COZINHA JUDAICA


Fui educada num colégio de freiras onde me ensinavam que Deus tinha um caderno no qual anotava a vida de cada um de nós. Os pecados e as boas ações seriam lidos em voz alta no dia do Juízo Final, determinando o lugar para onde iriam nossas almas. Céu, inferno ou purgatório. Escondíamos o rosto entre as mãos, apavoradas com a simples chegada dessa hora, quando cada canto secreto seria esmiuçado e atiçado como um rubro e dolorido nervo de dente exposto, palpitando de vergonha. Encontro na tradição popular judaica a mesma crença. Em Rosh Hashaná, primeiro dia do ano judeu, Deus lê seu caderno de débito e haver, faz as contas e decide a vida e o futuro de cada um.
Ou melhor, três cadernos são abertos: um para os de coração reto, outro para os maus e o terceiro para os intermediários. Os bons são inscritos imediatamente no livro da vida, os maus no livro da morte e os mais ou menos ficam com a sentença suspensa de Rosh Hashaná até Yom Kipur (o dia do Perdão), dez dias depois. Vê-se por aí que a sentença felizmente não é definitiva e pode ser mudada por meio de de orações, arrependimento e boas ações. Dá para entender por que sinagogas quase vazias no ano inteiro ficam lotadas em Rosh Hashaná. É o dia em que se enfrenta o Criador cara a cara, em que de repente a mortalidade e a fragilidade humanas se mostram por inteiro. É a hora de refletir sobre o nosso passado, imaginar o futuro, projetar-se. Os céticos, agnósticos, os crentes e os crédulos entendem com lucidez, naquele dia, que a morte é um fato e erguem as vozes em oração.
"Chama em alta voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão e à casa de Jacó, os seus pecados." (Isa.58:1) Os judeus acordam para essa reflexão com o toque do shofar. O shofar é uma trombeta, feita de chifre de carneiro, um dos mais antigos instrumentos de sopro. (Acho que deve se parecer com nosso berrante.) Em Rosh Hashaná, no aniversário da criação, no primeiro dia do ano judeu, o toque do shofar na sinagoga é para que todos escutem o chamado, em qualquer esconderijo, sob as pontes, dentro das casas, nos vãos e desvãos, nos pastos, nas ravinas, sobre os montes. Por que soam as trombetas no dia do Ano novo? Por que este som que dá medo, faz tremer e ao mesmo tempo revela um raio de esperança? Dizem os judeus que é como uma linguagem secreta entre o pai e filho. Há conversas que o grande acusador, Satã, não deve escutar. No dia do julgamento Deus e sua criatura conversam pelo som da trombeta, sem intermediários. O shofar sacudindo o homem de seu comodismo e letargia, prenuncia o trombetear maior do dia da redenção final, acorda a alma para o dom da vida que lhe foi concedida, esquenta o coração para as preces que dirige a um Deus compassivo e compreensivo.

Comida.

A história do povo judeu é muito ligada a símbolos e um de seus símbolos maiores é a comida. A mesa de Rosh Hashaná deve refletir a esperança de um ano bom e farto. Para isso dá-se preferência ao que é doce, suculento, e de preferência com suave formato redondo. Até o pão, o challah, (geralmente uma trança), assado para este dia, deve ser redondo, mais doce e mais rico. É decorado com escadas, coroas, aves em pleno vôo, representando o desejo de que as orações subam aos céus imediatamente. A forma redonda está presente também na maçã vermelha mergulhada no mel que é servida antes da refeição e na massa circular servida na sopa.
O doce aparece em quase todos os pratos. É costume evitar sabores amargos ou azedos. Algumas comunidades não servem amêndoas ou nozes que associam a sabores amargos. Tudo que se associa à tristeza é evitado, como a cor escura do chocolate e da berinjela. Comidas brancas como pudins de arroz, cocadas evocam pureza e comidas cor de açafrão e abóbora a felicidade. A tradição agrícola da data é lembrada por uma benção especial feita sobre as frutas, de preferência frutas citadas na Bíblia. A romã tem um significado especial pois suas muitas sementes representam as 613 boas ações que um judeu deve praticar durante o ano. As cenouras são usadas porque suas rodelas lembram moedas de ouro e seu nome em ídiche, "mahren", soa como mher (mais, multiplicação).
O doce não aparece somente nos bolos de mel, biscoitos, balas e doces, mas nos pratos salgados também. As batatas muitas vezes são substituídas por batatas doces, as cebolas caramelizadas e as carnes cozidas com marmelos, ameixas, tâmaras e passas e até com açúcar ou mel. Há outros simbolismos nos pratos principais. O peixe e a carne, especialmente aves, são servidas inteiras para representar a esperança do ano novo. Serve-se a cabeça do peixe e do cordeiro assado ao chefe da família. Se não for possível são substituídos por uma cabeça de alho assada ou uma cebola inteira. O peixe aparece com muita freqüência como símbolo de fertilidade e de pureza por estar associado à água corrente.
Legumes verdes significam um novo começo. Na África do Norte as azeitonas pretas são substituídas por verdes e o café pelo chá de hortelã. Como o número 7 traz boa sorte o cuscuz  é preparado com sete legumes.

