WARIS DIRIE E A MUTILAÇÃO GENITAL
No livro 'Flor do Deserto' é relatado a corajosa batalha da modelo Waris Dirie contra a mutilação genital das mulheres. A publicação lançou uma campanha mundial contra este bárbaro costume africano. Waris Dirie é hoje uma ativista e criou a sua propria Fundação. Waris Dirie era filha do deserto, tão tenaz e bela quanto as flores que lá desabrocham depois da chuva. Ela sobreviveu ao calor, à seca e às privações. No entanto, o teste mais terrível veio num brutal rito de passagem. Agora Waris Dirie, uma das mais lindas mulheres do mundo da moda, descreve sua trajetória extraordinária - de uma cabana de pastores de cabra na Somália às páginas da 'Vogue'. Ao revelar seu segredo mais doloroso, essa corajosa mulher espera ajudar a pôr fim a uma tradição que vem mutilando milhões de inocentes há tantos anos.
Minha família era uma tribo de pastores no deserto da Somália, e, quando criança, a liberdade que eu tinha de apreciar as paisagens, sons e perfumes da natureza era pura alegria, Ficávamos vendo os leões se aquecendo ao soL Corríamos com as girafas, zebras e raposas. Eu era tão feliz!
Aos poucos esses tempos felizes passaram. A vida tornou-se mais difíciL Aos 5 anos descobri o que significava ser mulher na África e ter de conviver com um sofrimento terrível, de maneira passiva. As mulheres são a espinha dorsal da Africa; elas fazem a maior parte do trabalho. No entanto, não têm poder de decisão. Não podem opinar, às vezes nem mesmo na escolha do futuro marido.
Aos 13 anos, eu estava farta dessas tradições.
Apesar da pouca idade, eu era veloz e incrivelmente saudáveL Antes, não tinha escolha senão sofrer; dessa vez, decidi que iria fugir. Meu pesadelo começou quando papai anunciou que me arranjara casamento. Sabendo que tinha de agir rápido, eu disse à minha mãe que queria fugir. Meu plano era ir procurar uma tia que morava em Mogadíscio, capital da Somália, onde eu jamais tinha estado.
(...)
Antes de fugir, meu mundo girava em torno dá natureza e da família. Como a maioria dos somalis, éramos pastores e criávamos gado, ovelhas e cabras. No dia-a-dia, os camelos nos mantinham vivos. As fêmeas davam leite para nos alimentar e matar a sede, enorme vantagem no deserto. Pela manhã levantávamos com o sol. A primeira tarefa consistia em ir para os currais e ordenhar o rebanho. Aonde quer que fôssemos, cortávamos varetas e fazíamos cercados para os animais, evitando que se desgarrassem à noite. Criávamos animais pelo leite e para trocá-los por mercadorias. Ainda pequena, eu era responsável por conduzir de 60 a 70 ovelhas e cabras pelo deserto, à procura de pastagem. Ninguém é proprietário dos pastos na Somália; assim, cabia a mim descobrir áreas com vegetação. Enquanto os animais pastavam, eu os vigiava por causa dos predadores. As hienas poderiam se aproximar furtivamente e atacar um cordeiro ou cabrito desgarrado. E havia ,ainda os leões.
(...)
Rito de passagem
Numa cultura nômade como aquela em que fui criada, não há lugar para a mulher solteira, portanto as mães acham que é seu dever garantir que as filhas tenham a melhor oportunidade possível de arranjar marido. E, uma vez que a crença predominante na Somália é a de que há partes ruins entre as pernas da mulher, a jovem é considerada suja, lasciva e imprópria para o casamento, a não Ser que o que há de ruim - o clitóris, os pequenos lábios e a maior parte dos grandes lábios - seja removido. Então, a ferida é costurada deixando-se apenas uma pequena abertura e uma cicatriz no local antes ocupado pelos órgãos genitais. A essa prática chama-se infibulação. Pagar à cigana que se encarrega dessa circuncisão é uma das maiores despesas que uma família tem de enfrentar, mas esse gasto é considerado um bom investimento. Sem isso as filhas não terão sucesso no mercado matrimonial.
Os detalhes do ritual nunca são explicados às meninas - é um mistério. Sabe-se apenas que algo especial vai acontecer quando chegar a hora. O resultado é que toda menina na Somália espera com ansiedade a cerimônia que vai marcar sua transformação em mulher. Originalmente o processo ocorria quando as garotas atingiam a puberdade, mas ao longo do tempo foi sendo realizado em meninas cada vez mais jovens. Uma tarde, quando eu tinha cerca de 5 anos, minha mãe me disse: "Seu pai encontrou-se com a cigana. Ela deve vir aqui qualquer dia desses." Na noite anterior à minha circuncisão, a família me encheu de atenções e recebi uma porção extra no jantar.
