de status latino.  Num segundo momento, participa do culto de Augusto, verificado em suas estátuas e inscrições dedicadas a este Imperador divinizado. Por fim, já se aprofundando século I d. C. adentro, Conimbriga se torna Flaviae Conimbriga, transformando-se em municipium.

Para entendermos como foi esse processo de romanização dos oppida celtas, observamos o tratamento dado às povoações que entraram no estatuto romano no período de Augusto e depois sob os Flavios. Os habitantes das colônias, somente habitadas por cidadãos romanos, geralmente soldados aposentados, possuíam direitos totais da cidadania romana, incluindo a inserção do tributum soli. Em segundo lugar, nessa hierarquia  existiam os municipia, fundados nas cidades indígenas de maior interesse estratégico, e onde apenas tinham direito à cidadania os magistrados. Esta era a situação político-administrativa de Conimbriga. Estas instituições municipais já tinham sido regulamentadas por uma lei póstuma de César, a Lez Iulia Municipalis. Os magistrados principais – duúnviros, edis, flâmines e questores – integravam o senado local somente depois de desempenharem seus cargos colegiais e anuais. Também integravam a curia, constituindo com seus familiares a ordo decurionum, que tinha o poder máximo acima da assembléia popular, chamada populus. A situação de Conimbriga era esta. Existia uma terceira categoria de cidades menos romanizadas, as chamadas cidades peregrinas, como Bracara Augusta, que possuíam um cognome imperial, governadas por duúviros e com  privilégios fiscais. Por fim existiam os simples oppida, administrados por magistrados indígenas e conselhos de anciãos. Estes ainda mantinham uma organização social anterior à romana e pagavam severos tributos.
 
Percebemos que na medida em que Conimbriga vai se romanizando, mesmo com  ajuda de elites locais, ganhando status dentro da província Lusitânia com títulos como Capita Viarium (local de descanso apropriado para que viajava de Olissipo à Bracura Augusta numa Via), municipium flaviae, quando igualmente vai mantendo inúmeras características indígenas dando uma idéia de que elas se manteriam ainda por mais tempo.

Isso só pode ser explicado pela existência de alianças locais, não obrigatórias, “à força”, como inúmeros manuais de historia gostariam de fazer crer. Estudos mais recentes do Império Romano nos revelam uma certa liberdade no que diz respeito ao direito de culto, língua e reformas nas aldeias. A mensagem que Conimbriga nos passou em seus monumentos, ruas, muros e lagos artificiais, foi a de um povoado na montanha, distante geograficamente do centro de Roma, mas relativamente perto na mentalidade, o que fez com que se “aproximassem” do estilo de vida romano. Uma modalidade peculiar de “ser para-o-outro”, num espaço delimitado, ou seja, uma cidade indígena sobre administração romana onde essas relações se deram, acredito não com violência, mas com negociação, com privilégios aos chefes indígenas locais. Não podemos nos esquecer que estas remodelações que municipia como Conimbriga sofreram, fruto de políticas augustanas iniciadas em 15 a. C., foram levadas a cabo antes mesmo do senado local ser constituído. Isso indica que os notáveis locais queriam se preparar o quanto antes possível para a entrada na vida pública romana, como conseqüência disso, a construção do fórum, de uma cúria. Por isso podemos afirmar:

- Conimbriga, enquanto municipium, foi uma comunidade céltica organizada à maneira romana, estando normatizada em um quadro jurídico definido por uma lei, a lex municipalis.

