DITADURA ENVERGONHADA - O EXÉRCITO APRENDE A TORTURAR


A máquina policial do governo atacou a esquerda armada em Minas Gerais. Num só lance, acabou com o Colina e com um pedaço da AP. O Colina tinha pouco mais de seis meses e um razoável desempenho. Matara Von Westernhagen, pusera uma bomba na casa do delegado regional do Trabalho e outra na do presidente do Sindicato dos Bancários, levara o dinheiro de quatro bancos e as armas de duas sentinelas. Sobrevivera à prisão de dois ex-sargentos que estavam entre seus fundadores. Seu comando operava em Belo Horizonte. Era composto por poucas dezenas de jovens, quase todos saídos das faculdades de Medicina e Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Na primeira semana de janeiro dois de seus militantes foram capturados depois de terem assaltado duas agências bancárias na velha cidade de Sabará. Em menos de um mês havia trinta presos, e a rede desabava.1 Durante a caça aos aparelhos do Colina a polícia invadiu uma casa no bairro de São Geraldo, em Belo Horizonte, e foi recebida a rajadas de submetralhadora. Morreram dois policiais. Foi o primeiro caso de baixas em combate. O delegado Luiz Soares da Rocha, que comandava a operação, impediu, no braço, que um policial matasse os cinco prisioneiros capturados.2 Nesses jovens começou-se a escrever um novo capítulo da repressão. Foram torturados em quatro delegacias diferentes, mas também em dois quartéis do Exército.

Em Belo Horizonte, apanharam no 12° Regimento de Infantaria e lá foram interrogados pelo comandante do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), que acumulava a essa função a de encarregado do IPM da subversão universitária em Minas Gerais.3 Era o coronel Octavio Aguiar de Medeiros, ex-chefe da seção de sovietologia, a SC-4 do SNI de Golbery, coordenador da coleção de publicações do Serviço. Pensara até em estender o recrutamento do SNI às universidades, valendo-se de estudantes para trabalhos de pesquisa.4 Neto de marechal e filho de almirante, estivera entre os revoltosos da Escola de Comando e Estado-Maior no dia 31 de março de 1964. Vinha da elite do regime. Costa e Silva, acertando suas contas com o SNI, atirara-o, aos 46 anos, ao “canil” de um CPOR, comando de coronel desgraçado.

Medeiros foi um exibicionista com a carcaça do Colina. Nunca dera entrevistas, e não voltaria a dá-las, nem mesmo quando chefiou o SNI, de 1978 a 1985, a poucos passos da Presidência da República. Em Belo Horizonte tirou o máximo de proveito da fama que a subversão lhe oferecia. Vangloriara-se de trabalhar das sete da manhã à uma da madrugada. Como chegara ao êxito, não contava: “Falaram em maltratar estudantes, mas qualquer pessoa que conversar com esses cinco rapazes presos pode ver qual é a verdade”.5 Quando lhe mostraram uma presa da AP que durante as sessões de tortura exigia respeito aos seus direitos legais, gracejou: “Vida boa, hein?”.6 Surgiu como o primeiro agente do governo a desmontar uma organização terrorista.

A ofensiva contra o Colina foi um sucesso. Pareceu um perfeito trabalho de investigação, capturas e análises. O êxito da operação durou até 1987, quando Jacob Gorender publicou seu Combate nas trevas. Então revelou-se o fiasco: passara por baixo do pau-de-arara de Medeiros a descoberta da identidade dos assassinos de Von Westernhagen. Um dos integrantes do pelotão que agira na Gávea fora recambiado do Rio, onde estava encarcerado. O ex-sargento do Exército João Lucas Alves havia sido preso com o mesmo Volkswagen cor gelo visto na cena do assassinato do major alemão. O assunto não foi mencionado nos interrogatórios.7

João Lucas, um pernambucano de 34 anos, passara pelo curso de Havana. Assassinaram-no na Delegacia de Roubos e Furtos de Belo Horizonte. A polícia informou que ele se matara, asfixiando-se com a calça. Era o 13° suicida do regime, o quinto a enforcar-se na cela.8 A autópsia informava que seu cadáver tinha doze lesões e lhe faltava a unha de um artelho do pé esquerdo.9 A destruição do Colina e de outras siglas que agiam em Minas Gerais indicava novos tempos. Um dos torturadores do 12° RI, o jovem tenente Marcelo Paixão de Araújo, de 21 anos, estava começando sua carreira. Aprendia “vendo”. Socos, palmatória, pau-de-arara e, finalmente, o choque elétrico.10

