VISITAS ÍNTIMAS - "ESTAÇÃO CARANDIRU"



ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.  O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou-se notícia e motivo de repulsa em todo o mundo. O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro. Agora apresentamos o capítulo 'Sol e Lua'. e conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou-se notícia e motivo de repulsa em todo o mundo. O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.

VISITAS ÍNTIMAS


São nebulosas as origens das visitas íntimas. Contam que começaram no início dos anos 80, insidiosamente, com alguns presos que improvisavam barracas nos pátios dos pavilhões nos dias de visita. Outros, mercenários, juntavam dois bancos compridos, cobriam-nos com cobertores e alugavam o espaço interno para a intimidade dos casais.
Na época, as autoridades fizeram vista grossa, convencidas de que aqueles momentos de privacidade acalmavam a violência da semana. Quando surgiram as primeiras queixas de menores engravidadas nesses encontros furtivos, ficou evidente que a situação escaparia do controle. Incapazes de acabar com o privilégio adquirido, decidiram, então, oficializar as visitas íntimas: as maiores de idade podiam subir ao xadrez do companheiro, desde que previamente registradas com identificação e foto. Desta forma, no melhor estilo Pantaleón e suas visitadoras, personagens de Vargas Llosa, o sexo foi burocratizado na Casa de Detenção de São Paulo e o sistema espalhou-se pelo país.
Cada detento tem direito de inscrever uma única mulher. Esposa, amásia ou namorada, não há exigência de laços legais. No caso de rompimento, outra só pode ser indicada depois de seis meses. Com jeitinho, porém, esse período às vezes é substancialmente reduzido. Mais de 2 mil mulheres fazem parte do programa. A rotina é caprichosa: após a revista elas se dirigem ao pavilhão, onde os homens esperam de roupa passada, cabelo penteado e perfume cheiroso. No térreo, numa mesinha, na porta que dá acesso à escada que conduz às celas, fica um funcionário com a caixa de fichas. Os casais fazem fila diante da mesa, a mulher entrega a carteira de identidade, ele confere a foto, prende o documento à ficha com um clipe e o retém até a saída.
Da porta para dentro não há carcereiros, os presos administram a própria visita. Nos pavilhões mais populosos, como o Cinco, o Oito e o Nove, o pátio interno fica tão cheio de gente que os presos sem visita evitam descer para deixar espaço, e como não podem permanecer nas celas ocupadas pelos casais, aguardam em pé, no corredor. A galeria fica cheia de homens. Quem nunca entrou no presídio imagina que os mais fortes tomem as mulheres dos mais fracos num corredor como esse, cheio de malandros encostados na parede. Ledo engano: o ambiente é mais respeitoso do que pensionato de freira. Quando um casal passa, todos abaixam a cabeça. Não basta desviar o olhar, é preciso curvar o pescoço. Ninguém ousa desobedecer a esta regra de "procedimento", seja a mulher esposa, noiva ou prostituta. Uma vez, Genésio, um nordestino cicioso que esbanjou nas boates da zona norte o dinheiro roubado em mais de cem assaltos, reconheceu na galeria uma mulher da qual havia sido cliente:
- o companheiro vinha com o braço no ombro dela. Virei de costas para a parede, para evitar que ela me visse e deixasse transparecer. Olha que elegância, doutor!
Num xadrez, caso um único morador receba visita, todo o tempo disponível é dele; se houver vários, o horário é dividido em partes iguais. Não há necessidade de bater na porta; a pontualidade é britânica. Nas celas maiores, com vinte, trinta homens, em que não existe outra possibilidade senão a do uso concomitante, eles improvisam espaços privativos com cobertores pendurados. Para acobertar as manifestações mais exaltadas do arroubo feminino, ligam os rádios bem alto. Os sem-visita podem alugar o xadrez para companheiros mais afortunados: - Que nada é de graça numa cadeia.
Se houver disponibilidade econômica e um pouco de conhecimento, é até possível tirar visita em outro pavilhão, expediente utilizado para receber a esposa no xadrez de origem, no sábado, e a namorada em outro pavilhão com visita aos domingos. O número de funcionários é insignificante para coibir a infidelidade. Por um desses mistérios da alma feminina, são muitos os que arranjam namorada enquanto cumprem pena. Uma vez, o juiz corregedor, de tanto analisar pedidos envolvendo detentos e suas mulheres, queixou-se ao diretor geral: - Doutor, o que o preso tem que nós não temos?
Muitas moças vêm visitar um parente e acabam apresentadas ao amigo dele. Outras respondem a correios amorosos de revistas femininas e são convidadas a conhecer o missivista, invariavelmente um rapaz de bons princípios que deu um mau passo e espera encontrar no amor de uma mulher a força para se regenerar.
As visitantes sentem-se protegidas no ambiente. Ao retirar os carcereiros do interior dos pavilhões, a direção sabiamente entregou a administração da visita aos únicos capazes de garantir segurança total. O homem preso tem pavor de perder a mulher amada. Sem-Chance, ladrão escolado, fala da esperteza do "Ricardão", nome atribuído ao amante da mulher de quem está na cadeia: - Se na visita não tiver respeito, doutor, elas vão ficar com medo de voltar, onde que uma conta para outra algum fato lastimável sucedido e, daqui a pouco, entre elas: eu não vou mais lá! Se você não vai, eu também não, é perigoso!
Pronto, ói nós aqui no maior veneno e elas curtindo lá fora, que Ricardão é o que mais tem, pronto para dar o bote traiçoeiro na fragilidade da mulher solitária. É sem chance. É preciso saber proceder: jamais cobiçar a mulher do próximo e manter impecável a ordem geral.
Não há falta considerada pequena, qualquer deslize é gravíssimo. Certa vez, um estelionatário de bigodinho bateu na esposa durante a visita e os gritos foram ouvidos nas celas vizinhas. A sorte do agressor foi um funcionário, minutos depois, escutar três rapazes no pátio organizando um grupo para matar o arruaceiro assim que terminasse a visita, e providenciar sua imediata transferência para o Amarelo, setor dos jurados de morte. A estratégia funcionou apenas em parte: nas primeiras horas da manhã seguinte, em pleno Seguro, o valentão tomou duas facadas. Em estado grave, foi levado para o Hospital do Mandaqui, sofreu cirurgia, passou quatro dias na UTI, perdeu oitenta centímetros de intestino e ganhou uma colostomia, mas escapou com vida. A malandragem se espantou: - Deu a maior sorte!
Embora participem do programa mulheres de todas as idades, as jovens constituem maioria. Na saída, chama a atenção o número de mocinhas com bebês. Muitas saem de cabelos molhados, denunciadores do banho tomado no xadrez.

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