ANOREXIA NERVOSA


Anorexia nervosa, que pode levar à morte, é um reflexo exagerado da ditadura do corpo perfeito, que afeta todas as mulheres. Um contingente nada desprezível de brasileiras está morrendo de fome. A novidade é que essas não vivem no sertão nordestino, nem são desempregadas com oito filhos para criar. As anoréxicas em geral, adolescentes e jovens de classe média alta definham em meio à fartura. Elas têm o que comer, mas se recusam, obcecadas com um único objetivo: emagrecer. São tantas, que os ambulatórios do Hospital das Clínicas e do Hospital São Paulo estão lotados, recusando pacientes. Não há estatísticas precisas, mas sabe-se que cerca de 20% das anoréxicas morrem.
Se a histeria foi a doença feminina de cem anos atrás, a anorexia nervosa é, sem dúvida, o mal das mulheres desse final de século 20. Os homens são apenas 5% dos pacientes. Os sintomas da doença, diluídos, aparecem em praticamente todas as mulheres pelo menos, naquelas que têm todas as condições de estarem bem alimentadas. Quem nunca se achou gorda, mesmo depois dos elogios do marido ou namorado? Quem não se sente culpada depois de um ataque à geladeira? Quem não exagera em dietas e exercícios físicos? A tênue linha divisória entre o normal e o patológico no caso da anorexia deveria servir de alerta a todas que mergulham em dietas rígidas e tomam inibidores de apetite mesmo com receita médica.
"A doença pode começar de uma hora para outra. A pessoa acha que está gorda e começa a fazer regime. No começo, ela tem apetite, mas se força para não comer. Depois de algum tempo de jejum, não sente mais fome e recusa qualquer alimentação", diz o psiquiatra Táki Cordás, coordenador-geral do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas da USP.
A inocente dieta inicial vai se tornando, aos poucos, idéia fixa. A mulher só lê, fala e se interessa por regimes e exercícios.
Perde peso rapidamente, mas não se contenta. Olha-se no espelho e encontra culotes e celulites invisíveis aos outros. Recusa também conselhos de parentes e amigos e, apesar de magra, mantém uma hiperatividade. É um esqueleto ambulante, mas continua elétrica. Depois de alguns meses, ultrapassa a chamada "barreira da fome": quando o estoque de energia começa a baixar, sentimos fome, ficamos agitados, ansiosos por comida. A anoréxica suporta essa fome e desencadeia um processo interno, no qual seu cérebro "chega à conclusão" de que ela não come porque não consegue obter alimento como se estivesse perdida na Biafra. O corpo começa então a "economizar" tudo, diminuindo o gasto de energia: produz menos calor (a anoréxica sente frio o dia todo); queima gordura em grande quantidade, produzindo muita cetona (o hálito fica ruim) e a menstruação começa a falhar (ausência de pelo menos três ciclos consecutivos).
A fraqueza aparece finalmente: há cãimbras nas pernas, sudoreses, apatia, o cabelo cai e as unhas tornam-se quebradiças. Em geral, quando chega a esse ponto, a anoréxica precisa ser internada para receber alimentação parental e evitar a morte. Impedir que uma anoréxica chegue tão longe não é fácil. Primeiro, porque os sintomas iniciais se confundem com uma vaidade extrema. Depois, porque a anoréxica não assume que tem um problema e se rebela contra qualquer tratamento. "Em 90% das vezes, é a família quem interna. Os parentes percebem algo errado e não aguentam mais as brigas. A anoréxica muda completamente de personalidade", afirma a psiquiatra Angélica Claudino Azevedo, coordenadora do Programa de Transtornos Alimentares da Universidade Federal de São Paulo.
Diferentemente dos viciados em drogas adolescentes problemáticos, de comportamento marginal e violento, as anoréxicas são (ou foram), em geral, adolescentes bem-comportadas, do tipo "filha modelo". "São aquelas meninas boazinhas, que nunca deram trabalho. Com o avanço da doença, mudam e tornam-se irritadiças, briguentas. Não suportam que mexam nas coisas delas e, se alguém se meter na sua dieta, a coisa pega fogo", explica Angélica.