Mamãe me avisou para não tomar muita água ou leite. Fiquei deitada, sem conseguir dormir, até que de repente minha mãe se postou diante de mim, gesticulando. O céu ainda estava escuro. Agarrei minha pequena manta e cambaleei sonolenta atrás dela. Fomos para o mato. - Vamos esperar aqui - disse mamãe, e sentamos no chão frio. O dia estava clareando. Daí a pouco, ouvi o ruído das sandálias da cigana. Então, sem que eu percebesse süa aproximação, ela surgiu ao meu lado. - Sente-se ali - ordenou, apontando para uma pedra achatada. Não houve conversa. A mulher era estritamente profissional. Minha mãe colocou-me na pedra, sentou-se atrás de mim e, com as pernas abertas, uma de cada lado do meu corpo, puxou a minha cabeça para seu peito.
Abracei suas coxas e ela me deu um pedaço de raiz de uma velha árvore para morder. Eu estava paralisada pelo medo. - Vai doer! -consegui murmurar, apesar da raiz entre os dentes. Mamãe inclinou-se e sussurrou: - Tente ser uma boa menina, meu bem. Mostre a mamãe que é corajosa. Vai ser rápido. Espiei por entre as pernas e vi a cigana. A velha me olhou com severidade, depois remexeu dentro de uma sacola surrada com os dedos compridos e tirou uma gilete quebrada. Vi sangue seco no fio dentado. Ela cuspiu na lâmina e a enxugou no vestido. Enquanto isso, meu mundo escureceu quando mamãe amarrou uma venda em meus olhos.
Em seguida, senti minha carne sendo cortada. Ouvi a gilete serrando minha pele. A sensação é indescritível. Não me movi, pois sabia que, quanto mais o fizesse, mais longa seria a tortura. Infelizmente, minhas pernas começaram a tremer e a sacudir-se sem controle, e eu rezei: Por favor, meu Deus, faça isso acabar logo. Foi o que aconteceu, pois desmaiei. Quando voltei a mim, a venda tinha sido tirada. A cigana havia empilhado perto dela uma porção de espinhos de acácia. Usou-os para fazer furos em minha pele, nos quais enfiou um fio branco para me costurar. Minhas pernas estavam insensíveis, mas· a dor entre elas era tão intensa que eu tinha vontade de morrer.
Minha lembrança se apaga nesse instante. Quando abri os olhos, a mulher tinha ido embora. Minhas pernas haviam sido unidas com tiras de pano, amarrando-me dos tornozelos aos quadris, de modo que eu não pudesse me mover. Olhei para a pedra e vi que estava coberta de sangue, como se um animal tivesse sido abatido ali. Em cima dela, pedaços de minha carne secavam ao sol. O sol queimava-me o rosto, e mamãe e minha irmã mais velha, Aman, arrastaram-me até a sombra de um arbusto, enquanto terminavam Oe fazer um abrigo para mim. Essa era a tradição: uma pequena cabana foi armada sob uma árvore, onde eu iria descansar e me recuperar sozinha por algumas semanas.
Após horas de espera, eu estava morta de vontade de urinar. Chamei minha írmã, que me virou de lado e cavou um pequeno buraco na areia. "Faça aí", disse ela. A primeira gota ardeu como se minha pele estivesse sendo corroída por ácido. Depois que a cigana me costurou, a abertura deixada para a urina - e mais tarde para a menstruação - era um minúsculo orifício com o diâmetro de um palito de fósforo.
Enquanto os dias se arrastavam e eu jazia em minha cabana, peguei uma infecção e tive febre alta. De vez em quando perdia a consciência. Mamãe me trouxe comida e água nas duas semanas seguintes. Deitada ati sozinha com as pernas ainda atadas, eu não podia fazer nada senão me perguntar: Por quê? Para que tudo isso? Naquela idade eu nada entendia sobre sexo. Tudo o que sabia era que tinha sido retalhada com a permissão de minha mãe. Sofri em conseqüência da circuncisão, mas tive sorte. Muitas meninas morrem de hemorragia, choque, infecção ou tétano. Considerando-se as condições em que o procedimento é executado, o surpreendente é que alguma de nós sobreviva.
(...)
Depois de ser empregada doméstica em Londres,foi descoberta por um fotógrafo profissional, virou modelo famosa. Fez o calendário anual da Pirelli e a propaganda da Revlon. Apareceu nas revistas 'Elle', 'Glamour', 'Vogue' etc e desfilou em Paris, Milão, Londres e Nova York. Mesmo com todo o sucesso profissional sofria com a infibulação. Para urinar era de gota em gota e no período menstrual sentia tanta dor, que chegava a desmaiar. Decidiu fazer uma cirurgia em Londres, para reparar os danos sofridos. Foi um sucesso a operação e pelas próprias palavras de Waris no livro 'Dentro de três semanas eu já conseguia me sentar no vaso sanitário e... ufa! Não há como explicar a sensação de liberdade'. Resolveu com o seu prestígio e fama, liderar uma campanha mundial contra esta prática tão cruel, que mutila milhões de mulheres africanas.
Excertos do livro 'Desert Flower'(Flor do Deserto) Por Waris Dirie e Cathleen Miller, publicado originalmente em inglês em 1996 por William Morrow & Co., Nova York. Traduzido e condensado na revista 'Readers Digest Seleções' de junho de 2000. Digitado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.
0 Response to "WARIS DIRIE E A MUTILAÇÃO GENITAL"
Post a Comment