O SURGIMENTO DOS MATADOUROS-FRIGORÍFICOS NO BRASIL DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Nota importante: quase todos os fatos históricos apresentados neste texto foram obtidos de uma única fonte que é citada ao final. O autor é o Dr. Miguel Cione Pardi (1912 – 2005), o mais admirado inspetor de alimentos de origem animal do Ministério da Agricultura (1940 – 1970) do seu tempo. Dr. Pardi também foi professor titular da Faculdade de Veterinária da UFF (1961 – 1982).
Introdução
Até o surgimento da indústria frigorífica, no Brasil, na década de 1910, prevaleciam no país as charqueadas primitivas, e os matadouros municipais, que faziam o abastecimento local de modo bastante precário, exceto por alguns estabelecimentos que, no quesito instalações eram bastante atualizados relativamente aos seus similares franceses e alemães. Matadouros municipais diferenciados como os de Manaus, Belém do Pará, Recife, Maceió e Aracaju foram instalados com base em projetos e equipamentos importados da Europa.
Há referências também ao matadouro Santa Cruz, do Rio de Janeiro, e o de Carapicuíba, em São Paulo, capital.
As charqueadas e matadouros municipais foram importantes no abastecimento das capitais, mas operavam em condições pouco higiênicas, sem inspeção sanitária, produzindo para consumo imediato, exceto pelas carnes salgadas, de maior tempo de conservação. Tais estabelecimentos aproveitavam muito mal os subprodutos, na verdade aproveitavam quase que exclusivamente o couro e o sebo, este último obtido por via úmida em autoclaves, resultando em produto de baixa qualidade, desperdício de resíduos proteicos e, irremediavelmente, em danos ambientais.
Médicos bacteriologistas e veterinários estrangeiros
As exportações de carne do Brasil tiveram início em 1914, com 200 toneladas de carne. Nos anos seguintes, até 1920, foram exportadas outras 51.799 t de carnes processadas – não foi possível encontrar registro quanto ao tipo de produto; e 286.900 t de carnes, a partir de 1915. Entretanto, naquele período, ainda não havia a figura do inspetor veterinário. Os primeiros veterinários brasileiros, contratados para os serviços de inspeção sanitária para atuar nas indústrias que começavam a ser instaladas, diplomaram-se pela Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, no Rio de Janeiro, a partir de 1917.
Até então os responsáveis pelos “Postos Veterinários” eram “médicos bacteriologistas”, dentre os quais se destacaria o Dr. Franklin de Almeida, que dedicou sua vida profissional ao ensino da inspeção de carnes e defendeu duas teses sobre o tema, uma de doutorado na Faculdade de Medicina, e outra de concurso na Escola de Veterinária, ambas no Rio de Janeiro. Houve também inspetores veterinários estrangeiros como o inglês Thomaz Wood e o belga Charles Conreur, em estabelecimentos exportadores.
Formação e aperfeiçoamento dos inspetores
Grandes nomes dessa época, até hoje reverenciados pelos inspetores federais, foram alunos de Maurice Piettre, professor francês que criou e lecionou no Rio, segundo ele próprio “pela primeira vez no mundo” a disciplina de Inspeção de Carnes e Alimentos de Origem Cárnea, a partir de 1920.
Dentre os inspetores desse período mais referidos na história da Inspeção Veterinária está o Dr. Otto de Magalhães Pecego, que, em 1925, defendeu tese de doutorado na França sobre diagnóstico bacteriológico do carbúnculo bacteridiano. Mais adiante foi designado para instalação de uma das quatro Inspetorias Regionais, a de São Paulo – as outras três foram implantadas em Belo Horizonte, MG, Curitiba, PR, e Porto Alegre, RS. Anos depois, Magalhães Pecego seria homenageado como patrono da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Medicina Veterinária, com sede no Rio.
É interessante salientar a importância que já se dava naquele tempo ao aperfeiçoamento dos médicos veterinários e engenheiros agrônomos, pois, a partir de 1918, o ministro Eng. João Gonçalves Pereira Lima começou a enviar esses profissionais para cursos de especialização de até dois anos de duração no exterior. No triênio 1918, 1919 e 1920, 77 técnicos do governo federal foram estudar nos EUA e Europa.
