A IMPORTÂNCIA DA CARNE NA ALIMENTAÇÃO
Carnes são estruturas orgânicas complexas, e conhecer seus segredos é meio caminho andado para o sucesso de um bom bife malpassado, ao ponto ou bem-passado. Ao gosto do freguês.
Do primeiro mamute abatido à invenção da picanha maturada, a humanidade tem-se obstinado em aperfeiçoar os modos de cozinhar as carnes de animais domesticados e selvagens. Como a ciência pode ajudar nisso? Carnes são estruturas orgânicas complexas, e conhecer seus segredos é meio caminho andado para o sucesso de um bom bife – malpassado, ao ponto ou bem-passado. Ao gosto do freguês.
Do que é feito um bife?
O bife é um pedaço de músculo de boi. Aliás, quase toda a carne que comemos é parte de algum músculo de um animal – com exceção dos miúdos, como fígado e rins. Embora haja diferenças entre os diversos tipos de músculo dos vários animais, pode-se dizer que, em média, três quartos da composição de um naco de carne é nada mais que água. O resto – a parte que interessa – é proteína (20%) e gordura (5%). As moléculas de proteína se organizam em células que se arranjam para formar as estruturas do músculo. Há duas principais estruturas: a do tecido muscular, as fibras responsáveis pelo movimento, e a dos tecidos conjuntivos, que dão forma e suporte às fibras e fazem sua ligação com os ossos. O tecido conjuntivo envolve um grupo de fibras musculares, formando uma placa. Um músculo é formado por várias dessas placas, entremeadas pela gordura, que amortece o impacto do movimento.
Também pode haver gordura no exterior do músculo – a picanha é um exemplo clássico. “A quantidade de gordura é maior ou menor dependendo do tipo de músculo, da idade do animal, do confinamento e da castração”, afirma Albino Luchiari Filho, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (USP).
Por que alguns cortes são mais duros que outros?
Como regra geral, podemos dizer que a maciez depende da idade de abate do animal, do tipo de músculo e do quanto o músculo é exercitado. Isso porque é o tecido conjuntivo que determina o grau de rigidez de um pedaço de carne crua. Quanto mais o músculo se move, maior a proporção desse tecido; quanto mais velho o animal, mais rígido ele se torna. A carne de porco, por exemplo, tende a ser mais macia que a de boi porque o porco é abatido mais jovem. E o lagarto é mais duro que o contrafilé porque o primeiro fica na perna, indispensável para a locomoção do boi, enquanto o outro está no lombo, muito menos exigido nos movimentos. Aí entra também a forma como o animal é criado: um boi “alpinista”, que pasta num morro, tem músculos mais “malhados” que os de uma rês confinada. Mas os tecidos conjuntivos não são necessariamente os vilões nessa história.
Cozido longamente, ele se transforma em uma gelatina que torna a carne macia e suculenta, além de enriquecer o molho. “É ridículo falar em carnes de primeira e de segunda”, diz Marcos Guardabassi, açougueiro e dono de grife de carnes especiais Bassi. “Um pedaço de músculo, no sentido açougueiro da palavra, pode ser mais macio e saboroso que um filé mignon, quando bem-feito”. A carne que os brasileiros chamam “de primeira” é a que fica mais macia e suculenta quando pouco cozida, mas não é obrigatoriamente a mais saborosa.
Diagrama com os cortes bovinos mais comuns no Brasil: em vermelho, as carnes ditas de primeira; em amarelo, as de segunda. Tal distinção é considerada ultrapassada
De onde vem o sabor da carne?
A maior parte do sabor da carne se desenvolve quando ela é cozida – por isso, pratos de carne crua são sempre condimentados com temperos fortes, como mostarda e alcaparras. Parte desse sabor é conseqüência da reação de Maillard (veja o texto “Assim e assado”, página 12), em que os aminoácidos das proteínas se associam aos açúcares armazenados nas células musculares. É essa reação, que faz a carne ficar marrom e que faz a superfície ficar tostada quando fritamos, assamos ou grelhamos. Estima-se que as reações que ocorrem quando cozinhamos um único pedaço de carne possam resultar em até 600 combinações diferentes de aminoácidos e açúcares. Isso contribui muito para que as carnes de diferentes animais tenham gostos distintos. Outro fator influente é a gordura, que tem um sabor particular em cada animal.
Pode-se temperar um bife com sal antes de grelhá-lo?
Até hoje, há cozinheiros que acreditam ser possível “selar” um bife, ou seja, criar, a partir do aquecimento rápido, uma crosta impermeável que impeça o escape dos sucos da carne. O sal, portanto, só poderia ser adicionado depois de algum cozimento, pois ele precipita a saída dos líquidos, ressecando o bife. Hoje já se sabe que a crosta não é tão impermeável assim – o chiado de um bife na frigideira nada mais é que a vaporização de seus líquidos, assim como a “fumacinha” que sai da carne. Um bife fino pode ser previamente salgado, pois cozinha rapidamente e a ação do sal não causa grandes estragos. Já em pedaços maiores, que necessitam de maior tempo de cozimento, a perda de líquidos causada pela ação contínua do sal pode resultar em um filé esturricado. Vale dizer que o sal grosso puxa bem menos água que o sal fino e, por isso mesmo, é o favorito dos churrasqueiros – aliás, é o único tempero admitido pelos puristas do assado, que dizem que ervas e especiarias interferem demais no sabor de uma boa carne.
