OS ENIGMÁTICOS SABORES DO MUNDO


O viajante disposto a conhecer a culinária do país escolhido tem que estar pronto para encarar boas e más surpresas. As releituras de pratos tradicionais quase sempre descaracterizam os menus originais.

Uma viagem pode ser planejada levando em consideração diferentes quesitos, como o clima, os monumentos naturais, a oferta de atrativos culturais e também a gastronomia. Se você gosta muito de comida e clima quentes, por exemplo, o México, em um primeiro momento, surge como destino ideal para as férias. Mesmo a equação parecendo correta, porém, os argumentos estão errados. A temperatura pode até ser a esperada, mas nem sempre os pratos de lá experimentados aqui são iguais aos oferecidos no local de origem.
Por isso, é muito comum se deparar com comidas demasiadamente apimentadas, condimentos estranhos ao paladar e ingredientes nada familiares. Para não ser pego de surpresa, o chef italiano Kumalè detalhou no livro "O Mundo à Mesa – Preceitos, Mitos e Tabus da Gastronomia" (Editora Saberes) as principais tradições alimentares mundo à fora.
Em visita a Paris com amigos, a fonoaudióloga Carla Oliveira não pensava em outra coisa a não ser conhecer os museus e monumentos e comer todos os pratos típicos da França. Após um passeio ao Louvre, ela, o noivo e os amigos decidiram jantar em um restaurante próximo ao museu. “Eu estava com fome e com muita vontade de provar a tão falada sopa de cebola, mas, quando ela chegou, a surpresa não foi nada agradável, estava horrível”, recorda. Segundo ela, mais parecia uma água suja com um pão mole dentro e resquícios de cebola. “Estava esperando um caldo cremoso, quentinho, mas estava péssimo, sem sabor e com uma aparência feia. O que salvou foi uma casquinha de queijo que veio por cima”, descreve.
Sopa de Cebola
Frustrada, Carla observou o local e percebeu que, além dela e da amiga que escolheu a mesma sopa, o restante da pessoas se mostrava satisfeito com o prato, prova de que elas não estavam acostumadas com aquele tipo de comida. No livro, Kumalè discorre sobre as transformações sofridas pelos alimentos ao longo do tempo para que eles se adaptassem às diferentes localidades onde foram incorporados à alimentação. “Trata-se de um fenômeno que pode influenciar tanto uma especialidade particular como o inteiro repertório gastronômico, definindo características essenciais de uma cozinha híbrida ou de fronteira”, explica.
De acordo com o chef, esse mecanismo ocorre bastante no Ocidente, que tem o costume de modificar uma receita a ponto de quase descaracterizar completamente a sua identidade. “Esse processo de ‘adaptação’, por mais que pareça desagradável, é motivado por uma série de fatores, como o fornecimento de matérias-primas e a adaptação ao gosto local”, pontua. Não é à toa que Carla estranhou a suavidade dos temperos da sopa, pois os franceses não carregam nos condimentos como os brasileiros.
“Quanto maior é a distância que separa duas tradições culinárias, por exemplo, a indiana da italiana, maior a probabilidade de a equipe de cozinheiros alterar as receitas, adaptando-as a seus traços mais característicos e tornando-as agradáveis ao paladar do público que se aproxima dos novos sabores”, afirma.
No final dos anos de 1960, por exemplo, imigrantes turcos reformularam o tradicional kebab para se adequar ao gosto dos alemães. “Do coração da Alemanha multiétnica, o percurso para ganhar o resto da Europa durou cerca de 30 anos, mas conseguiu ganhar cada país e distrito, de Londres a Marselha”, observa Kumalè, destacando que o prato virou “comida para passeio” em diversos cantos do mundo.

