CAFÉ DA CUÍCA, UMA CARA NOVIDADE


Após cuíca escolher os melhores grãos de café e cuspir suas sementes, o quilo passa a custar até R$ 900 no mercado.

Á primeira vista, não dava para entender por que diabos aqueles grãos de café, meio gosmentos, surgiam amontoados sob as árvores, da noite para o dia. Ao amanhecer, era sempre igual: os roceiros se enfiavam no meio do cafezal para fazer a colheita manual e davam de cara com uns grãos, já sem casca, sobre as folhas secas no chão. Algum animal ali da mata andava a chupar esses frutinhos adocicados.
Depois de muito fuçar, Rogério Lemke, o administrador da fazenda Camocim, na qual se espalham 120 mil pés de café em Pedra Azul, a 100 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo,matou a charada. Eram cuícas, pequenos roedores silvestres, que guardam certa semelhança com um rato. Os bichos se penduram nos galhos mais baixos das árvores, à noite, para se alimentar da casca, da polpa e do mel do café. Escolhem sempre os melhores frutos, como em uma “colheita seletiva”. Depois, as cuícas dispensam os grãos, ainda com algum resquício do mel sobre o pergaminho (película entre a semente e a polpa).
Para evitar prejuízo, como desperdício de grãos, o carioca Henrique Sloper, dono da fazenda, resolveu recolher essas sementes “cuspidas”.A partir daí, como revela a Folha, Sloper decidiu fazer testes de secagem e torra para descobrir, na xícara,o que eles poderiam render. Depois de um ano de avaliações, o café da cuíca deve ser lançado em novembro por pelo menos R$ 900 o quilo. Em média,um pacote de mesmo peso de um café especial custa R$ 60—os grãos cuspidos pelo animal custarão, portanto, 14 vezes mais.
Seu João Pagio Fiorezi, 61, fornece mudas de café há 25 anos para a fazenda Camocim. Na última quinta-feira, ele subiu na caçamba do pequeno caminhão com a reportagem da Folha para garimpar os grãos de café deixados para trás pelas cuícas. Seu João saltou do caminhão,adentrou o cafezal,aproximou-se de uma árvore em área mais reservada, ou seja, mais afastada de casas e estrada, e mais perto da mata. Agachou-se e abriu os galhos mais baixos para espiar.
Esse é o café da cuíca”,disse,pegando um punhado de grãos despolpados(sem casca nem polpa)nas mãos.Aquele café tinha cheiro forte, remetia à terra e ao universo animal — mas o odor não chegava a ser ruim. Os grãos estavam com uma gosma, ainda resquício do mel do café. E as cuícas? Não foram encontradas. Enfiam-se no meio da mata e ali ficam, escondidas. São animais ariscos e noturnos, que gostam de comer somente os grãos adocicados, no ápice da maturidade.
Elas têm um ótimo critério de seleção.São incapazes de comer café verde ou estragado”, diz Evair de Melo, presidente da Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa,Assistência Técnica e Extensão Rural),que ajudou a desenvolver os cafés de jacu e cuíca na fazenda. As cuícas surgem por ali aos montes porque a área é circundada de parques nacionais e mantém parte da mata nativa.
Cuíca
A colheita desses grãos cuspidos pelas cuícas é trabalhosa, feita manualmente por roceiros que se agacham junto aos pés de café e pegam grão por grão acomodando-os em sacolas a tiracolo. É fundamental que seja realizada regularmente para que os grãos não fermentem sobre o chão — é comum ficarem protegidas pelas folhas das árvores da mata ali conservada, que servem de adubo natural ao cafezal. Os grãos colhidos são transportados para secar em um terreiro suspenso, protegido por estufa, com umidade e temperatura controladas. Depois, são separados de gravetos e afins manualmente e estocados na tulha para que descansem antes da torra.
Para chegar à xícara, passam por testes de perfis diferentes de torra, provas profissionais — quando o grão é moído grosso, entra em contato com a água quente e é sugado de forma a cair homogeneamente sobre a língua. A cuíca não é,contudo,o primeiro animal a“participar” do processo de produção de cafés especiais no Brasil. Quem emplacou de forma pioneira foi o jacu — ave robusta, com bico pronunciado e papo vermelho. Seu café foi vendido pela primeira vez em 2007, também pela fazenda Camocim.Atualmente, são produzidos 950 quilos por ano a R$ 450 o quilo.
Jacu
Conhecido como “faisão brasileiro” e também semelhante a um urubu, esse animal era uma praga para a plantação de café. “O jacu comia muito do meu café, dava o maior prejuízo”, diz Henrique Sloper, dono da Camocim. “Muitos fazendeiros matavam o bicho, ficou quase extinto.” Inspirado no "kopi luwac", o famoso café da Indonésia, cujos grãos são retirados das fezes da civeta (animal semelhante ao gambá) e que podem custar US$ 493 o quilo (cerca de R$ 1.000), o café de jacu surgiu para solucionar esse problema no cafezal.
“O que era uma praga virou fonte de um produto de alta qualidade”, diz Sloper. O fazendeiro vê nesses cafés exóticos uma grande fonte de lucro.Ao consumidor, resta a pergunta: vale mesmo pagar um valor tão alto? Especialistas apontam pequenos problemas na primeira amostra, que podem ter sido gerados pela torra excessiva. Sloper, por sua vez, diz que ainda fará ajustes nessa etapa para que possa extrair o melhor desses grãos, torná-los mais delicados e adequados para o preparo no coador,método que deixa suas características à mostra com mais clareza. Espetacular na xícara ou apenas razoável, o café com a contribuição da cuíca conta uma boa história.Não tenha dúvida: isso também tem um custo.

Texto de Luiza Fecarotta publicada no caderno especial "O Melhor da Folha em 10 Textos" com o título de "Cuspe de Ouro" p.55 a 61, inserida na "Folha de S. Paulo" do dia 26 de agosto de 2012. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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