VIDA COTIDIANA NO BRASIL HOLANDÊS


À época da ocupação holandesa, Recife já era uma cidade grande comparada com o restante do Brasil colonial. Sua população - 6.000 habitantes, aproximadamente - era formada por gente vinda dos quatro cantos do planeta. Além de comerciantes das mais diversas origens, havia soldados mercenários de várias nacionalidades a serviço da Companhia das Indias Ocidentais, principalmente franceses, ingleses e alemães. Os soldados e comerciantes franceses formavam uma comunidade à parte; na maioria protestantes, fundaram, na Cidade Maurícia, uma igreja francesa. Muitos escoceses faziam o comércio ambulante. Entre os alemães, além de militares, havia cientistas ilustres, como o naturalista Georg Marcgraf, e artistas notáveis, como o pintor Albert Eckhout.
Os judeus, bastante numerosos, ocupavam uma posição especial nesse mosaico de povos. Muitos deles eram descendentes de famílias que durante séculos haviam habitado a península  Ibérica e, perseguidas pela Inquisição, fugiram para a Holanda. Falando fluentemente holandês e português, serviam de intérpretes entre os luso-brasileiros e os invasores. A maioria ,vivia do comércio de açúcar ou de escravos. Tinham sua rua, a Jodenstraat (rua dos Judeus), e um cemitério fora da cidade. Como em outras épocas e lugares. a acusação de monopolizarem o comércio deu margem a violentas manifestações anti-semitas em Recife a partir de 1637.

Costumes Constratantes

Comerciantes requintados, os holandeses - assim  como outros europeus - mostravam - se chocados com o "primitivismo" dos costumes da comunidade luso-brasileira. Diante das mulheres portuguesas - geralmente gordas, feias e reclusas -, os holandeses suspiravam de saudade de suas patrícias, elegantes e consideravelmente liberadas para os padrões europeus da época. Criticavam também o rude despojamento das casas portuguesas, bem como a pobreza da alimentação. No dia-a-dia, conta um viajante, "um pouco de farinha e um peixinho seco" era tudo que aparecia na mesa lusitana. Galinhas, perus, leitões e carneiros eram reservados para receber visitas ou para dias de festa.
Contudo, embora torcendo o nariz para os dotes físicos e as maneiras das mulheres do Brasil, os holandeses as desposaram com bastante freqüência, chegando a adotar seus costumes e a religião católica. Houve também um bom número de casamentos de holandeses com índias. Já as uniões - ou pelo menos os casamentos - entre homens portugueses e mulheres holandesas parecem ter sido raras.

A Legendária Farsa do Boi Voador 

Além de grande, Recife de Maurício de Nassau chegou a ser uma cidade mais ou menos confortável, em contraste com a precariedade da vida urbana por todo o Brasil do século XVII. As ruas pavimentadas, pontes e obras de saneamento feitas pelos holandeses melhoraram sensivelmene as condições de vida da população. E havia até algum divertimento por conta do conde. Ficaram famosas as cavalhadas que ele promoveu em 1641, na beira do Capibaribe. A farsa do boi voador também se tornou lendária: no dia da inauguração da ponte do Recife, os holandeses anunciaram que fariam um boi voar. Diante da multidção que veio ver o prodígio, fizeram aparecer primeiro um boi de verdade no alto de um sobrado. Depois, um couro de boi recheado de palha, "sobrevoou" a assistência suspenso por cordas que, na escuridão da noite, não eram vistas pelo público.

A Cidade Maurícia

Palácio Friburgo de Maurício de Nassau
Maurício de Nassau não se contentou em fazer melhoramentos em Recife. Na ilha de Antônio Vaz (hoje um bairro da capital pemambucana) construiu a Cidade Maurícia, onde se instalou com dois palácios. Frei Manuel Calado assim o descreveu:
"Andava o Príncipe Conde de Nassau tão ocupado em fabricar sua nova cidade, que para afervorar aos moradores a fazerem casas, ele mesmo,com muita curiosidade, lhe andava deitando as medidas, e endireitando as para ficar a povoação mais vistosa e lhe trouxe a entrar pelo meio dela, por um dique ou levada, a água do rio Capibaribe a entrar na barra, pelo qual dique entravam canoas batéis, e barcas para o serviço dos moradores por debaixo das pontes de madeira com que atravessou em algumas partes este dique a modo de Holanda, de sorte que aquela ilha ficava toda rodeada de água. 
Também ali fez uma casa de prazer, que lhe custou muitos cruzados, e no meio daquele areal estéril e infrutuoso plantou um jardim e todas as castas de árvores de fruto que se dão no Brasil, e ainda muitas que lhe vinham de diferentes partes (...); e o gosto do Príncipe era que todos fossem ver suas curiosidades, e ele mesmo por regalo as andava mostrando, e para viver com mais alegria deixou as casas aonde morava, e se mudou para o seu jardim com a maior parte dos seus criados. 
Também ali trazia todas as castas de aves, e animais que pode achar, e como os moradores da terra lhe concederam a condição e o apetite, cada um lhe trazia a ave ou animal esquisito que podia achar no sertão (...), e finalmente não havia coisa curiosa no Brasil que ali não tivesse, porque os moradores lhas mandavam de boa vontade, pela boa inclinação que viam de os fornecer,  e assim também lhe ajudaram a fazer as suas duas casas, assim esta do jardim onde morava, como a de Boa Vista sobre o Capibaribe aonde iam muitos dias passeando a se recrear, porque uns lhe mandavam a madeira, outros a telha, e o tijolo, outros o cal e finalmente todos o ajudaram no que puderam, e ele se  mostrava tão agradecido, e favorecia de sorte aos portugueses, que lhes parecia que tinham nele um pai, e lhes aliviava muito a tristeza e dor de verem cativos".

