MIGUEL - "ESTAÇÃO CARANDIRU"


ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro. Nesto capítulo é descrito um complicado triângulo amoroso.


MIGUEL

Miguel assaltava com o parceiro, Antônio Carlos. Confiavam tanto um no outro, que assumiram o compromisso mútuo de cuidar das duas famílias caso um deles fosse preso. Num assalto a um supermercado, conseguiram um bom dinheiro e aplicaram em cocaína. Prosperaram e continuaram no ramo, pequenos comerciantes de Taboão da Serra. Um dia, vinham com dois companheiros na carroceria de uma caminhonete carregada de móveis, com dois quilos de cocaína escondidos num armário, e encontraram uma barreira policial. No tiroteio, perdeu a vida um dos companheiros da carroceria. Miguel foi dar pessoalmente a notícia à viúva. A moça ouviu pálida, em silêncio. Depois chorou comovida. Miguel disse que também estava triste. Entregou-lhe a parte do marido no trabalho e, qualquer coisa, Antônio Carlos e ele estariam à disposição.
Foi embora encantado com a beleza da morena. Nem na TV tinha visto pernas tão bonitas, sonhava com elas à noite. Por causa dessa moça, Miguel largou da família e viveu um grande amor pela primeira vez, ele aos 38 anos, ela, com 22. Uma tarde, quando a união ia para o segundo ano, Antônio Carlos, que morava na quadra de baixo, apareceu na casa de Miguel. A morena tinha ido visitar a mãe. A conversa foi truncada, esquisita, até Miguel interromper:
 - Qual é, Antônio Carlos? Vamos entrar no assunto que te trouxe.]
 - Tua mulher te passa pra trás com um polícia.
 - Quem falou?
Antônio Carlos deu o nome do motel onde eles se encontravam e disse que tinha visto os dois, pessoalmente, namorando na viatura da delegacia, numa travessa do largo do Taboão. O coração de Miguel acusou a punhalada. Matar o investigador passou por sua cabeça, mas abandonou a idéia; teria que fugir da cidade. Dar fim à vida dela? Como? Não é fácil matar a mulher amada, constatou. Com um nó apertado no peito, Miguel dobrou as roupas dela, pôs a mala do lado de fora e passou o trinco na porta. Quando a morena chegou, bateu forte:
 - Que é isso, Miguel, ficou maluco?
No início, ele nem respondeu, mas ela insistiu, disse que tinha direito de saber o que aquilo representava. Se ele estava apaixonado por outra, ela iria embora mesmo, que ela não era de dividir homem com vagabunda nenhuma. Depois, queixouse de que os vizinhos ouviam tudo, e ele abriu a porta. Na sala, ela se assustou com o estado trêmulo do marido. Tirou o copo de bebida da frente dele e despejou na pia. Em voz baixa, procurou acalmá-lo até conseguir que ele falasse:
 - Você é puta, sem-vergonha. Larguei da mãe dos meus filhos, te dei conforto, carinho e amizade e você pagou com a moeda da traição. Estou sabendo do polícia que você encontra no motel atrás do posto de gasolina na Raposo Tavares, faz mais de um ano, enquanto o trouxa aqui arrisca a pele para rechear teu guarda-roupa.
A morena ouviu impassível. Depois, interrompeu o silêncio:
- Quem foi que te contou?
- Não interessa.
- É lógico que sim. Uma pessoa conta uma história que destrói o nosso lar e eu não tenho direito de saber quem é ela?
Ele disse que não, que ela não prestava, não valia um pãozinho da padaria, e que tinha sorte dele ser bom, caso contrário cometeria um desatino. Ela, de mãos frias, ignorava as ofensas. Apenas queria saber:
 - Quem foi que te contou?
Com a persistência das mulheres, insistiu nesse ponto até Miguel confessar:
- Foi o Antônio Carlos. Por quê?
- Então, você vai fazer ele repetir na minha cara.
Depois, pego minha mala e vou para a minha mãe. Antônio Carlos repetiu a história inteira na frente dela e do marido, referiu-se até a detalhes que havia poupado do amigo:
- Vi você morder a orelha dele, na viatura!
Ela escutou calada, no sofá, até terminar a narrativa. Caiu outro silêncio, novamente quebrado por ela:
-Você falou tudo, mas esqueceu a parte melhor.
- Como assim?
A morena, que tinha o olhar perdido nos bibelôs da cristaleira enquanto ouvia o relato, levantou do sofá, postou-se diante de Antônio Carlos e, direto nos olhos dele:
-Você não contou que me pediu para abandonar o Miguel e fugir com você. E que eu não aceitei porque amo meu marido, e sou amiga da tua mulher.