Mesa de Rosh Hashanah

- Uma fruteira cheia de maçãs frescas, de preferência vermelhas.
- Uma pequena jarra de mel onde se mergulha fatias de maçã para que o ano novo seja doce.
- Uma tigela pequena de sementes de gergelim misturadas com açúcar, para que o povo seja tão numeroso como o gergelim.
- Um prato de tâmaras frescas, para que desapareçam todos os inimigos.
- Uma tigela de romãs polvilhadas com água de flor de laranjeira, para que os méritos sejam tão numerosos quanto as sementes da romã.
- Um prato com rabanetes para que os inimigos se afastem.
- Um prato com uma cabeça de cordeiro para que sempre alcancem sucesso em suas empreitadas.
- Um prato com um peixe, para que como o peixe tenham sempre os olhos abertos e atentos.
- Um travessa com azeitonas verdes pois são uma das comidas preferidas de Israel.

Saiba duas receitas de judeus da Índia

Os filowrees são semelhantes aos falafel de Israel e do Egito, só que o ingrediente básico na Índia é a lentilha, e no Oriente Médio, o grão de bico. Já paramos para pensar que o acarajé baiano e o bolinho de feijão mineiros são, sem tirar nem pôr, o falafel e agora este filowree? Os filowrees costumavam ser comida de festa entre os judeus da Índia.
Ponha de molho 230 g de ervilhas secas verdes (chamadas de chunna-ka-dal nas lojas de produtos indianos), de preferência da noite para o dia. No dia seguinte, devem ser passadas no processador ou liquidificador com água que apenas cubra as lâminas. É importante que a massa fique bastante dura. Depois de preparada essa pasta, junte 60 g de cebolinha verde picada, quatro colheres de coentro fresco picado e duas colheres de chá de sementes de alcaravia inteiras. O sal deve ser adicionado a gosto. Pimentas frescas ardidas e picadas são opcionais. Misture bem. Frite às colheradas em bastante óleo fervente. Quando estiverem dourados, retire da panela e deixe escorrer. Sirva quentes como aperitivo. Podem também ser servidos com uma salada como entrada.

Incree

Os judeus de Bombaim e Cochin tinham facilidade para matar animais grandes e podiam fazer pratos originários de Bagdá nos quais a carne era indispensável. Salteie 500 g de cebolas finamente picadas em duas colheres de óleo vegetal. Apare a gordura de 800 g de cordeiro cortado em pedaços pequenos. Junte às cebolas e frite rapidamente sobre fogo alto, só para dourar. Junte à carne um pimentão vermelho em tiras, duas colheres de folhas de salsão picadas e duas colheres de purê de tomate. Junte duas xícaras de água quente, leve a ferver e abaixe o fogo.
Quando a carne estiver macia, junte 500 g de quiabos aparados e cortados ao meio no sentido do comprimento. Deixe cozinhar até o quiabo ficar cozido, mas firme. Junte o suco de dois limões e açúcar a gosto. Sirva quente. Bom para comer com arroz.

Pasta de fígado é tradição dos ashkenazi

Leia abaixo algumas receitas de judeus ashkenazi.

- Chopped Chicken Liver ou pasta de fígado (para seis pessoas):

* 500 g de fígado (galinha, ganso, ou uma mistura de fígados de aves)
* 3 colheres de schmaltz (gordura vegetal)
* 120 g de cebola picada
* sal e pimenta-do-reino
* 2 ovos cozidos duros
* Ovos cozidos duros para enfeitar (clara e gema separados e passados na peneira)
* Salsa
Aqueça a gordura numa frigideira grossa e pesada. Frite a cebola até ficar transparente e dourada. Junte o fígado e frite até ficar a seu gosto, mais cru ou mais cozido. Junte sal e a pimenta-do-reino moída na hora. Pique o fígado, a cebola e os ovos juntos. Se o fígado estiver muito seco, umedeça com um pouco de gordura derretida. Arrume num prato raso e enfeite com listas de gemas e claras passadas na peneira. À volta, coloque a salsinha.

- Tzimmes de cenoura (servidos, tradicionalmente, no jantar de Roshashaná, para 6 a 8 pessoas):

* 1 kg de cenouras descascadas e cortadas em rodelas grossas
* 1 xícara de água
* 1/4 de xícara de mel, açúcar ou Karo
* sal
* 2 colheres de manteiga ou gordura vegetal
* 2 colheres de óleo de amendoim
* 2 colheres de farinha de trigo
* pimenta-do-reino moída na hora
* 1 colher (chá) de gengibre em pó
* suco de laranja (opcional)
Ponha as cenouras para cozinhar com água, mel e sal até ficarem macias. Faça um einbren (roux) aquecendo a gordura numa panela pequena, juntando a farinha e deixando dourar um
pouco, mexendo sempre.Junte isso às cenouras, tempere com a pimenta e o gengibre, mexa e cozinhe por 5 minutos ou até que o molho engrosse. Se ficar muito grosso, dilua com um pouco de caldo de laranja. Sirva quente.


Autoria de Nina Horta publicado como 'Rosh Hashaná celebra o sabor' na 'Ilustrada' seção de Gastronomia (p.4-8) na edição de 1 de outubro de 1997. Editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

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