SANGRENTA VIDA NA IDADE MÉDIA



No ano de l300 no norte da França, um personagem desagradável chamado Jacquemon subornou um carcereiro para garantir que seu genro indesejado tivesse uma morte dolorosa na prisão. Depois, o mesmo Jacquemon, com a ajuda de seu filho, matou seu sobrinho, Colart Cordele. O pobre Cordele ajudava Jacquemon durante a colheita, tentando recolher o trigo atrás dele, mas o irritou por ter chegado perto demais Jacquemon agarrou seu sobrinho pelo capuz, arremessou-o brutalmente ao chão e "estimulou seu cavalo a passar várias vezes" sobre o corpo caído.

Este episódio poderia ter sido tirado de Game of Thrones - não admira a época ter se tornado sinônimo de brutalidade. Não por acaso, em uma cena brutal no filme Pulp Fiction: Tempo de Violência, um dos personagens ameaça:... Eu vou dar uma de medieval com você". Não há necessidade de explicar o que isso poderia envolver, porque o estereótipo da Idade Média violenta e sádica é bem conhecido.

Mas o quanto esse estereótipo corresponde à realidade? Como mostra o episódio de Jacquemon, há muitas coisas chocantes e perturbadoras nos registros do final da Idade Média que foram preservados. Por outro lado, impressiona também saber que os contemporâneos medievais ficavam horrorizados com tais eventos. Só conhecemos o caso relatado porque houve reação legal: não foi visto como aceitável ou mesmo normal.

As medidas da violência

Os níveis de violência interpessoal eram certamente mais elevados na Idade Média do que hoje, mas é muito difícil quantificar isso precisamente ainda mais se somarmos a guerra e os horrores do genocídio na equação. Em parte, isso acontece devido à natureza mutável dos processos legais, o que significa que não estamos comparando situações iguais. As definições de crime violento também mudaram; por exemplo, estupro e agressões domésticas eram definidos de uma forma muito restritiva na Idade Média.

O historiador Lawrence Stone calculou que os níveis de homicídios na Inglaterra medieval eram pelo menos 1O vezes maiores do que são hoje. Certamente, não podemos duvidar de que era uma época perigosa para se viver. Um caso excepcional, mesmo para os padrões medievais, aconteceu no século XIV em Oxford. Os níveis de violência lá eram considerados inaceitavelmente altos: em 1340, a taxa de homicídios era de cerca de 110 a cada 100 mil. (No Reino Unido em 2011, a mesma taxa era de uma cada 100 mil.)

Por que os níveis de violência interpessoal eram tão altos na Idade Média? Historiadores deram várias explicações. Steven Pinker apresentou uma teoria psicológica, alegando que a humanidade aprendeu apenas recentemente a domar seus impulsos mais selvagens, mas isso realmente não explica a complexidade das reações à violência no período medieval, como veremos.

Outros apontaram para a prevalência do álcool e o fato de muitas pessoas andarem armadas com punhais e outras facas. Não havia forças policiais permanentes como há agora e, em muitos casos, a captura de um criminoso dependia da cooperação da comunidade. Além disso, em uma época de cuidados médicos rudimentares, muitos morriam de ferimentos que atualmente podem ser tratados com sucesso.

Existem explicações mais complexas também. Como a de que havia uma cultura em que a honra era primordial e a violência reconhecida como um meio de passar certas mensagens. Se você cortasse fora o nariz de uma mulher, por exemplo, a maioria das pessoas reconheceria isso como um sinal de adultério. Havia ainda culturas profundamente desiguais, caracterizadas - especialmente a partir do século XIV - por altos níveis de inquietação social. Sociólogos e historiadores têm sido capazes de demonstrar uma correlação entre os níveis de desigualdade e a violência, o que é particularmente interessante para a Europa medieval.

Os homicídios variavam de ataques premeditados a brigas em tavernas que acabavam em desastre. Muitas vezes, eram episódios bastante comuns que deram terrivelmente errado. Em 1304, por exemplo, Gerlach de Wetsfalia, dirigente de uma igreja na diocese de Salzburg, solicitou perdão por ter matado um colega estudante muitos anos antes, quando uma luta de brincadeira com espadas terminara em tragédia.

Cometer um ato violento parece ter sido tanto uma forma de mostrar-se forte diante dos outros e de que pertencia a um grupo, quanto amedrontar a vítima - o que poderia explicar por que homens em gangues eram responsáveis por grande parte do caos. Esse sentimento de fraternidade caracteriza um bando liderado por Robert Statford. Ele era um capelão e, talvez por causa de seu status clerical, espirituosamente se chamava de Frei Tuck, das lendas de Robin Hood. As ações de sua gangue eram principalmente caça ilegal e crimes contra a propriedade, embora houvesse tons mais brutais - aparentemente "eles ameaçavam os guarda-caças de morte ou mutilação".