O tratamento pode ser tão sofrido quanto o de um dependente de drogas. "Na anorexia nervosa, o nível de beta-endorfina, substância que provoca bem-estar, aumenta, podendo subir até 50 vezes acima do normal. Quando você começa a alimentar uma pessoa que está anoréxica há muito tempo, esse nível de endorfina cai, e ela perde a sensação de bem-estar, sente muita angústia. É como se ela fosse viciada na própria endorfina que o corpo produziu", diz Freddy Eliaschewitz, chefe do Departamento de Endocrinologia do Hospital Heliópolis. Além disso, há o pânico de engordar. "É muito difícil fazer a paciente aceitar comida no início. Há mulheres que chegam com 27 kg e com medo de engordar", diz Maria Aparecida Larino, nutricionista do Ambulim.
Para driblar o tratamento, muitas fazem abdominais escondidas ou colocam moedas no bolso na hora de se pesarem. Na primeira fase, a paciente precisa ser hidratada, porque a maioria já parou de beber líquidos com medo de engordar. "Explicamos que aquele líquido só vai hidratar, damos lições básicas de nutrição", diz Maria Aparecida. Na fase 2, a paciente tem de atingir o peso alvo, e, na etapa seguinte, precisa mantê-lo. "Esta é a pior parte, porque ocorrem as recaídas", explica Angélica. A mãe de Adriana Tufano, Carmen Lucia, sentiu esse drama na pele. "No hospital, Adriana melhorou, mas depois da alta, teve uma regressão e perdeu 5 kg. Ela teve uma convulsão de hipoglicemia e dessa vez nós quase a perdemos", conta Carmen.
O estopim da anorexia em Adriana foi um comentário maldoso de uma "amiga" sobre a sua coxa. "Eu tinha feito uma plástica no nariz, ela disse que tinha ficado bonitinho, mas que com aquela coxona não adiantava nada", lembra Adriana. Banal? Mas qual mulher não se chatearia com a observação? E quem nunca achou que se emagrecesse arrumaria logo um namorado? "Todas nós achamos que peso é defeito. As anoréxicas nos desafiam a pensarmos sobre o lugar que a mulher ocupa no mundo hoje", diz a psicóloga junguiana Suzanne Robell, que está lançando o livro "A Mulher Escondida" (Summus Editorial) sobre a doença. A anorexia nervosa seria uma neurose feminina "aumentada com lente zoom". "É paradoxal que, depois da queima de sutiãs, as mulheres aprisionem a fome, fazendo de conta que não sentem vontade de comer", diz.
Para Suzanne, a anorexia mostraria as "sequelas deixadas pelo feminismo dos anos 70". "É como se tivéssemos dado um passo maior que a perna. Você vê hoje mulheres muito insatisfeitas com as conquistas que obtiveram. É obvio que não estou divulgando o retorno à idade da pedra, mas acho que muita coisa foi feita de forma estabanada. Como as histéricas de Freud concentravam os problemas sexuais da mulher no século passado, eu suspeito que as anoréxicas estão tentando dizer alguma coisa sobre todas nós", afirma Suzanne.
A professora do Departamento de Desenvolvimento Humano da Universidade Cornell (EUA) Joan Jacobs Brunberg completa: "Em sociedades opulentas, jovens solitárias e impotentes estão usando seu apetite como uma voz para expressarem sua infelicidade". É difícil tratar a anorexia. As pacientes, em geral, precisam chegar ao fundo do poço para começar a melhorar. Isso significa passar bem perto da morte, perder 40% do peso e mal conseguir ficar de pé. Com o tratamento, a maioria engorda e volta a menstruar, mas muitas continuam obcecadas com o peso. É difícil haver cura total. Adriana hoje só come o que a nutricionista manda e "jamais depois das 20h para não engordar". Claudia, com 50 kg, ainda se vê gorda. E Maria continua se esquecendo de almoçar.

Autoria de Deborah Giannini e Gabriela Michelotti como 'Sem Fome de Viver', publicado na  REVISTA DA FOLHA (Folha de S. Paulo), Edição de 5 de outubro de 1997. Editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

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