O que gelatina tem a ver com carne?
A gelatina doce e colorida que faz a alegria das crianças vem do boi (há gelatinas feitas de alga marinha, mas isso é outra história). Ela é obtida a partir do colágeno, um dos tecidos conjuntivos dos animais, cuja maior concentração está nas cartilagens e nos ligamentos das juntas ósseas. A gelatina, então, é feita do joelho e das patas de boi. Essas partes são fervidas para que o colágeno se desnature e misture com a água, resultando em um composto que também se chama mocotó. A mistura é desidratada, purificada e transformada em pó ao qual é acrescentado açúcar e sabores diversos, como morango, abacaxi ou uva. O colágeno só se dissolve em altas temperaturas, por isso todas as receitas pedem que se aqueça a água antes de despejar o pó. Outra característica físico-química da gelatina é o fato de ser líquida no calor e, ao ser refrigerada, tornar-se sólida (ou melhor, gelatinosa).
Por que há carnes vermelhas e brancas?
Há quem se arrepie com um pedaço de carne malpassada, que diz ter nojo de bife sangrento. O adjetivo “sangrento”, no caso, é impróprio, pois o líquido vermelho que escorre do bife não é sangue. O sangue encontra-se principalmente nas veias e artérias do animal e é quase todo drenado no abatedouro. O que tinge de vermelho o suco da carne não é a hemoglobina do sangue, mas outro pigmento chamado mioglobina. De qualquer modo, a coloração das duas substâncias é resultante da combinação dos mesmos elementos: ferro e oxigênio. Para se movimentar, as células musculares geram energia a partir do oxigênio e do açúcar. Além do constante abastecimento feito pela corrente sangüínea, há uma reserva de “combustível” dentro do próprio tecido muscular – a tal mioglobina – um deles, o oxigênio. Quanto mais mioglobina houver num pedaço de carne, mais vermelho ele será. Animais grandes têm metabolismo mais lento e, portanto, mais necessidade de armazenar oxigênio para uso imediato.
Por isso, a carne mais escura que existe é a da baleia, que, além de ser o maior dos animais, precisa armazenar oxigênio para se movimentar entre mergulhos e idas à superfície para respirar. Além disso, músculos de locomoção costumam ser mais ricos em mioglobina. Assim, as coxas de uma galinha têm carne mais escura que a do peito, músculo usado para suportar as asas, que, nos galináceos, cumprem precariamente a função de voar.
Carnes de músculos usados para locomoção costumam ser mais vermelhas que as de músculos de sustentação
O que é picanha maturada?
É nada além de uma carne que já começou a se decompor. Mas, calma, não jogue no lixo aquele bifão comprado a preço de ouro num açougue metido a besta. “A maturação é decomposição sem putrefação”, afirma Marcos Guardabassi. Quando um animal é abatido, a circulação sangüínea pára e os músculos ficam contraídos numa condição chamada rigor mortis. Com o tempo, enzimas das próprias células começam a decompor as fibras de proteínas e o músculo volta a relaxar. Se a carne é refrigerada logo após o abate, ela fica dura. Por isso, toda carne passa por um período de descanso, chamado de maturação, antes de ser esfriada para transporte. “Para um boi, o período mínimo é de 24 horas”, afirma Guardabassi. A diferença da picanha maturada para uma picanha normal é que seu período de maturação é bem maior – de oito a 12 dias. Durante todo esse período, a carne fica embalada a vácuo para evitar infestações por bactérias ou parasitas.
Como amaciar uma carne dura?
Assim como as enzimas da própria carne desmontam a estrutura das proteínas, outras substâncias também são capazes de fazê-lo. “A papaína (extraída do mamão), a bromelina (do abacaxi) e a ficina (do figo) são enzimas que agem na carne de maneira similar às suas enzimas naturais”, explica Albino Luchiari, da USP. Boa parte dos amaciantes de carnes são feitos dessas substâncias. Assim, quando a carne é cozida, o processo de desnaturação é acelerado e ela pode cozinhar por menos tempo, o que acaba preservando seu suco. Ácidos também funcionam dessa forma. Por isso, o vinagre e o limão “cozinham” as carnes. Muitas receitas pedem que a carne seja deixada em uma marinada – geralmente com vinagre, que contém ácido acético – por um bom tempo antes de cozinhar. No entanto, a maciez agregada por esses agentes químicos é pouca, uma vez que eles atuam só na superfície da carne.
Desse modo, a função principal das marinadas acaba sendo temperar a carne. Um bife também pode ficar mais mastigável por processos mecânicos, como a ação do bom e velho martelo de cozinha. “Esse processo destrói as fibras, mas, se podemos deixar a carne macia naturalmente, não é recomendado o uso do martelo,” diz Luchiari. É que o processo tem um efeito colateral. As pancadas do martelo rompem as paredes das células e aceleram a drenagem dos sucos contidos nelas.
Texto de Rodrigo Velloso publicado na revista "SuperInteressante", edição 188d, junho de 2003. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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