Vitimas femininas

É muito mais raro encontrar mulheres cometendo crimes violentos; mais frequentemente elas eram as vítimas. É muito difícil avaliar os níveis de estupro, porque o crime estava sujeito a alteração de definições, e a maioria pareceria muito limitada para os nossos olhos modernos. As mulheres tinham que ser capares de demonstrar fisicamente a sua falta de consentimento, e arriscavam sua reputação e punição ao fazê-lo. As chances estavam contra elas.

Os casos que eventualmente eram denunciados tinham a tendência a serem particularmente brutais. Em 1438, Thomas Elam atacou Margaret Perman. Ele invadiu a casa dela, tentou estuprá-la e "maldosamente arrancou o nariz de Margaret com uma mordida e quebrou três costelas dela". O caso chegou ao tribunal porque ela morreu em consequência dos ferimentos. Ela foi condenado à forca.

Definições de violência doméstica também eram radicalmente diferentes no final da Idade Média. A maioria das agressões que nós consideraríamos criminosas hoje eram, na época, vistas como atos aceitáveis de disciplinamento. Se uma esposa desobedecesse ao marido, considerava-se correto e apropriado que fosse punida. A violência doméstica, porém, às vezes aparecia nos registros dos tribunais eclesiásticos quando uma mulher pedia o divórcio, ou nos registos criminais quando a violência resultava em mutilações permanentes, aborto ou morte.

Como distinguir entre níveis aceitáveis" e "inaceitáveis" era um problema constante. Uma solução famosa frequentemente citada era a "regra de ouro", na qual - afirmava-se - era admissível bater em sua esposa contanto que a vareta usada fosse mais fina do que o polegar do marido. No entanto, na prática, as discussões eram mais sofisticadas e menos conclusivas do que isso.

Em 1326, em Paris, Colin le Barbier bateu em sua mulher com um taco de bilhar com tanta força que ela morreu. Ele foi julgado e considerado culpado de homicídio. No entanto, recorreu alegando que sua esposa merecia o sofrimento porque havia reclamado acintosamente dele em público. Afirmou ainda que não tinha a intenção de matá~la: ... Queria apenas assustá-la, para que ficasse quieta; no entanto, o taco acidentalmente perfurou sua coxa um pouco acima do joelho". A razão pela qual ela tinha morrido, ele acrescentou, foi "porque ela não conseguiu cuidar [da ferida] adequadamente" e não porque ele a tinha maltratado. A sua posterior absolvição nos diz muito sobre as atitudes naquele período.

Homicídio, estupro e violência doméstica poderiam ser encontrados em todo o espectro social. No entanto, alguns tipos de agressão eram mais comuns em certos ambientes. Os roubos violentos eram mais frequentemente perpetrado por pessoas nas margens econômicas da sociedade, que roubavam por desespero. Foram mais comuns durante os períodos de pico de alguma privação, como a Grande Fome da década de 1310, durante a qual 25% da população pereceu.

A Inglaterra nos séculos XIV e XV também foi notória pela prevalência de gangues assustadoras que muitas vezes incluíam pessoas de boas famílias e até mesmo da nobreza. Elas saqueavam a zona rural, roubando e deixando um rastro de sangue. Em 1332, por exemplo, a gangue Folville foi acusada de sequestrar um funcionário real; o mesmo bando já havia matado um barão do tesouro público. Eram jovens que literalmente julgavam estar acima da lei, muitas vezes envolvidos em rixas e vinganças, e para quem a honra era um conceito-chave.

Uma questão de honra

A violência instigada pela honra era prevalente no topo da pirâmide social. Durante os períodos de reinados fracos, as agressões cometidas por nobres atingiam níveis aterrorizantes. No começo do século XV, na França, com um rei (Carlos VI, "o Louco") que sofria intermitentemente de esquizofrenia paranoide e acreditava ser feito de vidro, nobres poderosos rivais conseguiram assumir o controle. O resultado disso foi uma espiral de violência que culminou, em 1407, com o assassinato do duque de Orléans e, por fim, a invasão inglesa da França.

As coisas não eram muito mais animadoras para os ingleses. Na segunda metade do século XV, a fraqueza do monarca reinante, Henrique VI, e a acumulação de enormes séquitos por aristocratas hostis foram, pelo menos em grande parte, responsáveis pela Guerra das Rosas. Os limites entre violência interpessoal, guerra civil e guerra militarizada eram indistintos.

No outro extremo do espectro social, no final da Idade Média, as crescentes desigualdades estruturais criadas pela rápida urbanização, bem como pelas formas concorrentes de governo, geraram urna série de motins e revoltas. Se colocados em um mapa. eles aparecem concentrados ao longo do principal eixo de comércio da Europa medieval, de Londres a Paris, e na Holanda através dos mercados da província de Champanhe aos redutos comerciais do norte da Itália. Os exemplos mais famosos foram a Revolta Camponesa de 1381, na Inglaterra; a Revolta dos Ciompi de 1378, em Florença; e a Rebelião de Paris e a revolta Jacquerie no norte da França, em 1358. Todos envolveram alianças complexas de rebeldes de vários grupos sociais que exigiam uma maior representação, criticavam a corrupção e protestavam contra sua marginalização econômica.

