MANTIMENTOS E ANIMAIS DO BRASIL NO SÉCULO XVII
HISTÓRIA DO BRASIL DO FREI VICENTE DO SALVADOR- Livro I
Frei Vicente do Salvador |
8. Do mantimento do Brasil
É o Brasil mais abastado de mantimentos que quantas terras há no mundo, porque nele se dão os mantimentos de todas as outras. Dá-se trigo em S. Vicente em muita quantidade, e dar-se-á nas mais partes cansando primeiro as terras, porque o viço lhe faz mal.
Dá-se também em todo o Brasil muito arroz, que é o mantimento da Índia Oriental, e muito milho zaburro, que é o das Antilhas e Índia Ocidental. Dão-se muitos inhames grandes, que é o mantimento de S. Tomé e Cabo Verde, e outros mais pequenos, e muitas batatas, as quais plantadas uma só vez sempre fica a terra inçada destas.
Mas o ordinário e principal mantimento do Brasil é o que se faz da mandioca, que são umas raízes maiores que nabos e de admirável propriedade, porque se as comem cruas, ou assadas são mortífera peçonha, mas raladas, esprimidas e desfeitas em farinha fazem delas uns bolos delgados, que cozem em uma bacia, ou alguidar, e se chamam beijus, que é muito bom mantimento, e de fácil digestão, ou cozem a mesma farinha mexendo-a na bacia como confeitos, e esta se a torram bem, dura mais que os beijus, e por isso é chamada farinha de guerra, porque os índios a levam quando vão a guerra longe de suas casas, e os marinheiros fazem dela sua matalotagem daqui para o reino.
Outra farinha se faz fresca, que não é tão cozida, e para esta / se a querem regalada / deitam primeiro as raízes de molho, até que amoleçam, e se façam brandas, e então as espremem etc., e se estas raízes assim moles as põem a secar ao sol chama-se carimã, e as guardam ao fumo em caniços muito tempo, as quais, pisadas se fazem em pó tão alvo como o da farinha de trigo, e dele amassado fazem pão, que se é de leite, ou misturado com farinha de milho, e de arroz, é muito bom, mas estreme é algum tanto corriento; e assim o para que mais o querem é para papas, que fazem para os doentes com açúcar, e as tem por melhores que tisanas, e para os sãos as fazem de caldo de peixe ou de carne, ou só de água, e esta é a melhor triaga que há contra toda a peçonha, e por isso disse destas raízes, que tinham propriedade admirável, porque sendo cruas mortífera peçonha, só com um pouco de água e sal se fazem mantimento e salutífera triaga: e ainda tem outra a meu ver mais admirável, que sendo estas raízes cruas mantimento com que sustentam e engordam cevados e cavalos, se as espremem e lhe bebem só o sumo morrem logo, e com ser este sumo tão fina peçonha, se o deixam assentar-se coalha em um polme, a que chamam tapioca, de que se faz mais gostosa farinha, e beijus, que da mandioca, e cru é bela goma para engomar mantos.
Outra casta há de mandioca, a que chamam aipins, que se podem comer crus, sem fazer dano, e assados sabem a castanhas de Portugal assadas, e assim de uma como da outra não é necessário perder-se a semente, quando se planta, como no trigo; mas só se planta a rama feita em pedaços de pouco mais de palmo, os quais metidos até o meio na terra cavada dão muitas e grandes raízes, nem se recolhem em celeiros donde se comam de gorgulho como o trigo, mas colhem-as do campo pouco a pouco, quando querem, e até as folhas pisadas, e cozidas se comem.
9. Dos animais e bichos do Brasil
Criam-se no Brasil todos os animais domésticos, e domáveis de Espanha, cavalos, vacas, porcos, ovelhas e cabras, e parem a dois e três filhos de cada ventre, e a carne de porco se come indiferentemente de inverno e verão, e a dão a doentes como a de galinha. Há também muitos porcos monteses; alguns como os javalis de Espanha, os quais andam em manadas, e se o caçador fere algum há logo de subir-se a alguma árvore; porque vendo eles que não podem chegar-lhe remetem todos ao ferido e aos outros em que se pegou algum sangue, com tanta fereza, que se não apartam até não deixarem três ou quatro mortos no campo, e então se vão em paz, e o caçador também com a caça.
