TEMPERO QUE DÁ GOSTO

Mariana Dahia Vidal
Por muito tempo, rejeitou-se a essência do que era nosso. Chique era o que vinha da Provence francesa, como o alecrim, a sálvia. Quanta injustiça!”

Em 1661, François Vatel, tentando provar a Luís XIV, o Rei-Sol, que poderia desbancar Nicolas Fouquet, criou o chantilly, a partir de creme de leite, manteiga e açúcar. O mesmo creme, se misturado com limão, dá creme azedo. As maiores iguarias servidas pela humanidade surgiram a partir das boas associações de ingredientes, tornando-se precedentes gastronômicos. Muitos dos inventos franceses chegaram ao Brasil em lindas malas de grife. Mas como cabem muitas Franças nesse Brasil imenso, a gastronomia daqui se tornou um dos nossos fortes traços culturais, espalhada pela latitude e longitude de um território imenso, sobre um solo rico, em que a natureza obedientemente dá.

Mas tanto a feijoada quanto o cassoulet remetem à ideia de fartura, de uma mesa alegre e barulhenta, e ao suor de um cozinheiro. O picadinho carioca, mesmo nesse Rio de 40 graus, é frequentemente regado a vinho tinto. No Brasil, quem não tem filé mignon faz ensopado. Na França, faz pot-au-feu. Aqui e lá se usam ervas aromáticas, e talvez aí residam as nossas maiores semelhanças. No Brasil, as melhores associações de sabores estão justamente nas combinações das hortaliças que brotam aos borbotões à luz do sol da nossa terra.

Durante muito tempo, rejeitou-se a essência do que era nosso, e mesmo as ervas foram vítimas do preconceito. Chique era apenas o que vinha da Provence francesa, como o alecrim, a sálvia, o tomilho e o manjericão. Quanta injustiça!

No agregado, arroz, feijão, linguiça, queijo coalho e coentro são um feitiço dos deuses, ao qual se deu o nome de baião de dois. O coentro, tão amplamente rejeitado, dá a esse prato o frescor exato, capaz de se ocultar na medida certa para agradar a paladares cegos, que nem sequer notam a sua ingestão. Da mesma forma, já servi rabada com agrião sob uma roupagem diferente, para quem jurou que odiava. É que o agrião tem o dom, neste prato, de sofisticar o sabor denso da carne mais saborosa do boi, numa mistura quase indecente, em que o verde vivo dá textura e suavidade aos pequenos lombos macios. E daí para o importado da França, veremos que todas as ervas estão no dia a dia da nossa cozinha. Caças, frango ou porco com alecrim viram carnes chiques. Salsa torna rica qualquer receita com queijo. Manjericão vai sempre bem com tomates e azeitonas, remetendo ao cheiro do fresco mais fresco que existe. Cebolinha com carnes cruas é mágica frugal. Massa com sálvia e azeite é lógico. Feijão sem louro, esquece.

A nossa sociedade se habituou com o novo, e, bastante, com o estrangeiro, presente nas prateleiras dos nossos mercados desde os anos 1990. Li recentemente numa entrevista do Alex Atala que a gastronomia é uma arte como é a música, e há compositores e intérpretes. Me considero uma intérprete que bebe de fontes abundantes, submissa ao rigor da cozinha francesa, essencialmente por respeito aos mais velhos, mas livre para encontrar nas receitas das nossas famílias iguarias que me remetem ao melhor da minha memória afetiva.


Texto de Mariana Dahia Vidal publicado na "Revista O Globo", anexa ao jornal de 26 de janeiro de 2014. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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