Os “cinco rapazes presos” a que se referira Medeiros foram mandados de Belo Horizonte para a 1ª Companhia do Batalhão de Polícia do Exército da Vila Militar, no bairro de Deodoro. Ela funcionava como sede do setor de operações do CIE, que não dispunha de base logística além das salas no prédio do quartel-general. A PE da Vila apoiava o CIE com carros, equipes de captura, salas de interrogatório e celas. Lá, oficiais e sargentos cultivavam aquela área cinzenta da polícia carioca onde o crime e a lei se confundem em personagens que vivem da delinquência num mundo de folclore cafajeste. Dessa proximidade resultou a criação, dentro do quartel, de uma sociedade denominada Escuderie Jason, que imitava a Escuderie Le Cocq, com a qual a “meganha” homenageava um detetive assassinado nas cercanias de um ponto de bicho. A Le Cocq, com a caveira dos piratas como símbolo, tornara-se sinônimo do Esquadrão da Morte.

A Escuderie Jason homenageava um sargento morto em serviço e tinha seu cadastro guardado no quartel da PE.11 Dela faziam parte policiais, contraventores, sargentos e oficiais. Entre os dignitários que distribuíam a honraria estava um policial-contrabandista, alcaguete do CIE. Presenteava comparsas com adesivos e cartões de identidade onde brilhava o escudo da Polícia do Exército.12

Na 1ª Companhia da PE, na tarde de 8 de outubro de 1969, oficiais do Exército brasileiro escreveram uma triste página da história da corporação.

Os presos eram dez. Entre eles, seis rapazes do Colina. Foram tirados das celas, postos em fila e escoltados até um salão.13 No caminho ouviram uma piada de um cabo: “São esses aí os astros do show?”. A plateia, sentada em torno de mesas, chegava perto de cem pessoas. Eram oficiais e sargentos, tanto do Exército como da Marinha e Aeronáutica. Numa das extremidades do salão havia uma espécie de palco, e nele o “tenente Ailton” presidia a sessão com um microfone e um retroprojetor: “Agora vamos dar a vocês uma demonstração do que se faz clandestinamente no país”.14

O chefe da seção de informações da 1ª Companhia era o tenente Ailton Joaquim. Completara 27 anos fazia apenas quatro dias. Com 1,63 m de altura, era quase um anão nas formaturas dos galalaus da PE.15 Filho de um pequeno comerciante, criado no subúrbio carioca, fora um aluno comum na Academia Militar das Agulhas Negras. Em todo o curso conseguiu uma só nota 8 (em topografia) e passou raspando com um 4 pela cadeira de Direito. Com uma média final de 6,7, foi o 29° numa turma de 57 cadetes.16 Servira com sucesso no Batalhão Ipiranga, em São Paulo, onde o comandante de sua companhia o retratou com a poesia da caserna: “Sua firmeza o sustenta; sua luz o guia. A cera facilmente se liquefaz; o cristal nunca perde a sua aresta”.17 Chegara à PE em julho de 1967 e vivia com a mulher numa das modestas casas de oficiais da Vila. Desde que o CIE montara sua base de operações em Deodoro, Ailton Joaquim deixara a tediosa rotina de sherlock encarregado de descobrir quem danificara um ventilador da companhia, para entrar na vida agitada da repressão política.18

Os presos foram enfileirados perto do palco, e o “tenente Ailton” identificou-os para os convidados. Tinha três sargentos por acólitos. Com a ajuda de slides, mostrou desenhos de diversas modalidades de tortura. Em seguida os presos tiveram de ficar só de cuecas.

Maurício Vieira de Paiva, 24 anos, quintanista de engenharia, foi ligado a um magneto pelos dedos mínimos das mãos. Era a máquina de choques elétricos. Depois de algumas descargas, o tenente-mestre ensinou que se devem dosar as voltagens de acordo com a duração dos choques. Chegou a recitar algumas relações numéricas, lembrando que o objetivo do interrogador é obter informações e não matar o preso.19

Murilo Pinto da Silva, 22 anos, funcionário público, ficou de pés descalços sobre as bordas de duas latas abertas. Pedro Paulo Bretas, 24 anos, terceiranista de medicina, foi submetido ao esmagamento dos dedos com barras de metal. Outro preso, um ex-soldado da Polícia Militar, apanhou de palmatória nas mãos e na planta dos pés. “A palmatória é um instrumento com o qual se pode bater num homem horas a fio, com toda a força”, explicou o tenente.

No pau-de-arara penduraram Zezinho, que estava na PE por conta de crimes militares. Ailton explicou — enquanto os soldados demonstravam — que essa modalidade de tortura ganhava eficácia quando associada a golpes de palmatória ou aplicações de choques elétricos, cuja intensidade aumenta se a pessoa está molhada.