Os primeiros matadouros-frigoríficos
Surgia assim, mais ou menos ao mesmo tempo, o Serviço de Inspeção de Fábricas de Produtos Animais, precursor do SIF (criado como Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal em 1921), no dia 11 de janeiro 1915; a Medicina Veterinária Brasileira com a criação da Escola Superior no Rio de Janeiro – a profissão seria regulamentada no dia 9 de setembro de 1933 -, e a indústria de produtos de origem animal, mais especificamente da carne bovina, com a construção do primeiro matadouro-frigorífico nacional, da Cia. Frigorífica Pastoril, instalado em Barretos, SP, em 1913.
Este frigorífico foi construído por iniciativa do conselheiro Antonio Prado, considerado pelo Dr. Franklin de Almeida como o pioneiro da “industrialização e exploração da pecuária de corte do Brasil Central”.
O conselheiro era presidente e grande acionista da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e pretendia utilizar, como realmente aconteceu, a estrada de ferro para fazer o abastecimento parcial de São Paulo, capital, e alcançar o porto de Santos com carne daquele que era o maior mercado de bovinos do estado.
Consta que a construção foi iniciada em 1909 e que, no ano de sua inauguração, abateu pouco mais de 28 mil cabeças de bovinos e 1,8 mil suínos. Em 1923, a empresa foi adquirida pela Sociedade Frigorífico Anglo, da família britânica Vestey, que mais tarde, em 1927, passou a explorar também a Cia. Frigorífica de Santos. A partir de 1927, o Anglo passaria a exportar carne refrigerada denominada “chilled beef” para o mercado de Londres em navios da “Blue Star Line”, da mesma companhia. No início da década de 1990, os Vestey venderam a indústria, que hoje pertence ao JBS Friboi.
O segundo matadouro-frigorífico foi o “Continental do Brasil”, cujo nome também aparece em relatos históricos como “Salamaria Continental”, construído em Osasco, SP, pela empresa “Land Cattle”. Em 1918 essa companhia seria adquirida pelo Frigorífico Wilson, que nessa época também instalou um frigorífico em Santana do Livramento, RS.
Mais tarde, a Cia. Wilson também teve uma unidade de abate e industrialização de suínos em Ponta Grossa, PR. A companhia seria vendida, em 1971, para um grupo empresarial argentino passando a se chamar Comabra, que manteve a marca Wilson. No início dos anos 90, a empresa foi incorporada pela Sadia, que ainda é detentora da marca no Brasil.
Em 1917, surgiria mais uma unidade do Frigorífico Anglo em Mendes, RJ, em edificações dotadas de câmaras frias que pertenceram à cervejaria Teutônia, da Cia. Brahma. A indústria seria abastecida com gado do estado de Minas Gerais e faria exportação de carne congelada. Sua desativação ocorreu em 1966 após um incêndio, segundo Leopoldo Costa do blog Stravaganza.
Esta mesma fonte faz menção a uma empresa de nome Companhia Frigorífica Rio Grande, de Pelotas, RS, que havia sido construída por estancieiros da região, tendo funcionado por pouco tempo até ser adquirida, em 1921, pela empresa britânica da família Vestey, dando origem ao Anglo de Pelotas, que encerrou os abates em 1979. O antigo frigorífico Anglo, que operou durante cinco décadas, deu lugar ao campus da Universidade Federal de Pelotas.
Também no ano de 1917, duas empresas norte-americanas de Chicago, instalaram suas fábricas no Rio Grande do Sul. A Armour, em Santana do Livramento, e a Swift, em Rosário do Sul, que em 1918 fez a primeira exportação de carne congelada daquele estado.
Por último, tivemos a unidade industrial do Frigorífico Armour, em Vila Anastácio, na capital paulista, concebida em 1916, para exportar carne para a Europa em guerra, mas que só entrou em operação três anos depois quando o conflito já havia terminado. Foi considerado à época o maior frigorífico da América do Sul, com capacidade para abater 240 bovinos e 300 suínos por hora.
