SEGUNDO SEXO NO BRASIL,
Rio de Janeiro, 1960
Eu estudava na PUC e achava o mundo algo altamente excitante. Considerava-me uma existencialista, ou achava que era. Lia avidamente Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Assistia aos filmes da 'nouvelle vague' e do neorrealismo italiano, sonhava fazer cinema e estava sempre atenta aos filmes dos diretores brasileiros que despontavam e que formariam o cinema novo. Éramos jovens e tínhamos a intuição de que o futuro nos traria um papel de importância, para o qual devíamos nos preparar. Mal sabíamos o que viria.
Em 1958, com 19 anos, fui trabalhar em um jornal estudantil, “O Metropolitano”, na época um suplemento do “Diário de Notícias”. Foi o meu primeiro emprego. Como repórter, eu tinha que correr atrás dos assuntos do momento. Por ser mais ou menos versada em francês e inglês, cabia a mim entrevistar visitantes estrangeiros que aqui chegavam; e foi assim que conheci Simone de Beauvoir, além de figuras como Graham Greene e Aldous Huxley.
A entrevista com Simone de Beauvoir foi marcada para depois de sua palestra na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio. Lembro-me de ficar surpresa com sua aparência bastante conservadora comparada com a da musa do existencialismo, a exótica e sensual Juliette Gréco. Na época Simone teria por volta de 60 anos. Usava os cabelos presos em um coque severo. Tinha pele muito clara e um rosto lavado, meio bretão. Eu fui toda vestida de negro, em pleno verão carioca,usando um penteado à Juliette. Quando revejo minha foto com ela, na entrevista, imagino que um leitor desavisado poderia se perguntar quem era quem.
O salão nobre estava lotado de estudantes curiosos que, por duas horas, ouviram respeitosamente a exposição sobre seu controvertido livro “O Segundo Sexo” (lançado anos antes na França e então saindo no Brasil). Na época, lê-lo até o fim me exigiu grande esforço e disciplina; só vim a realmente apreciá-lo anos depois.
O ponto mais controvertido de sua tese poderia ser resumido na frase que abre o segundo volume: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Simone colocava assim a ênfase no processo de socialização do indivíduo,mais do que no destino biológico. A mulher não poderia estar condenada a somente repetir a vida com o seu corpo, “o projeto do homem não é ode se repetir no tempo, mas sim de reinar sobre o momento e de forjar o futuro”. Questionada se seria possível comparar os preconceitos que condicionam a situação da mulher com os preconceitos raciais, respondeu que “ambos têm em comum terem sido criados por uma ideologia ‘a posteriori’ para justificar essa situação”.
Depois fomos tomar um café juntas. Nervosa — e no afã juvenil de querer parecer informada —, não parava de expor meus conhecimentos sobre o existencialismo. Simone ouvia em silêncio. Finalmente, com um sorriso discreto, disse: “Fale-me um pouco de você”. E de entrevistadora passei a ser entrevistada (uma técnica que aprendi então e que me tem sido extremamente útil ao longo dos anos). O foco era minha formação burguesa, que a interessava para entender o país que visitava.
Intimidada, respondia da melhor maneira possível, sentindo-me examinada por seu olhar agudo, que lia nas entrelinhas,nas hesitações, nos silêncios. Durante muito tempo, temi que um dia publicassem suas impressões do Brasil e que eu fosse denunciada como uma prova viva de que o segundo sexo no país ainda tinha uma longa caminhada pela frente.
Anos depois, em um diário, falando sobre a viagem, ela escreveu: “Durante dois meses, amei o Brasil.Amo-o ainda. Naquele momento, porém, quase cheguei ao ponto de gritar contra a seca, a fome, contra toda aquela angústia, aquela miséria”.
Fiquei pensando em uma jovem e uma senhora conversando em um fim de tarde.A jovem não imaginava o que estava por vir. Para ela o futuro parecia promissor. A senhora viu mais longe e, em seu diário, antecipou uma tempestade que se aproximava. E pensar que 1964 mudaria nossas vidas!