Antônio Carlos chamou-a de mentirosa, disse que não fosse o respeito pelo amigo arrebentava a cara dela. Xingou-a de mente diabólica. Ela não respondeu. Como estátua, pegou a mala e foi embora.
Antônio Carlos virou-se para o amigo:
- Miguel, você não acreditou nessa pilantra, acreditou? A gente tem quatro anos de parceria e nunca partiu de mim qualquer crocodilagem.
- Deixa quieto, Antônio Carlos.
Antônio Carlos notou uma ponta de hesitação no tom do parceiro. Enquanto acontecia essa conversa, a morena tocava a campainha na casa do difamador. Uma loira oxigenada apareceu na janela. Era Dina, mulher dele. Conversaram em pé, na sala:
- Dina, o Antônio Carlos é veado?
- Que pergunta, Marli!
- Desculpa, mas ele veio para o Miguel com uma história que eu saio com um polícia, que nunca existiu. Veio com tudo, para destruir meu casamento. Então eu pensei: ou ele quer que eu vá embora para ficar com o Miguel ou quer que ele vá para ficar comigo.
- Que é isso? O Antônio Carlos tem nojo de bicha.
- Então, minha filha, é de eu que ele está a fim.
Pegou o ônibus e foi para a casa da mãe. Antônio Carlos era mulherengo, e Dina, um poço de ciúmes. Uma vez engalfinhou-se com uma prostituta das relações dele, e foram necessários dois homens e uma senhora para separar. Quando Antônio Carlos entrou em casa, Dina cravou-lhe as unhas no rosto:
- Ordinário, sem-vergonha, sempre falei que você tinha um quê por ela. Mas você dizia que eu era louca. Nem mulher de amigo você respeita mais, cachorro? Na manhã seguinte, Antônio Carlos bateu na porta de Miguel:
- Dormiu com gato?
- Você não acredita. Tua mulher saiu daqui, foi para minha casa e pôs na cabeça da Dina que eu estou a fim dela. Quando cheguei a Dina voou com as unhas na minha cara.disse:
- Antônio Carlos, o corvo da desconfiança pousou na nossa amizade. Daqui por diante, cada um segue seu destino.
O amigo tentou argumentar, explicar que a sociedade era vantajosa para ambos, mas foi inútil. No dia seguinte, Miguel foi buscar Marli na casa da mãe. Ela aceitou voltar com a condição de que passassem uma borracha no acontecido e voltassem à harmonia de antes. Ele prometeu e cumpriu, parcialmente. Passou a segui-la, inventava viagens e aparecia em casa no meio da noite; até pos um capanga na esperança de surpreendê-la. Nada: o comportamento dela era exemplar.
Um ano depois, bem estabelecido nos negócios, mudaram para uma casa maior, passada no nome de Marli, porque ele não podia ter nada em seu nome. A fase de suspeição havia chegado ao final. Quanto ao parceiro, não se encontraram mais. Antônio Carlos tinha sido preso e condenado a cumprir pena na Casa de Detenção. Nessa ocasião, Miguel levantou 40 mil dólares num seqüestro e resolveu triplicar o dinheiro. Disse para a mulher que comprariam um sítio depois do golpe.
Chegou de ônibus em Santa Cruz de la Sierra. De lá, pegou uma jardineira dessas em que as pessoas entram com engradado de galinha e desceu na praça principal do povoado, em frente ao hotel da mãe do vendedor de cocaína. Miguel pagou 50% do valor da encomenda e o boliviano mandou refinar a cocaína. Levou dois dias, mas ele não se aborreceu. Aproveitou para uma pescaria no barco do irmão do fabricante, um sujeito contador de casos engraçados. A droga foi entregue do lado brasileiro. Para fugir da rota mais vigiada, Miguel pegou ônibus para Brasília, depois Belo Horizonte, São Paulo e Santos, onde vendeu a cocaína. Vestia terno azul-marinho e camisa abotoada, na mão uma Bíblia, que leu durante todo o percurso: - Só para desbaratinar.
Chegou em casa com quase 100 mil dólares. Abriu o portão e atravessou o corredor escuro. O cachorro latiu e veio fazer festa. Bebeu água no filtro e foi para o quarto. A morena dormia de calcinha e camiseta regata. Deitou-se ao lado daquele corpo quente e mordeu-lhe com delicadeza o pescoço. Miguel estava feliz, outra vez. Na manhã seguinte, ela acordou cedo e foi comprar pão. Ligou do orelhão da padaria:
 - O passarinho voltou para a gaiola. Trouxe um saco de alpiste. A polícia surpreendeu Miguel no vaso sanitário. O amante de Marli chefiou a operação. Depois, viajou com ela para o Nordeste.
Miguel chegou na Detenção e chafurdou no crack. Pegou tuberculose, não tratou direito e morreu magrinho, na enfermaria. De tristeza, disse o Antônio Carlos, que cuidou do amigo até o último dia de vida.




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