GÂNDAVO: DA CONDIÇÃO E COSTUMES DOS ÍNDIOS DA TERRA


Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente.

 Havia muitos destes índios pela  Costa junto das Capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram para o sertão, e assim ficou a Costa despovoada de gentio ao longo das Capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses.

A língua deste gentio toda pela Costa é, uma carece de três letras –scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.
 
Estes índios andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu. Vivem todos em aldeias, pode haver em cada uma sete, oito casas, as quais são compridas feitas à maneira de cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente de uma parte e de outra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada  em que dorme, e assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo meio da casa fica um caminho aberto para se servirem. Não há como digo entre eles  nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve de outra coisa senão  de ir com eles à guerra, e aconselhá-los como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles coisa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram coisa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida.
 
Estes índios são muito belicosos e têm sempre grandes guerras uns contra os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver entre eles amizade; porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam imigos verdadeiros perpetuamente. As armas com que pelejam  são arcos e frechas; a coisa que apontarem não na erram, são muito certos com esta arma e muito temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. E são muito inclinados a pelejar, e muito valentes e esforçados contra seus adversários, e assim parece coisa entranha ver dois, três mil homens nus de uma parte e de outra com grandes assobios e grita frechando uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos meneando-se de uma parte para outra  com muita ligeireza  para que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes as frechas pelo chão e servi-los enquanto pelejam. Gente é esta muito atrevida  e que teme muito pouco a morte, e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que nenhum de sua companhia há de morrer. E quando partem dizem, vamos matar: sem mais consideração, e não cuidam que também podem ser vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matam e comem, enfim que suas guerras são muito perigosas, e devem-se ter em muita conta porque uma das coisas que desbaratou muitos portugueses foi a pouca estima em que tinham a guerra dos índios, e o pouco caso que faziam deles, e assim morreram muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha; destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece a cada passo nestas partes.

 Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou sejam portugueses ou quaisquer outros índios seus imigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda muito grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais fermosa e honrada que há na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado  de o guardar, e não vai para parte que não no acompanhe. Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, determinam de o matar, e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e fazem-nos da raiz de uma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida mastigam-na umas moças virgens e, espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes cantares e folias, e tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no pela cinta com quatro cordas cada uma para sua parte, e três, quatro índios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio de um terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bulir para uma parte nem para outra, as mãos lhe deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada de um pau muito duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas coisas e ameaçando-lhe sua geração que o mesmo há de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas, dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito depressa com ele a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele coisa que não comam. Isto é mais por vingança e por ódio que por se fartarem. Depois que comem a carne destes contrários ficam nos ódios confirmados, e sentem muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra os outros.  E se a moça que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança, que pariu depois de criada, matam-na e comem-na  e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro, e por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando se sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz com que morra. E acontece algumas vezes afeiçoar-se tanto a este cativo e tomar-lhe tanto amor que foge com ele para sua terra para o livrar da morte. E assim alguns portugueses há que desta maneira escaparam e estão hoje em dia vivos; e muitos índios que do mesmo modo se salvaram, ainda que são alguns tão brutos que não querem fugir depois de os terem presos; porque houve algum que  estava já no terreno atado para padecer e davam-lhe a vida e não quis senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não teriam por valente, e que todos correriam com ele; e daqui vem não estimarem a morte; e quando chega aquela hora não na terem em conta nem mostrarem nenhuma tristeza naquele passo.
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Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos, ainda que todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mostram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem eles têm paz senão dos contrários. Tem esta qualidade estes índios que de qualquer coisa que comam por pequena que seja hão de convidar com ela quantos estiverem presentes, só esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro nenhum enjeitam  por peçonhento  que seja, somente aranha.

Têm estes índios machos por costume arrancar toda a barba e não consentem nenhum cabelo em parte alguma de seu corpo, salvo na cabeça, ainda que arredor dela por baixo tudo arrancam. As fêmeas presam-se muito de seus cabelos e trazem-nos muito compridos e penteados e as mais delas enastrados.
Os machos costumam trazer o beiço furado e uma pedra no buraco metida por galantaria; outros há que trazem o rosto todo cheio de buracos e assim parecem muito feios e disformes: isto lhes fazem quando são meninos. Também alguns índios andam pintados por todo o corpo, pelo qual fazem uns riscos escritos na carne: isto não traz senão quem tem feito alguma valentia. E assim também machos como fêmeas costumam tingir-se com sumo de uma fruita que se chama jenipapo, que é verde quando se pisa e depois que põe no corpo e se enxuga fico muito negro e por muito que se lave não se tira senão aos nove dias: isto tudo fazem por galantaria.
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Estas índias guardam castidade a seus maridos e são muito suas amigas, porque também eles sofrem mal adultérios; casam  os mais deles com suas sobrinhas, filhas de seus irmãos ou irmãs, estas são suas mulheres verdadeiras, e não lhas podem negar seus pais.
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Algumas índias se acham nestas partes que juram e prometem castidade, e assim não casam nem conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem no consentiram ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres, e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem, e vão à guerra com seu arco e frechas e à caça: enfim que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados.

Estes índios vivem muito descansados, não têm cuidado de coisa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso são muito gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer coisa, comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente. Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhes dizem fazem e têm-no por muito certo: daqui vem a muitos moradores não comprarem nenhumas por lhes não fazerem fugir seus escravos.
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Quando estas índias parem, a primeira coisa que fazem depois do parto lavam-se todas num ribeiro e ficam tão bem-dispostas como se não pariram; em lugar delas se deitam seus maridos nas redes, e assim os visitam  e curam como se eles fossem os paridos.

Quando algum destes índios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado sobre os pés, com sua rede às costas em que ele dormia, e logo pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova. Outras muitas bestialidades usam estes índios que aqui não escrevo, porque minha tenção foi não ser comprido, e passar tudo isto com brevidade.

Dos resgates

 Estes índios não possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri-la como os outros homens, somente cobiçam muito algumas coisas que são deste Reino – scilicet, camisas, pelotes, ferramentas e outras coisas que eles têm em muita estima e desejam muito alcançar dos portugueses. A troco disto se vendiam uns aos outros, e os portugueses resgatavam muitos deles e salteavam quantos queriam sem ninguém lhes ir à mão, mas já agora não há isto na terra nem resgates como soía, porque depois que os padres da Companhia vieram a estas partes proveram neste negócio e vedaram muitos saltos que faziam os portugueses  por esta Costa, os quais encarregavam muito suas consciências  com cativarem muitos índios contra direito e moverem-lhes guerras injustas. E por isso ordenaram os padres e fizeram com os Capitães da terra que não houvesse mais resgates nem consentissem  que fosse nenhum português a suas aldeias sem licença do mesmo Capitão. E quantos escravos agora vêm novamente do sertão ou das outras Capitanias, todos levam primeiro à Alfândega e alí os examinam e lhes fazem perguntas quem os vendeu, ou como foram resgatados, porque ninguém os pode vender senão seus pais ou aqueles que em justa guerra os cativam, e os que acham mal adquiridos põem-nos em sua liberdade, e desta maneira quantos índios se compram são bem resgatados, e os moradores da terra não deixam por isso de ir muito avante com suas fazendas.

Texto de Pero de Magalhães Gândavo capítulo sétimo do livro "Tratado da Terra do Brasil" (1570).
Pêro de Magalhães Gândavo foi um historiador e cronista português. Filho de pais flamengos oriundos da cidade de Gand, daí o seu apelido Gândavo, nasceu em Braga em data incerta, provavelmente por volta de 1540. Foi professor de Latim e Português no norte de Portugal. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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