Outros há que têm o umbigo nas costas, e é necessário tirar-lho com uma faca, antes que o esquartejem, sob pena de ficar toda a carne fedendo a raposinhos.
Outros há a que chamam capivaras, que quer dizer comedores de erva, andam sempre na água tirado, quando saem a passear pelos vales, e margens dos rios, e alguns tomam, e criam em casa fora da água, pelo que se julgam por carne, e não por pescado. Há outros animais a que chamam antas, que são de feição de mulas, mas não tão grandes, e têm o focinho mais delgado, e o beiço superior comprido a maneira de tromba, e as orelhas redondas, a cor cinzenta pelo corpo, e branca pela barriga, estas saem a passear só de noite, e tanto que amanhece metem-se em matos espessos, e ali estão o dia todo escondidos; a carne destes animais, é no sabor, e fêvera como de vaca, e do couro curtido se fazem mui boas couras para vestir, e defender de setas e estocadas: algumas tem no bucho umas pedras, que na virtude são como as de bazar, mas mais lisas, e maciças.
Há outras mais caças de veados, coelhos, cutias; e pacas que são como lebres, mas mais gordas e saborosas, e não se esfolam para se comerem, porque têm couros como de leitão.
Há tatus, a que os espanhóis chamam armadilhos, porque são cobertas de uma concha não inteiriça como a das tartarugas, mas de peças a modo de lâminas, e sua carne assada é como de galinha.
Tamanduá é um animal tão grande como carneiro, o qual é de cor parda com algumas pintas brancas, tem o focinho comprido e delgado para baixo, a boca não rasgada como os outros animais, mas pequena e redonda, a língua da grossura de um dedo, e quase de três palmos de comprido; as unhas, a maneira de escopros, o rabo mui povoado de cerdas, quase tão compridas como de cavalo, e todas estas coisas lhe são necessárias para conservar sua vida; porque como não come outra coisa senão formigas, vai-se com as unhas cavar os formigueiros, até que saiam da cova, e logo lança a língua fora da boca, para que se peguem a ela, e como a tem bem cheia a recolhe para dentro, o que faz tantas vezes até que se farta, e quando se quer esconder aos caçadores, lança o rabo sobre si, e se cobre todo com suas sedas, de modo que não se lhe vêem os pés nem cabeça, nem parte alguma do corpo, e o mesmo faz quando dorme, gozando debaixo daquele pavilhão um sono tão quieto, que ainda que disparem junta uma bombarda, ou caia uma árvore com grande estrépito não desperta, senão é somente com um assobio, que por pequeno, que seja o ouve logo, e se levanta.
A carne desse animal comem os índios velhos, e não os mancebos, por suas superstições, e agouros. Há também muita diversidade de animais nocivos, que se não comem, como são onças, ou tigres, que matam touros, e se estão famintos comerão um exército, mas se estão fartos, não só não ofendem a alguém, mas nem ainda se defendem e se deixam matar facilmente.
Há raposas, e bugios, e destes há uns que são grandes, chamados guaribas, que tem barbas como homens, e se barbeiam uns aos outros, cortando o cabelo com os dentes; andam sempre em bandos pelas árvores, e se o caçador atira em algum, e não o acerta matam-se todos de riso, mas se o acerta, e não cai, arranca a flecha do corpo, e torna a fazer tiro com ela a quem o feriu, e logo foge pela árvore acima e, mastigando folhas, metendo-as na feridas se cura, e estanca o sangue com elas.
Outros bugios há não tão grandes, nem tem mais habilidades que fazer momos e caretas, mas são de cheiro; e outros pequenos chamados sagüis, uns pardos, outros ruivos.
Há outro animal chamado jaritacaca, que tem as mãos e pés como bugio, o qual é malhado de várias cores e detestável à vista, mais que ao olfato, como experimentam os que o querem caçar, porque só com uma ventosidade que larga, é tanto o fedor, que lhe foge o caçador, e do caçador fogem os vizinhos, muitos dias não podendo sofrer o mau cheiro, que se lhe comunicou, e vai comunicando por onde quer que vá, e os cães se vão muitas vezes lavar na água, e esfregar com a terra sem poder tirar o fedor.
