INCONFIDÊNCIA MINEIRA NO IMAGINÁRIO DOS ROMÂNTICOS
O professor de Literatura Márcio Vasconcellos Serelle, da PUC-Minas, passou quatro anos estudando a história da Inconfidência Mineira. O propósito de sua investigação não é, como diz, contestar o que revelam as narrativas oficiais sobre aquele movimento histórico ocorrido no século XVIII, cujo principal personagem foi o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O que Serelle pretendia era recontar, sob um novo ângulo, como a história foi reescrita no imaginário de escritores, sobretudo os românticos. Entre eles, Castro Alves, autor de 'Gonzaga ou a revolução de Minas' (1866), e o épico 'Gonzaga', de Pereira da Silva (1845), entre outros. Em sua tese de doutorado – Os versos ou a história: a formação da Inconfidência Mineira no imaginário do oitocentos, sob a orientação do professor Antonio Arnoni Prado, do IEL, – Serelle revela que “erros históricos” eram freqüentemente cometidos pelos escritores, embora o culto ao documento oficial já estivesse amplamente difundido entre eles.
Jornal da Unicamp (JU). O que o levou a fazer uma releitura da Inconfidência Mineira?
Serelle. Minha proposta era estudar inicialmente os romances históricos contemporâneos que, de algum modo, tocassem a matéria histórica Inconfidência Mineira (Tiradentes, de Assis Brasil, A dança da serpente, de Sebastião Martins, Boca de chafariz, de Rui Morão, entre outros). Um levantamento bibliográfico prévio mostrava que o episódio exercia grande fascinação sobre escritores, sendo um dos fatos mais ficcionalizados de nossa história colonial.
JU. A partir de que momento o senhor decidiu avançar na abordagem?
Serelle. Interessava-me, a princípio, o diálogo entre literatura e história nessas obras. Contudo, no início da pesquisa, verificou-se a necessidade de buscar a gênese dessas séries discursivas (Literatura e História) sobre a conjuntura, tentando compreender sua formação narrativa, isto é, compreender como principalmente a Literatura articulou os eventos do passado em forma de histórias, tornando-os inteligíveis e construindo significados, imagens e símbolos determinantes na constituição da nossa nacionalidade.
JU. E onde estava essa gênese?
Serelle. Estava no século XIX, quando o episódio é alçado à condição de evento constituinte e formador do sentimento nacional. Isso se dá, principalmente, a partir da década de 1840, quando os escritores, sob o signo do romantismo, procuraram focar episódios que evocassem um passado autóctone e dignificante, construindo, assim, uma tradição nacionalista para o Império. Nesse recuo ao Oitocentos, descobrimos uma série de textos, principalmente literários (crônicas, poemetos, romances, dramas), que tratavam da conspiração de 1789. O material mostrou-se vasto e ainda pouco explorado, fazendo com que a pesquisa redirecionasse sua investigação para a literatura oitocentista em que, enfim, se encontram as raízes de algumas manifestações e noções de brasilidade que se espraiam até o momento atual.
JU. Havia uma lacuna a ser preenchida?
Serelle. Não havia propriamente uma lacuna, mas modelos perceptivos já estabelecidos que, como a pesquisa mostrou, precisavam ser revistos. A idéia corrente era a de que a Inconfidência Mineira foi um movimento ignorado pelo Império e exaltado pela República, o que não corresponde às investigações.
JU. Por quê?
Serelle. A valorização da conspiração mineira acontece durante o segundo Reinado, quando o episódio evoluiu dos compêndios históricos em que figurava num quase estado de verbete para obras, principalmente literárias dedicadas inteiramente a elas. Poderíamos citar, por exemplo, o romance histórico de Teixeira e Sousa, 'Gonzaga ou a revolução do Tiradentes', publicado em dois volumes (1848-1851), o drama de Castro Alves, 'Gonzaga ou a revolução de Minas' (1866), o épico 'Gonzaga', de Pereira da Silva (1845).
JU. Como foi feita a garimpagem das obras necessárias para a viabilização do estudo?
Serelle. Como parte dos livros estudados não passou de sua primeira edição, a pesquisa exigiu a leitura em obras oitocentistas, só encontradas em bibliotecas nacionais como a do Rio de Janeiro e de Lisboa. Busquei ainda material no acervo do Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte.
JU. Que tipo de narrativa foi adotada pelos românticos?
Serelle. Verificamos que a imaginação interfere, com freqüência, na reescrita da história, (re)construindo fatos e ocorrências, segundo determinadas perspectivas em que a especificidade deles não é o primeiro objetivo do texto, pois eles, muitas vezes, tornam-se instrumentos para construções diversas por exemplo, a de uma ideologia nacionalista.
JU. Além do componente ideológico, quais eram os outros interesses dos escritores?
Serelle. A relação entre história e literatura, nesse sentido, não deve ser interpretada pelo compromisso fiel de narrar o passado, mas pela relação entre obra e contexto no qual ela está inserida. Interessava aos românticos brasileiros, além da própria concepção nacionalista e libertária da conjura, as potencialidades literárias daquele movimento, liderado (na visão dos intelectuais do Império) por Tomás Antônio Gonzaga, homem de letras e autor de 'Marília de Dirceu', um dos livros mais editados e lidos em português naquele século. Gonzaga, poeta em que as luzes não se verteriam em republicanismo, serviria, por exemplo, ao herói mitificado e moderado de Teixeira e Sousa. Sua biografia trágica e de inconfidente indissociada das liras era construída pelos intelectuais oitocentistas, cuja psicologia interpretava o literário e as convenções retóricas dos poemas coloniais como elementos factuais. Gonzaga emerge, portanto, em tempos de Império, como herói inconfidente.