Essa mudança político-administrativa foi antes de tudo, uma experiência híbrida, uma diversidade cultural. Cada uma das linhagens étnicas de Conimbriga, ao se aproximarem do governo romano, não se contenta com um fragmento territorial ou um lugar assinalado, embora se possa viver no bairro indígena se assim o quiser. Mas os indígenas de Conimbriga aspiram abarcar outras cidades e assim o fazem, transformando em propriedades suas, portanto romanizadas, inúmeros vicus, villae, mansios, etc... O fenômeno  social da romanização verificado em Conimbriga é, portanto, agregador de valores que serão exportados para fora de seu território, fazendo com que fosse capital de civitas. Concluímos que Conimbriga foi palco de relações de poder sim, de prestígio frente ao Imperium sine fine que era Roma, mas que ao mesmo tempo foram construídas entidades de valor, as reformas urbanas, que demonstravam esta feitura. Sendo antes de tudo trocas simbólicas que deram contexto a introdução de uma nova mentalidade – a romana – em que identidades contextualizadas pelo veículo “cidade”, puderam realizar uma aliança cultural dentro e fora de suas fronteiras apenas geográficas.  

REFERÊNCIAS:

1 – DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

APIANO. História Romana. Traduction y notas de Antonio Sancho Royo. Biblioteca clássica, Madrid: Gredos, 1980, vol. 1. Livro VI.
PLINY.  Natural History. London: Harvard University Press, 1994, vol. II, Livro III.
VITRUVIO, M.L. Los Diez Libros de Arquitectura. Barcelona: Editorial Ibéria, 1955.
2 – DOCUMENTAÇÃO PRIMÁRIA
ARRIBAS, A. Os Iberos. Lisboa: Editorial Verbo, 1967.
CARDOSO, C.F. A cidade Estado. Rio de Janeiro: Editora Ática S.A., 1999.
DUVAL, P.M. (org);  Os celtas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / Cadernos da Unesco, nº 02, 1976.
FICHEIRO EPIGRÁFICO. (Suplemento de Conimbriga) 3 (inscrição 10). Universidade de Coimbra, 1982.
FICHEIRO EPIGRÁFICO. (Suplemento de Conimbriga) 4 (inscrição 11-15). Universidade de Coimbra, 1982.
FICHEIRO EPIGRÁFICO. (Suplemento de Conimbriga) 18 (Estela Funerária de Castro Verde). Universidade de Coimbra, 1986.
FICHEIRO EPIGRÁFICO. (Suplemento de Conimbriga) 30 (inscrição 135-137). Universidade de Coimbra, 1989.
FICHEIRO EPIGRÁFICO. (Suplemento de Conimbriga) 35 (inscrição 157-161). Universidade de Coimbra, 1990.
GARCIA  y BELLINDO, A. España y los Españoles hace dos mil años. Según Geografia de Strábon. Madrid: Espasa-Calpe, 1968.
GUYONVARC, H.C.J. A civilização Celta. Portugal: Publicações Europa-América, 1993.
KRUTA, V. Os celtas. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
MOREAU, J. Die Kelten. Bonn: Emil Vollmer Verlag, 1998.
MOSCATI, S.  et al. The Celts. Londres: Thames and Hudson, 1991.
POWELL, T.G.E. Os celtas. Lisboa: Editorial Verbo, 1974.
SARAIVA, J.H. História concisa de Portugal. Lisboa: Edições Europa-América, 1986.
SAVORY, H.N. Espanha e Portugal. Lisboa: Editorial Verbo, 1969.
SPALDING, T.O. Dicionário de mitologia Céltica. São Paulo: Cultrix, 1973.
STEWART, R.J. Celtic gods, Celtic goddesses London: Blandford, 1990.
VASCONCELOS, F. A arte em Portugal. Lisboa – Cacem: Gris Impressores, 1973.
WOODFORD, S. Introdução à História da Arte da Universidade de Cambridge – Grécia e Roma. Rio de Janeiro: Zahar  Editores, 1982.
3 - OBRAS TEÓRICAS
FINLEY, M.I. Ancient History Evidence and Models. London: Chatto and Windus, 1985.
_____. Aspectos da Antigüidade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992.
FOCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FRANKENSTEIN, S. Arqueologia del Colonialismo. Barcelona: Crítica, 1997.
GOFF, J.L. Níveis de cultura e grupos sociais. Lisboa: Edições Cosmos, 1987.