Outro animal há a que chamam preguiça, por ser tão preguiçoso, e tardo em mover os pés e mãos, que para subir a uma árvore, ou andar um espaço de vinte palmos há mister meia hora, e posto que o aguilhoem, nem por isso foge mais depressa.
Há outro a que chamam taibu, que, depois que pare os filhos, os recolhe todos em um bolso, que tem no peito, onde os traz até os acabar de criar.
Há também muitas cobras, e algumas tão grandes, que engolem um veado inteiro, e dizem os índios naturais da terra, que depois de fartas rebentam, e corrupta a carne se gera outra do espinhaço; porque já aconteceu achar-se alguma presa com um vime, que tinha em si incorporado, o que não podia ser, senão que ficou junto ao vime quando rebentou, e se lhe corrompeu a carne, e depois criando outra de novo a colheu de dentro, e incorporou em si; porém não se há de dizer que morrem / como os índios cuidam /, senão, que com a carne corrupta ficam ainda vivas, e assim não ressuscitam mas saram, e algumas se viram já de 60 palmos de comprido, em Pernambuco, se enrolou uma destas em um homem, que ia caminhando, de tal sorte que se não levara bom cão consigo, que mordendo-a muitas vezes a fez largar, sem falta o matava: e ainda assim o deixou tal, que nunca mais tornou as suas cores, e forças passadas.
Também me contou uma mulher de crédito, na mesma capitania de Pernambuco, que estando parida lhe viera algumas noites uma cobra mamar nos peitos, o que fazia com tanta brandura, que ela cuidava ser a criança, e depois que conheceu o engano o disse ao marido, o qual a espreitou na noite seguinte e a matou. Há outras a que chamam cascavéis; porque os têm no rabo, com que vão fazendo rugido, por onde quer que vão, e cada ano lhe nasce um de novo, algumas vi que tinham oito, e são tão venenosas, que os mordidos delas de maravilha escapam. Outra há que chamam de duas cabeças, porque tanto mordem com o rabo como com a cabeça.
Há no Brasil infinitas formigas, que cortam as folhas das árvores, e em uma noite tosam toda uma laranjeira, se seu dono se descuida de lhe botar água em uns testos, que tem aos pés.
Outra casta há chamada copy, que fazem uns caminhos cobertos por onde andam, e roem as madeiras das casas, e os livros, e roupa que acham, se não há muita vigilância. Piolhos e percevejos não há no Brasil, nem tantas pulgas como em Portugal; mas há uns bichinhos de feição de pulgas, tão pequenos como piolhos de galinhas, que se metem nos dedos e solas dos pés de quem anda descalço, e se fazem tão grandes, e redondos como camarinhas, quem sabe tirá-los inteiros sem lesão o faz com a ponta de um alfinete, mas quem não sabe rebenta-os, e ficando a pele dentro cria matéria.
10. Das aves
Além das aves que se criam em casa, galinhas, patos, pombos, e perus, há no Brasil muitas galinhas bravas pelos matos, patos nas lagoas, pombas bravas, e umas aves chamadas jacus, que na feição e grandeza são quase como perus.
Há perdizes e rolas, mas as perdizes têm alguma diferença das de Portugal. Há águias de sertão, que criam nos montes altos, e emas tão grandes como as da África, umas brancas, e outras malhadas de negro, que sem voarem do chão com uma asa levantada ao alto, ao modo de vela latina, correm com o vento como caravelas, e contudo as tomam os índios a cosso nas campinas.