Revoltas nos níveis sociais às vezes eram sobrepostas por violência impulsionada pela religião. Notoriamente, a Europa medieval foi marcada por ondas de perseguição religiosa popular, com o antissemitismo dando o ar da graça com uma frequência desanimadora.

No entanto, talvez a dimensão mais violenta da vida medieval era a da lei, que possuía seus próprios rituais repulsivos. A punição tinha a intenção de ser espetacular. A maioria dos crimes graves eram puníveis por enforcamento, mas várias maneiras mais criativas de eliminar os criminosos eram empregadas. Em muitas áreas da Europa, os culpados de falsificação de dinheiro eram fervidos vivos.

Essa obsessão em apresentar um espetáculo de violência para enfatizar a culpa do acusado e dissuadir e intimidar as observadores levou a alguns episódios quase ridículos. Na década de 1290, um idoso se lembrou que, quando era jovem, viu um homem sendo enforcado por assassinato. O corpo foi tirado da forca por uma jurisdição concorrente e enforcado novamente - apenas para que a jurisdição original construísse uma efígie de palha para enforcar.

Reações à violência

Ficamos, então, com a imagem de uma sociedade extremamente violenta. Embora seja muito difícil chegar a números precisos, está claro que não era uma sociedade que alguém desejaria visitar por qualquer período de tempo.

Existe porém, um outro lado de tudo isso. As evidências sugerem que, apesar de a violência ser comum, as pessoas não estavam simplesmente habituadas a ela. Pelo contrário - elas realmente se incomodavam com isso. Isso não quer dizer que a violência era simplesmente considerada errada: ela era um problema com o qual as pessoas se preocupavam e conversavam.

O sistema de cavalaria representava uma tentativa de canalizar a violência. O Código de Honra da Cavalaria sugeria que a pessoa deveria lutar apenas com certos tipos de armas; que deveria buscar apenas adversários dignos; e que deveria exercer misericórdia e generosidade. A realidade, porém, é que a cavalaria foi o pilar de alguns dos episódios mais brutais e sangrentos da história (particularmente a Guerra dos Cem Anos). A questão é que se tratava de um conjunto de costumes gerado a partir da preocupação e de um sentimento de que a violência poderia se tornar um problema.

A pista mais importante de que as pessoas se preocupavam com a violência é o fato de que escreviam sobre isso. A literatura medieval está repleta de descrições de tortura, mas leituras mais detalhadas desses textos mostram que os torturadores eram demonizados. Tal estratégia só funcionaria se as pessoas sentissem que a tortura era profundamente problemática - e elas certamente a consideravam assim. No século XIV, na França, os tribunais penais normalmente submetiam as evidências obtidas através de tortura a um exame mais minucioso porque eram consideradas pouco confiáveis.

As crônicas, histórias oficiais escritas na Idade Média, tendem a proporcionar relatos descontroladamente exagerados de níveis de violência, particularmente em revoltas. Novamente, porém, o efeito literário e político desejado só funcionou porque as pessoas consideraram tal violência perturbadora. A maioria das nossas evidências está em documentos legais. Sistemas jurídicos em desenvolvimento nesse período só se preocuparam em produzir tal documentação devido aos altos níveis de violência, considerados inaceitáveis.

Nas representações literárias da violência, como as histórias divertidas de Renard the Fox, popular e toda a Europa, a violência e a crueldade eram onipresentes precisamente porque eram chocantes. A história terrível da raposa que estuprou a esposa de seu amigo, o lobo, e depois urinou nos filhos dela provocava risos nervosos nas plateias medievais.

Na poesia da época também podemos encontrar comentários sobre a natureza perturbadora da violência. De acordo com o Inferno de Dante, no século XIV. o inferno é caracterizado por ciclos intermináveis de violência.

E na Balada dos Enforcados, do poeta francês François Villon, os corpos em decomposição balançando no patíbulo falam diretamente:

"Irmãos humanos, que após morrermos viverão
Não endureçais contra nós o vosso coração.
...
O batismo da chuva nos lavou e limpou
O calor do sol nos queimou e secou
Vermes e corvos nossos olhos devoram
Nossas barbas e sobrancelhas arrancaram
Nunca estivemos parados
Pelo vento somos balançados
...
Irmãos, não há nada engraçado aqui,
Que Deus nos perdoe."

É uma imagem impressionante - uma representação muito clara da prevalência da violência na Idade Média e que mostra também que aquela foi uma época profundamente perturbadora.


Texto de Hannah Skoda traduzido e publicado na revista "BBC History Brasil", ano 3 nº 11, março/abril 2016, excertos p. 34-40. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

0 Response to "SANGRENTA VIDA NA IDADE MÉDIA"

Post a Comment

Iklan Atas Artikel

Iklan Tengah Artikel 1

Iklan Tengah Artikel 2

Iklan Bawah Artikel