Texto de Helena Solberg publicado no caderno "Ilustríssima" da "Folha de S. Paulo" de 6 de abril de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
Eu estudava na PUC e achava o mundo algo altamente excitante. Considerava-me uma existencialista, ou achava que era. Lia avidamente Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Assistia aos filmes da 'nouvelle vague' e do neorrealismo italiano, sonhava fazer cinema e estava sempre atenta aos filmes dos diretores brasileiros que despontavam e que formariam o cinema novo. Éramos jovens e tínhamos a intuição de que o futuro nos traria um papel de importância, para o qual devíamos nos preparar. Mal sabíamos o que viria.
Em 1958, com 19 anos, fui trabalhar em um jornal estudantil, “O Metropolitano”, na época um suplemento do “Diário de Notícias”. Foi o meu primeiro emprego. Como repórter, eu tinha que correr atrás dos assuntos do momento. Por ser mais ou menos versada em francês e inglês, cabia a mim entrevistar visitantes estrangeiros que aqui chegavam; e foi assim que conheci Simone de Beauvoir, além de figuras como Graham Greene e Aldous Huxley.
A entrevista com Simone de Beauvoir foi marcada para depois de sua palestra na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio. Lembro-me de ficar surpresa com sua aparência bastante conservadora comparada com a da musa do existencialismo, a exótica e sensual Juliette Gréco. Na época Simone teria por volta de 60 anos. Usava os cabelos presos em um coque severo. Tinha pele muito clara e um rosto lavado, meio bretão. Eu fui toda vestida de negro, em pleno verão carioca,usando um penteado à Juliette. Quando revejo minha foto com ela, na entrevista, imagino que um leitor desavisado poderia se perguntar quem era quem.
O salão nobre estava lotado de estudantes curiosos que, por duas horas, ouviram respeitosamente a exposição sobre seu controvertido livro “O Segundo Sexo” (lançado anos antes na França e então saindo no Brasil). Na época, lê-lo até o fim me exigiu grande esforço e disciplina; só vim a realmente apreciá-lo anos depois.
O ponto mais controvertido de sua tese poderia ser resumido na frase que abre o segundo volume: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Simone colocava assim a ênfase no processo de socialização do indivíduo,mais do que no destino biológico. A mulher não poderia estar condenada a somente repetir a vida com o seu corpo, “o projeto do homem não é ode se repetir no tempo, mas sim de reinar sobre o momento e de forjar o futuro”. Questionada se seria possível comparar os preconceitos que condicionam a situação da mulher com os preconceitos raciais, respondeu que “ambos têm em comum terem sido criados por uma ideologia ‘a posteriori’ para justificar essa situação”.
Depois fomos tomar um café juntas. Nervosa — e no afã juvenil de querer parecer informada —, não parava de expor meus conhecimentos sobre o existencialismo. Simone ouvia em silêncio. Finalmente, com um sorriso discreto, disse: “Fale-me um pouco de você”. E de entrevistadora passei a ser entrevistada (uma técnica que aprendi então e que me tem sido extremamente útil ao longo dos anos). O foco era minha formação burguesa, que a interessava para entender o país que visitava.
Intimidada, respondia da melhor maneira possível, sentindo-me examinada por seu olhar agudo, que lia nas entrelinhas,nas hesitações, nos silêncios. Durante muito tempo, temi que um dia publicassem suas impressões do Brasil e que eu fosse denunciada como uma prova viva de que o segundo sexo no país ainda tinha uma longa caminhada pela frente.
Anos depois, em um diário, falando sobre a viagem, ela escreveu: “Durante dois meses, amei o Brasil.Amo-o ainda. Naquele momento, porém, quase cheguei ao ponto de gritar contra a seca, a fome, contra toda aquela angústia, aquela miséria”.
Fiquei pensando em uma jovem e uma senhora conversando em um fim de tarde.A jovem não imaginava o que estava por vir. Para ela o futuro parecia promissor. A senhora viu mais longe e, em seu diário, antecipou uma tempestade que se aproximava. E pensar que 1964 mudaria nossas vidas!
Texto de Helena Solberg publicado no caderno "Ilustríssima" da "Folha de S. Paulo" de 6 de abril de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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