Considerações finais
Sou muito agradecido aos inspetores do SIF da Comabra, que me proporcionaram um estágio na rotina da Inspeção de Carnes e Derivados no mês de maio de 1972, onde me chamava muito a atenção a “Presuntaria”, que recebia a matéria prima, i.e., os pernis da unidade de Ponta Grossa, PR, preparados de modo a permitir a injeção de salmoura pela artéria femoral, antes de serem submetidos à cura por imersão; a qualidade dos presuntos elaborados por este processo era incomparavelmente superior aos atuais.
Em 1972, a Swift foi incorporada pela Armour passando a se chamar Swift-Armour, que foi vendida, em 1973, para o grupo Brascan/Antunes que, depois, vendeu a companhia para o Sr. Geraldo Bordon.
Ao final da década de 1970, início dos anos 80, o grupo criado pelo Sr. Geraldo Bordon foi considerado o maior do Brasil no setor em número de funcionários, gado abatido e carne exportada. A decadência da empresa se deu nos anos 90 e o pedido de concordata é de março de 2000, segundo o já citado Leopoldo Costa. O Grupo Bordon foi sucedido pela empresa Bertin, que mais recentemente foi incorporada pela JBS Friboi.
O Frigorífico Anglo de Barretos é lembrado por quem atua na Inspeção Sanitária ou leciona disciplinas correlatas como uma escola da indústria da carne bovina. Primeiro, porque lá foram feitas muitas pesquisas com bovinos ao longo de décadas, em que os nomes das fazendas e o tipo de gramíneas de suas pastagens, as distâncias, e a raça predominante, além da pesagem dos caminhões carregados e vazios para estimativa do rendimento de carcaça dos lotes eram anotados ao longo de 50 anos (1944-1994), para fins de estudos que foram publicados pelos professores Miguel Cione Pardi (1943-56) e seus colaboradores José Christovam Santos (1957-61), Elmo Rampini de Souza (1967-75) e Iacir Francisco dos Santos (1982-94) no livro “A Epopéia do Zebu: Estudo Zootécnico-Econômico, 1944/1994”.
Segundo, porque lá funcionava o Centro de Treinamento em Inspeção de Carnes onde eram preparados os novos inspetores veterinários e auxiliares técnicos contratados antes de assumirem seus postos em outros estabelecimentos. Além de ministrar treinamento em aulas teóricas e práticas, ali era feita a padronização da metodologia do Serviço de Inspeção em termos de critérios e procedimentos.
Por último, porque as faculdades de Medicina Veterinária, e mais tarde de outras profissões como a Engenharia de Alimentos, levavam seus alunos para visita ao Anglo em Barretos e lá eles viam a tecnologia da indústria da carne em inúmeras seções, que iam do pré-abate à fábrica de sabões e velas, passando pelo processamento de salsichas, carnes enlatadas das mais variadas, até a fábrica de gelatina. Foi numa dessas visitas de dois dias levando alunos da FEA – UNICAMP, que conheci a empresa em 1985, na companhia dos professores José Christovam Santos e Bento da Costa Carvalho Jr. Era inspetor-chefe do SIF na ocasião o Dr. Iacir Francisco dos Santos.
O Anglo era verdadeiramente a maior e mais completa escola de tecnologia de abate, inspeção e processamento da carne existente no país. E o que é melhor, não havia segredos relativos à tecnologia, todos que queriam aprender eram muito bem-vindos.
De resto, os inspetores federais que interagiram com as grandes companhias estrangeiras de frigoríficos, denominadas anglo-americanas, sempre reconheceram nelas a facilidade para transferência de tecnologia. É como se os seus diretores e gerentes praticassem uma filosofia de co-responsabilidade na evolução do ambiente competitivo nacional. Era preciso deixar para trás a era das charqueadas, matadouros municipais e a clandestinidade, e eles se dispunham a colaborar com esse propósito.
Antes de concluir, quero externar meus mais sinceros agradecimentos ao Dr. José Christovam Santos por tudo que me ensinou sobre a história dos frigoríficos no Brasil e, também, sobre a ética necessária aos inspetores de produtos de origem animal, mesmo não sendo eu um inspetor. Foi tudo muito válido.
Artigo de Pedro Eduardo de Felício publicado em "sites.beefpont.com.br" no dia 11 de outubro de 2013. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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