Ciência e Arte na Corte de Nassau

Os melhoramentos urbanos que mandou fazer em Recife - culminando com a construção da Cidade Maurícia na' 'Ilha de Antônio Vaz - sugerem que Maurício de Nassau não se via como um mero administrador colonial. O conde era um protetor das ciência, na melhor tradição dos príncipes da Renascença européia, E devia considerar-se uma espécie de herói civilizador dos trópicos, Além disso,dizia-se apaixonado por "esse belo país do Brasil que não tem igual sob o céu", Fosse por amor à terra, à arte ou às conveniências políticas, o fato é que Nassau transformou Recife na mais notável cidade da costa atlântica das Américas em seu tempo.

Cientistas, Artistas e Letrados

Frontispício do livro  "Rerum per Octenium in Brasilia"
A marca da passagem de Maurício de Nassau pela administração do Brasil Holandês  refletiu, em boa medida, o trabalho dos quarenta e tantos cientistas, artífices e artistas que ele trouxe da Europa e manteve a seu serviço em Recife, Dentre os cientistas, destacam-se Georg Marcgraf é Willem Piso, autores da "História Natural do Brasil", publicada em 1648, Marcgraf classificou centenas de espécies da fauna e flora brasileira, escreveu sobre o clima e os habitantes da terra e dedicou-se à astronomia, Piso era médico do conde; em Pernambuco realizou estudos das doenças tropicais, das ervas medicinais e do clima.
Os letrados ilustres da corte tropical de Nassau incluíam Johan Benning, professor de ética e física da Universidade de Leiden, autor de vários livros, incluindo uma coleção de epigramas sobre temas brasileiros; Elias Herckman, autor de uma descrição geral da capitania da Paraíba; Constantijn l'Empereur, especialista em literatura religiosa judaica; e Sarvaes Carpentier, médico e funcionário da Companhia das Indias Ocidentais, que escreveu relatórios importantes sobre o Brasil holandês, Com toda essa gente, Maurício de Nassau planejava fundar em Recife uma universidade aberta a holandeses e portugueses, protestantes e católicos. Sua partida, em 1644, frustrou o projeto.
Quanto aos artistas, Nassau gabava-se de ter abrigado em sua corte seis pintores. Sabe-se, com certeza, de três: o holandês Frans Post e os alemães Albert Eckhout e Zacharias Wagener, Possivelmente em sua conta o conde incluía também Marcgraf, que fez as ilustrações da "História Natural do Brasil", um cartógrafo - Cornelis Goliath ou Jan Vingboons - e talvez o alemão Gaspar Schmalkalden. De todos eles destacaram-se Frans Post, basicamente um paisagista e Eckhout, discípulo de Rembrandt, que pintou extraordinárias nturezas-mortas e figuras humanas. Dentre os artistas que trabalharam para Nassau resta mencionar o arquiteto Pieter Post, que projetou os palácios do conde em Recife, e o poeta Barlaeus, autor de "Rerum per Octenium in Brasilia"... A obra documenta a passagem de Nassau pelo Brasil, elaborada na Holanda por encomenda do próprio conde, é ilustrada por 55 gravuras que geralmente se atribuem a Frans Post.

Marcgraf, O Maior Cientista de Nassau

Embora Willem Piso tenha ficado famoso, o principal cientista trazido por Nassau ao Brasil foi Georg Marcgraf. Nascido em Uebstad, Alemanha, em 1610, morto em Angola em 1644, Marcgraf deixou inacabados os trabalhos que iniciara. Cientistas modernos acreditam que, se tivesse vivido o suficiente para concluir sua obra, teria sido um dos maiores naturalistas de todos os tempos - talvez o maior desde Aristóteles. Muitos de seus escritos se perderam. As coleções de botânica e zoologia que mandou para a Europa em 1644 foram estudadas até o século XIX.
Sua "História Natural do Brasil" (1648) é o primeiro estudo científico da fauna e flora brasileira. Na casa onde morou em Recife, entre 1637 e 1642, dispunha de um observatório astronômico que o próprio Nassau mandou vir da Holanda para ele. Por ordem do conde, os capitães de navio deviam observar com atenção todos fenômenos celestes avistados, a fim de relatá-los ao cientista. Entre ou feitos nesse campo, Marcgraf observou e descreveu pela primeira vez um eclipse solar na América, em novembro de 1640. Naturalista e astrônomo, o alemão era também matemático, agrimensor e cartógrafo. Os vários mapas que elaborou serviram de base aos que foram publicados na obra de Barlaeus.

Texto publicado em "Saga: A Grande História do Brasil", Abril Cultural,São Paulo, 1981,vol. 1, p.216-219. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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