Fome em Pequim

Escorpiões no espetinho
Assim, haja contratempos nas andanças pelo mundo. A médica Gabriella Basile visitou a China com a família para comemorar o aniversário de 25 anos de casamento dos pais. Como todos adoram a gastronomia do país, acharam que não teriam problemas com a alimentação durante a viagem. Estavam errados. Nada, absolutamente nada, segundo Gabriella, foi parecido com o que é servido no Brasil como culinária chinesa.
A gente passou fome em Pequim. Era tudo muito apimentado ou muito doce e com uma aparência horrível. Sem contar os insetos servidos no palito”, lembra. A jovem conta que, uma vez, saiu correndo do espetinho de escorpião que um vendedor insistia para ela provar. Não bastasse o estranhamento com os sabores, a família percebeu que a forma como eles comiam também era errada.
Quando foram saborear os pratos, os garçons achavam graça de eles não comerem com as mãos. Outro susto foi quando pediram um prato famoso, do qual não lembravam o nome. Chegou à mesa em um balde cheio de água quente, tripas e pedaços de frango. “É tudo muito esquisito. Não pesquisamos sobre a gastronomia local, mas agora acho isso muito importante”, diz.
A quantidade de pimenta nos pratos é herança da revolução cultural na República Popular da China (1949), liderada por Mao Tse-Tung. Recusando-se a viver na Cidade Proibida, lar dos imperadores, ele despediu os chefs que faziam os grandes banquetes do império e redefiniu os privilégios e excessos da casta imperial. “Alguns argumentaram que Mao Tse-Tung realmente desdenhava a cozinha insípida e barroca do palácio, muito diferente da comida camponesa de Hunan, mais saborosa e substancial”, conta, no livro, Kumalè.
O chef relata ainda que o revolucionário, para mostrar a resistência encontrada em Pequim, cunhou uma frase até hoje estampada em camisas usadas principalmente por jovens chineses: “Quem não come comida apimentada é inimigo da revolução!”. A força dos tabus Em relação aos animais estranhos, Kumalè acredita que a aversão é puro tabu. Para os orientais, são especialidades da alta cozinha, como os venenos de escorpiões, aranhas e cobras.
Segundo o chef, a característica de uma comida que mais desperta repulsa é o cheiro dos ingredientes. “Tomemos como exemplo os vapores exalados de alguns peixes, como o camarão tailandês; ou molhos de peixe obtidos por maceração salina em todo o Sudeste Asiático; ou algumas variedades de peixes e frutos do mar secos e defumados vendidos nos mercados da África Ocidental”, ilustra.
Foi exatamente o cheiro forte e o sabor extremamente desconhecido para o paladar dos brasileiros que fizeram a designer de joias Cristina Pessoa se decepcionar com um peixe servido em Camboja. Ela conta que chegou ao país e foi informada, pelo dono do hotel em que se hospedou, sobre um prato típico da região preparado com peixe. Ela não pensou duas vezes e disse que queria provar, mas soube que a feitura da comida demoraria três dias. “Eu encomendei a iguaria e viajei pelo país, fui conhecer os lugares, mas só conseguia pensar no peixe. Estava ansiosa”, recorda. Quando chegou o momento de saboreá-lo, a decepção foi do tamanho da ansiedade. “O peixe chegou num papel laminado e, quando foi aberto, subiu um cheiro forte horrível. O sabor, então, nem se fala, era terrivelmente salgado”, conta. Sem graça, Cristina elogiou o prato e, assim que pode, enrolou o peixe no guardanapo e o escondeu na bolsa. “Nossa, jamais comi uma coisa tão diferente”, avalia.
Como viaja muito a trabalho, designer já encarou muitos choques culturais. Uma vez na Índia ficou curiosa sobre de que era feito e qual era o sabor de um doce com cores dourada e prateada. Ela descobriu que era de ouro e de prata, respectivamente, e, então, pediu para prová-lo. “Quando o vendedor foi me entregar, a palma da mão dele estava imunda, o que para mim foi um contraste absurdo, de uma coisa cara em mãos tão maltratadas. Eu comi mesmo assim, não ia fazer essa desfeita”, conta.

Texto de Rebeca Ramos publicada no "Jornal do Commércio" edição de final de semana 7 a 9 de setembro de 2012. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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