JOLY, M. Introdução à analise da imagem. Campinas: Papirus Editora, 1996.
LYNCH, K. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1960.
MATTINGLY, D.J. (edit) Dialogues in Roman Imperialism. Journal of Romam Archaelogy, 23. Potsmouth: oxbow Book, 1997.
MOMIGLIANO, A. Os limites da helenização. A integração cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
OLIVEIRA, R. C. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira editora
SAID, E.W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_____. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SEGATO, R.L. Alteridades históricas / Identidades políticas: uma crítica a las certezas del pluralismo global. Brasília: Edit. UNB, 1998.
SILVA, B. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987.
SMITH, A.D. The Ethnic Origins of  Nations. Oxford – UK: Blackwell Publishers Ltd, 1986.
WEBSTER, J.; COOPER, N. (edit) Roman Imperialism: post-colonial perspective. University os Leicester, 1996.
WHITTAKER, C.R. Trade and Frontiers of the Roman Empire. In: WHITTAKER, C.R.; GARNSEY, P. (edit) Trade and Famine in Classical Antiguity. Cambridge: University Press, 1983.
_____. Frontiers of the Roman Empire. A social and economic study. London: Johns Hopkins University Press, 1994.
4 – BIBLIOGRAFIA DE HISTÓRIA ROMANA:
ALARCÃO, J. Portugal Romano. Lisboa: Editoria Verbo, 1987.
_____. O domínio romano em Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.
ALARCÃO, A. M.; MAYET, F.; NOLEN, J.S. Roteiros da Arqueologia Portuguesa - 2. Coimbra: Instituto Português do Patrimônio Cultural/Departamento de Arqueologia, 1989.
ALARCÃO, A. M. Colecções do Museu Monográfico de Conimbriga. Coimbra: Catálogo, 1984.
ALVAR, J. Los Cultos Mistericos em Lusitânia. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
BAYET, J. La Religion Romana. História política y psicología. Madrid: Ediciones Cristandad, 1978.
CASSILAS, J.M.; HIDALGO, E.; RODRIGUEZ, J.A. La Municipalizacion de Segontia. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
DONATO, H. Dicionário de Mitologia Latina. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
CÉSAR, J. De Bello Galico. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.
CURCHIN, L.A. Roman Sapin. Londres: Routledge, 1991.
FUENTES, M.J.R. Caesarobriga, Ciudad Romana de la Lusitania. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
GOODMAN, M. The Roman World. Londres: Routledge, 1997.
MANTAS, V.G. As fundações no território português nos finais da república e início do império. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
MARTÍN, J.F. Salamanca, Município Romano, y la municipalización de Lusitânia. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
MATTINGLY, D.J. Dialogues in Roman Imperialism. USA: Portsmouth, 1997.
MENDES, N.M. Roma Republicana. Rio de Janeiro: Ática , 1999.
MILLAR, F. El Império Romano y sus pueblos limítrofes. Madrid: Siglo XXI Editores, 1974.
MUÑOZ, F.A.M. Las relaciones internacionales en Roma. Algunos Apuntes Metodologicos. Atas do II Congresso Peninsular de História Antiga. Universidade de Coimbra, 1993.
OLEIRO, J.M.B. Ruínas de Conimbriga. Consolidação de mosaicos. Lisboa: Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1964.
ROSTOVTZEFF, M. História Social y Econômica del Imperio Romano. Vols. I e II. Madrid: Espasa-Calpe, 1937.
TOVAR, A.; BLÁZQUEZ, M. História de la Hispania Romana. Madrid: Alianza Editorial, 1975.

Texto de Fabio Liborio publicado em www.monografias.com. Acessado em 2/11/2004. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.





0 Response to "CONIMBRIGA, A COIMBRA ROMANA"

Post a Comment

Iklan Atas Artikel

Iklan Tengah Artikel 1

Iklan Tengah Artikel 2

Iklan Bawah Artikel