“Começa a fazer efeito quando o preso já não consegue manter o pescoço firme e imóvel. Quando o pescoço dobra, é que o preso está sofrendo”, ensinou o tenente-professor.

O Exército brasileiro tinha aprendido a torturar.20

Notas

1 Herbert Daniel, Passagem para o próximo sonho, p. 19, e Jornal da Tarde, 30 de maio de 1969.
2 Maurício Paiva, O sonho exilado, pp. 25-6. Para a identificação do policial, Maurício Paiva, julho de 2001.
3 Auto de Qualificação e carta manuscrita de Murilo Pinto da Silva, em Projeto Brasil: nunca mais, tomo V, vol. 3: As torturas, pp. 259 e 261: “No 12° RI meus espancadores e interrogadores foram o coronel Medeiros, sargento Mendes, sargento Kleber, capitão Almeida e outros”. Auto de Qualificação de Julio Antonio Bittencourt de Almeida, em Projeto Brasil: nunca mais, tomo V, vol. 2: As torturas, p. 696: “No RI nossos espancadores e interrogadores foram: coronel Medeiros, sargento Marcolino [...]”.
4 Diário de Heitor Ferreira, 4 de março de 1967. APGCS/HF.
5 Jornal da Tarde, 30 de maio de 1969.
6 Luiz Manfredini, As moças de Minas, p. 83.
7 Jacob Gorender, Combate nas trevas, p. 142.
8 Segundo as versões oficiais, enforcaram-se na prisão Elvaristo Alves da Silva, Severino Elias de Melo, Milton Soares de Castro e Higino João Pio. Ver Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos filhos deste solo, pp. 462, 573, 467 e 574.
9 Auto de Corpo de Delito de João Lucas Alves, em Brasil: nunca mais, p. 249.
10 Entrevista de Marcelo Paixão de Araújo a Alexandre Oltramari, Veja, 9 de dezembro de 1998, pp. 44-9.
11 Auto de Inquirição do Tenente Jorge Itamar de Oliveira, Processo n° 42 479-8, de 1979, STM, vol. 4, p. 1697, e do Sargento José Renato da Silva, vol. 1, p. 483.
12 Processo n° 4896, Termo de Perguntas ao Indiciado Manoel de Oliveira Alves, vol. 1, p. 425. Para a concessão dos títulos, 2 Testemunha de Defesa do Capitão Ailton Guimarães Jorge, Tenente-Coronel Enio de Albuquerque Lacerda, Processo n° 42 476-8, STM, vol. 4, p. 1740. Para a Escuderie, ver também o testemunho de Luís Antonio Raposo Carneiro, vol. 4, p. 1816.
13 Carta de doze presos políticos de Belo Horizonte, de 19 de dezembro de 1969. Eram Maurício Paiva, Ângelo Pezzuti, Murilo Pinto da Silva, Pedro Paulo Bretas, Afonso Celso Lara e Nilo Sérgio Menezes Macedo.
14 A. J. Langguth, A face oculta do terror, pp. 192-3.
15 Ailton Joaquim, Folha de Identidade, Academia Militar das Agulhas Negras. Processo n° 42 479-8, de 1979, STM, p. 982.
16 Alterações do Cadete Ailton Joaquim, Academia Militar das Agulhas Negras. Processo n° 42 479-8, de 1979, STM, p. 984.
17 Elogio do capitão Luiz Marques de Barros, Alterações do Tenente Ailton Joaquim no Batalhão Ipiranga, Processo n° 42 479-8, de 1979, STM, p. 994.
18 Alterações do Tenente Ailton Joaquim, Batalhão Ipiranga e 1ª Companhia da PE, Processo n° 42 479-8, de 1979, STM, pp. 994, 1000, 1007 e 1005.
19 As descrições dessa aula de tortura estão em A. J. Langguth, A face oculta do terror, pp. 192-7, com base numa entrevista com Murilo Pinto da Silva. Há ainda carta assinada por doze presos de Belo Horizonte em 19 de dezembro de 1969, em Terror in Brazil, a Dossier, opúsculo publicado em Nova York, em abril de 1970, pelo The American Committee for Information on Brazil. Ver também o depoimento de Maurício Paiva, em O sonho exilado, pp. 49-53.
20 Em janeiro de 1969 realizou-se no quartel da PE de São Paulo uma aula idêntica. Depoimento de Izaías Almada, em Alipio Freire, Izaías Almada e J. A. de Granvilie Ponce (orgs.), Tiradentes, um presídio da ditadura, p. 18.

Por Elio Gaspari em " As Ilusões Armadas - A Diadura Envergonhada", Companhia das Letras, São Paulo, 2002, excertos pp. 373-379. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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