Há muitas garças ao longo do mar, e outras aves chamadas guarás, que quando empenam são brancas, e depois pardas e, finalmente, vermelhas como grã. Há papagaios verdes de cinco ou seis espécies, uns maiores, outros menores, que todos falam o que lhes ensinam. Há também araras, e canindés de bico revolto como papagaios, mas são maiores, e de mais formosas penas. Há uns passarinhos, que para que as cobras lhes não entrem nos ninhos a comer-lhes os ovos, e filhinhos, os fazem pendurados nos ramos das árvores de quatro ou cinco palmos de comprido, com o caminho mui intrincado, e compostos de tantos pauzinhos secos, que se pode com eles cozer uma panela de carne. Há outros chamados tapéis, do tamanho de melros, todos negros, e as asas amarelas, que remedam no canto todos os outros pássaros perfeitissimamente, os quais fazem seus ninhos em uns sacos tecidos.
Há muitas mui grandes baleias, que no meio do inverno vem a parir nas baías, e rios fundos desta costa, e às vezes lançam a ela muito âmbar, do que do fundo do mar arrancam, quando comem, e conhecido na praia, porque aves, caranguejos, e quantas coisas vivas há acodem a comêlo.
Há outro peixe chamado espadarte, por uma espada que tem no focinho de seis ou sete palmos de comprido, e um de largura, com muitas pontas, com que peleja com as baleias, e levantam a água tão alta quando brigam, que se vê daí a três ou quatro léguas.
Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora d’água após os índios, e nela hão morto alguns, que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece, que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços, e toda a carne.
Na capitania de S. Vicente, na era de 1564, saiu uma noite um monstro marinho à praia, o qual visto de um mancebo chamado Baltazar Ferreira, filho do capitão, se foi a ele com uma espada, e levantando-se o peixe direito como um homem sobre as barbatanas do rabo lhe deu o mancebo uma estocada pela barriga, com que o derrubou, e tornando-se a levantar com a boca aberta para o tragar-lhe deu um altabaixo na cabeça, com que o atordoou, e logo acudiram alguns escravos seus, que o acabaram de matar, ficando também o mancebo desmaiado, e quase morto, depois de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de comprido, não tinha escama senão pêlo, como se verá na figura seguinte.
Há uns peixes pequenos em toda esta costa, menores de palmo, chamados majacus, que sentindo-se presos do anzol o cortam com os dentes, e fogem, mas se lhe atam a isca em qualquer linha, e pegam nela, os vão trazendo brandamente a superfície da água, onde com uma rede-fole os tomam sem alguma resistência, e tanto que os tiram fora da água incham tanto, que de compridos que eram ficam redondos como uma bexiga cheia de vento, e assim se lhe dão um coice rebentam e soam como um mosquete, tem a pele muito pintada, mas mui venenosa, e da mesma maneira o fel; porém se o esfolam bem se comem assados, ou cozidos, como qualquer outro peixe. Outros há do mesmo nome mas maiores, e todos cobertos de espinhos mui agudos, como ouriços cacheiros, e estes não vêm senão de arribação de tempos em tempos, e um ano houve tantos nesta baía, que as casas, e engenhos se alumiaram muito tempo com o azeite de seus fígados.
Mariscos há em muita quantidade, ostras, umas que se criam nos mangues, outras nas pedras, e outras nos lodos, que são maiores. Nas restingas de areia há outras redondas e espalmadas, em que se acha aljôfar miúdo, e dizem que se as tirassem do fundo de mergulho achariam pérolas grossas. Há briguigões, amêijoas, mexilhões, búzios como caracóis, e outros tão grandes, que comida a polpa ou miolo fazem das cascas buzinas, em que tangem, e soão mui longe.
Há muitas castas de caranguejos, não só na água do mar e nas praias entre os mangues: mas também em terra entre os matos há uns de cor azul chamados guaiamus, os quais nas primeiras águas do inverno, que são em fevereiro, quando estão mais gordos, e as fêmeas cheias de ovas, se saem das covas, e se andam vagando pelo campo, e estradas, e metendo-se pelas casas para que os comam.
Camarões há muitos, não só no mar como os de Portugal, mas nos rios e lagoas de água doce, e alguns tão grandes como lagostins, dos quais também há muitos, que se tomam nos recifes de águas-vivas, e muitos polvos e lagostas.
Extraido do livro "História do Brasil" de Frei Vicente do Salvador, escrito na Bahia a 20 de dezembro de 1627, edição do Conselho Editorial do Senado Federal, Brasilia, 2010, livro I pp.11 a 15. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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