JU. Como, nesse período, o fato histórico é reproduzido?
Serelle. Principalmente, a partir de valores do amor romântico de tradição européia, reduzindo o movimento a atitudes passionais e íntimas dos inconfidentes. Esse recurso literário correspondia, possivelmente, ao interesse do público leitor da época, mas também permitia aos escritores abordar o movimento de 1789 e seus heróis, sem enfatizar questões ideológicas contrárias à monarquia de D. Pedro II, figura ativa culturalmente e que, inclusive, patrocinava o Instituto Histórico. Evidentemente, uma outra perspectiva e uma outra fase na narração da Inconfidência iriam se firmar, nas décadas que antecedem a proclamação da República.
JU. Quais as representações que podem ser consideradas exageradas ou deturpadas pelos escritores, pelos historiadores e pelo imaginário popular?
Serelle. Alguns anacronismos e erros históricos grosseiros eram freqüentemente cometidos por escritores da época, embora o culto ao documento já estivesse disseminado entre nossos historiadores. Teixeira e Sousa, por exemplo, informado por Pereira da Silva, localizaria a execução de Tiradentes em 1793; Joaquim Norberto afirmaria que Gonzaga havia nascido em Pernambuco; Castro Alves escreveria que a Revolução Francesa ocorreu antes da mineira e pinta o retrato de Gonzaga como um abolicionista convicto, o que reflete, como dissemos, mais as questões correntes do tempo do escritor que do tempo narrado na ficção histórica.
JU. O senhor vê problemas nessa releitura?
Serelle. A ficção não pode ser invalidada na sua fabricação de evidências, pois, como obra de imaginação, ela procura coerência e sentido no seu discurso, sem se prender, necessariamente, à exatidão de um quadro de acontecimentos extra-diegéticos.
JU. Exemplifique, por favor.
Serelle. Camilo Castelo Branco, em Portugal, foi, talvez, o escritor que tratou o episódio com maior irreverência, em seu romance 'O Demônio do Ouro'. O autor, embora informado por obras historiográficas, narra o episódio a partir de um triângulo amoroso, envolvendo Tiradentes e um casal ficcional. Gonzaga, por exemplo, ao fim de quinze anos de degredo em Moçambique, teria, segundo a obra do romântico português, ensandecido e expirado, lacerando-se com os próprios dentes e unhas.
JU. Quais eram as narrativas predominantes?
Serelle. Duas fases se destacaram. Uma elege Gonzaga como herói da conspiração, enfatizando mais a questão libertária do movimento e mitigando as manifestações republicanas. Outra inicia-se a partir principalmente da década de 1880, quando os escritores chamados socialistas (Raimundo Correia em breve fase, Fontoura Xavier, entre outros) passam a chasquear dos valores românticos e imperiais e, para isso, escolhem Tiradentes como uma espécie de contraponto aos símbolos monarquistas. Quer dizer, se os românticos mostravam-se receosos de mudanças políticas por isso exploravam a comoção trágica da conjura, sem avançar no viés republicanista -, os pós-românticos, em período de viragem histórica, buscariam no episódio justamente um lastro para as aspirações jacobinas.
JU. Como o senhor avalia as vinculações das primeiras apropriações historiográficas e ficcionais da Inconfidência às noções de arte e de ciência no século XIX?
Serelle. Essa é uma questão importantíssima, e que foi desenvolvida principalmente através da análise da 'História da Conjuração Mineira', de Joaquim Norberto, primeira obra orgânica sobre o assunto, publicada em 1873. Naquele século, caracterizado pela hipertrofia da noção de positividade do fato histórico e pela conseqüente inscrição da historiografia no campo das ciências, historiadores e literatos buscaram demarcar seus territórios.
JU. Em que medida ocorria essa demarcação?
Serelle. Joaquim Norberto, intelectual do Império, por exemplo, pretendia afastar sua obra historiográfica do terreno das artes, negando para si o rótulo de literato, embora recriasse também ficcionalmente o episódio. Da mesma forma, Camilo Castelo Branco parecia incensar a joeira do historiador, que deveria criteriosamente separar o joio do trigo em termos de verdades históricas passíveis de serem alcançadas. Do outro lado, ficcionistas como Teixeira e Sousa e Castro Alves, inscritos no campo da arte livre e literária, defendiam a livre reelaboração da história e a primazia da imaginação sobre o rigor histórico.
JU. Essas categorias se entrecruzaram?
Serelle. Curiosamente, sim. A matéria histórica, no caso a Inconfidência Mineira, era, além de um ponto de partida para a poesia, elemento de verossimilhança também da ficção e conferia à literatura o desempenho pedagógico exigido naquele século em que narrar o passado nacional tornava-se um dever moral do intelectual.
JU. Como esse compromisso iria se manifestar?
Serelle. No caso brasileiro, não somente no romance histórico, mas, sobretudo, numa profusão de poemetos, dramas e novelas de vertente historicista, sínteses de investigação do passado inconfidente e elaboração ficcional. Podemos ainda identificar o caráter híbrido na forma ção do próprio intelectual brasileiro no século XIX que, a exemplo de Joaquim Manoel de Macedo, Pereira da Silva, Joaquim Norberto, Bernardo Guimarães, entre outros, dedicava-se tanto à historiografia quando às musas literárias. O escritor de sete instrumentos, versátil, que se dedicava a vários campos das humanidades, era o ideal brasileiro da época.
Autoria de ANTONIO ROBERTO FAVA publicado no semanário da UNICAMP- Universidade Estadual de Campinas – 18 a 24 de novembro de 2002 p. 9, como 'Estudo mostra a Inconfidência no imaginário dos românticos'. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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